Independência do Brasil: a história que não terminou

Carlos Cruz-Diez, Cromossaturação, Labirinto para Lugar Público, 1969
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Por DANIEL COSTA*

Comentário sobre o livro recém-lançado, organizado por Antonio Carlos Mazzeo e Luiz Bernardo Pericás

Em 2022 o Brasil comemora e relembra três grandes efemérides, o centenário da semana de arte moderna e da fundação do Partido Comunista Brasileiro e o bicentenário da Independência. É no bojo deste último que acaba de ser lançado o livro Independência do Brasil: a história que não terminou, organizado por Antonio Carlos Mazzeo e Luiz Bernardo Pericás. A obra, ao longo de doze artigos, pretende trazer ao público leitor o acúmulo das reflexões realizadas até o momento acerca do processo de colonização e Independência do Brasil.

Como os próprios organizadores afirmam na apresentação do livro, em maior ou menor graus os trabalhos apresentados buscam trazer tais reflexões baseadas no trabalho de autores como Raymundo Faoro, Caio Prado Júnior, Fernando A. Novais, Carlos Guilherme Mota, Florestan Fernandes, Maria Odila da Silva Dias, Emília Viotti da Costa, Paula Beiguelman e Nelson Werneck Sodré. Segundo Antonio Carlos Mazzeo e Luiz Bernardo Pericás, apesar de “sempre partimos de estudos pregressos, ainda que possamos admitir e inserir em nossas ponderações novos aspectos e elementos que visam ampliar a abordagem histórico-crítica do tema em questão” é fundamental voltar a essas clássicas interpretações.

Partindo da premissa que o processo que culminou na Independência resulta de um cenário bem mais complexo que o apresentado, seja por aqueles que detiveram o domínio da nação ao longo do tempo, seja por autores vinculados a uma historiografia de cunho mais crítico que com toda razão buscaram desmistificar o processo, porém segundo o historiador Rodrigo Ricupero, ao adotarem a perspectiva de uma Independência resultante apenas de “um arranjo entre D. Pedro e seu pai D. João VI, com a chancela inglesa. A Independência acabaria sendo percebida como resultado de uma marcha sem heróis, sem lutas e sem participação popular”.

Porém, distante de tais interpretações podemos sustentar que tal processo foi bem mais complexo, marcado pela decadência do Antigo Regime no continente europeu e na crise do antigo sistema colonial do outro lado do Atlântico, constituindo, novamente com a palavra Bernardo Ricupero, “um resultado direto da Revolução Liberal do Porto de 1820, etapa final da “Era das revoluções”, que ao atravessar o oceano colocou em xeque o absolutismo, obrigando o retorno de D. João VI”.

No momento onde a efeméride do bicentenário sofre a tentativa de captura por parte do governo neofascista instalado no Planalto, através do resgate de um discurso nacionalista raso, que busca apagar qualquer contradição na construção da ideia de nação; seja pelos arroubos golpistas prometidos para o 7 de setembro e até mesmo pelo “passeio” macabro do coração de D. Pedro I pelo país, a publicação que por ora comentamos, surge como uma nesga de luz em meio ao céu.

Segundo os organizadores da obra, “questões como a “continuidade” de diferentes aspectos da dinâmica colonial no Brasil do século XIX, o caráter da “ruptura” com a antiga metrópole, a discussão sobre a ideia de “revolução” e “contrarrevolução” no processo de emancipação política, as distintas facetas e variáveis do desenvolvimento econômico interno e a contínua “dependência” externa, continuam atuais e ainda são alvo de disputas e controvérsias”. Reconhecendo que não há a possibilidade de uma profunda reflexão histórica sem o diálogo entre as diversas vertentes historiográficas, foram convidados pesquisadores dos “mais diversos ângulos da história da Independência”, criando um profícuo diálogo entre a História Social, Política, Econômica e Atlântica, contribuindo assim, “para o aprofundamento das reflexões sobre esse tema mais que controverso”.

O livro tem sua abertura com o instigante ensaio do eminente historiador Fernando A. Novais; baseado no clássico ensaio “As dimensões da Independência”, publicado originalmente na cinquentenária coletânea organizada por Carlos Guilherme Mota, 1822: dimensões e no artigo “Passagens Para o novo Mundo”, vista ainda na década de 1980 nos Novos Estudos Cebrap. Novais nos traz as dimensões e passagens do processo que culminaria na Independência mostrando ao leitor o quanto seu conceito de crise do sistema colonial permanece atual, apesar da tentativa constante de refutação, vinda principalmente de historiadores  que chegam a adotar um corte pós moderno para discutir o período e justificar tal interpretação.

