Por WALNICE NOGUEIRA GALVÃO*
Notas sobre saga da realeza britânica, segundo Shakespeare
Líder político que mesmeriza as massas e as conduz ao desastre – para os outros e para elas próprias, como Hitler, o Führer – chamava-se na Antiguidade demagogo, ou “condutor do povo”. Só que a palavra foi perdendo o sentido próprio e se enfraquecendo.
Não dispomos de um bom sinônimo em português, mas em inglês há um perfeito: rabblerouser, ou seja, “sublevador da ralé”. E Shakespeare dá-nos um deles, e notável, na peça Henrique VI.
O Bardo, como se sabe, escreveu uma saga da realeza britânica, perquirindo a natureza do poder, a condução dos negócios do Estado, os laços que se atam ou se desatam entre o monarca e o homem que o habita; e assim por diante.
Alguns são mais renomados que outros. Célebre é a amizade entre Hal, o herdeiro presuntivo, e seu cúmplice de esbórnia Falstaff, renegado pelo príncipe quando rei, em Henrique V e nas duas partes de Henrique IV. Orson Welles ainda acrescentou um tanto de As alegres comadres de Windsor para viver Falstaff. No filme, transforma-se em seu duplo pela corpulência, gargalhadas estentóreas e petulância de bon vivant, enquanto era escarnecido por Hollywood.
Um pouco menos célebre é a insegurança existencial de Ricardo II, que oscila em dúvidas sobre sua legitimidade.
Henrique V, que aborda a Batalha de Azincourt, retumbante vitória dos ingleses sobre os franceses, traz bela meditação realenga sobre o preço que os pobres pagam por guerras gloriosas que os dizimam e mutilam.
Rei Lear põe em cena um soberano que exerce seu arbítrio para anatematizar uma inocente, sua filha Cordélia.
Macbeth mostra como a ambição de mando não hesita ante os piores crimes. E, se Macbeth tem ganas demais, o protagonista de Hamlet tem ganas de menos, suas hesitações privando-o do legado da coroa.
E por fim, culminando tudo, Ricardo III, uma das mais torpes figuras a pisar o palco, cuja ascensão rumo ao trono acompanhamos através de toda a sordidez, perfídias, tramoias. Até crianças, no caso os dois principezinhos, manda matar. Uma valiosa versão está preservada em filme, com Lawrence Olivier.
Em Henrique VI, rei que viveu entre 1421 e 1471,surge copiada da vida real uma personagem tenebrosa chamada Jack Cade, um rabblerouser completo. Logo nos damos conta de que o conhecemos pessoalmente, nosso tempo tendo trazido gente assim para a cena brasileira e mundial. Na clave do grotesco e não do trágico, resultaria no Père Ubu, de Alfred Jarry, paródia de Macbeth.
Jack Cade convoca e lidera uma “Marcha sobre Londres” (Il Duce Mussolini, precursor dos ditadores fascistas do século XX, liderou uma vitoriosa “Marcha sobre Roma”), para tomar o poder. Seus acólitos são a escória da sociedade, uma corja inominável. Logo ocupam a Ponte de Londres e bloqueiam o acesso à cidade. Jack Cade dá ordens: “Vamos à luta! Queimem a ponte, e, já que estão aí, a Torre de Londres também! Venham, avancemos!”.
Shakespeare vai aos poucos montando o perfil do líder. As acusações que ele assaca contra adversários, enviando-os sem julgamento para a decapitação sumária, também são nossas conhecidas: saber ler; nomear juízes-de-paz; falar frases com substantivo e verbo; fundar uma escola para jovens; mandar imprimir livros… Um exemplo: “E, contrário ao rei, à coroa e à dignidade, criou uma fábrica de papel!” Soa familiar?
Jack Cade quer ser rei, atribuindo a si mesmo sangue nobre e envergando uma armadura roubada. Dissemina fake news, como a aleivosia de que Lord Saye vendera a província da Normandia ao Delfim da França, crime de alta traição.
Destino funesto aguarda Jack Cade, pondo um ponto final aos malefícios que praticou e levou uma horda a praticar, enquanto ele mesmo secretamente só pensa em dinheiro, pilhagem e saques, em extorquir para benefício próprio. Em sua truculência, vê-se que a semelhança não é mera coincidência …
Exemplo histórico tão remoto vale para a constatação de que o sucesso pode ser efêmero e a derrota fatal, junto com sua laia. Apesar do desânimo quando verificamos que persistem até hoje entre nós. É de lamentar que alguns desses facínoras saiam impunes e morram na cama, cobertos de riquezas e honrarias. Mas Mussolini foi linchado e seu corpo pendurado pelos pés em praça pública, para execração geral. Bem dizia Dolores Ibarruri, La Pasionaria: No pasarán!
*Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH da USP. Autora, entre outros livros, de Lendo e relendo (Sesc\Ouro sobre Azul).