O historiador, sociólogo e um dos organizadores do volume, Antonio Carlos Mazzeo vem em seguida, discutindo a partir dos elementos “fundantes da morfologia social resultante do período da colonização”, o processo de construção da autocracia burguesa no Brasil, tema que já foi objeto de estudo do pesquisador no fundamental Estado e burguesia no Brasil: origens da autocracia burguesa. No ensaio “Crise do colonialismo e Independência do Brasil”, o historiador Osvaldo Coggiola, partindo do conceito braudeliano da longa duração busca discutir o processo de emancipação política destacando as variáveis econômicas e sociais; perspectiva semelhante é a trazida pelo também organizador da coletânea Luiz Bernardo Pericás, por meio do ensaio “Independência do Brasil: apontamentos”.

Herbert S. Klein e Francisco Vidal Luna, partem da discussão econômica para no instigante ensaio “A economia brasileira no início do século XIX”, mostrar o impacto da economia no processo que desaguaria nos fatos ocorridos em 1822. Abordando um caso específico do período, a professora Vera Lucia Amaral Ferlini em parceria com o também professor Pablo Olller Month Serrath apresentam no ensaio “A economia açucareira paulista e o processo de Independência”, o papel desempenhado pelos produtores de açúcar, assim como o papel exercido pela açucarocracia paulista no processo.

A economia política das comunicações e informações geográficas no período e a circulação dos livros e desenvolvimento da imprensa serão abordados respectivamente por Íris Kantor e Pérola Maria Goldfeder e Marisa Midori; as primeiras apresentam o ensaio, “No rastro das cartas e dos mapas: a economia política das comunicações postais e a informação geográfica na conjuntura da Independência (1798-1831), já Midori traz o panorâmico, “A Independência e os livros: uma história sobre o futuro”.

Tomando como base o texto “A Independência e o protagonismo popular”, publicado no blog Brasil: bicentenário das Independências, Sérgio Guerra Filho, com o ensaio, “O protagonismo popular na Guerra da Bahia (1822-1823)”, apresenta de forma breve as lutas travadas na Bahia pela Independência, não sem antes propor uma discussão em torno dos fatos que levaram a tal conjuntura. Ao longo do texto Guerra busca identificar as formas de atuação das camadas populares no período do conflito.

Voltando a seara da História Econômica, Guilherme Grandi, Luciana Suarez Galvão e Camilla Scacchetti, buscam discutir os conflitos gerados em torno da arrecadação de tributos, assim, “a receita fiscal proveniente do registro do Rio Negro, objeto de estudo privilegiado deste capítulo, passou a compor as rubricas recolhidas pela fazenda paulista”. Desse modo, em “Tributar para seguir: fiscalidade e conflito no registro do Rio Negro a partir da Independência do Brasil”, os autores mostram como a província de São Paulo, “se utilizou de medidas legislativas a fim de manter sob sua responsabilidade a arrecadação de direitos tributários”.

A obra é encerrada com o perfil de dois intelectuais clássicos, fundamentais na interpretação do Brasil, através de suas abordagens e discussões em torno da formação histórica brasileira. O historiador paulista Caio Prado Júnior é revisitado por Lincoln Secco no ensaio “Caio Prado Júnior e a Independência”. Por fim, partindo da premissa que, para “compreender a (In)dependência na obra de Celso Furtado só é possível quando se parte da conjuntura na qual foram escritas suas obras, em que a soberania nacional aparece sempre recolocada”, os professores Alexandre de Freitas Barbosa, Roberto Pereira Silva e Alexandre Macchione Saes revisitam o legado do paraibano Celso Furtado em “Celso Furtado e a (In)dependência do Brasil.

Publicação que já nasce como bibliografia fundamental para os futuros estudos sobre o tema, Independência do Brasil: a história que não terminou, apresenta segundo Rodrigo Ricupero, autor da orelha do livro, “uma importante e necessária retomada dos estudos sobre a Independência do Brasil, contribuindo para superar uma visão excessivamente simplificadora”. Já para o veterano historiador Carlos Guilherme Mota, o livro “revela quanto a historiografia da Independência tem avançado no país, com autores clássicos ao lado das novas e mesmo novíssimas gerações (…) Talvez seja esse o prenúncio de uma nova era historiográfica, mais serena e densa, distante de visões pós-modernizantes. Nota-se que, para além da tradição sob influência marxista, vicejam cepas originais de pensamento, robustas e arejadas”.

Em meio a disputa de narrativas em torno do valor e do legado dos fatos ocorridos em 1822, a obra organizada por Antonio Carlos Mazzeo e Luiz Bernardo Pericás, torna-se pedra fundamental na construção de mais uma trincheira para o pensamento crítico.

*Daniel Costa é graduado em história pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).

 

Referência


Antonio Carlos Mazzeo e Luiz Bernardo Pericás (orgs.). Independência do Brasil: a história que não terminou. São Paulo, Boitempo, 2022, 304 págs.

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