Javier Milei — da mão invisível à mão de ferro

Imagem: Huy Phan
image_pdf

Por EMILIO CAFASSI*

As ações do governo estão provocando um reforço sem precedentes do controle social, atingindo um alcance superior aos dos governos de direita de Menem ou Macri

No circo político argentino, o roteiro parece ter sido escrito exclusivamente pela pena do governo, com o enredo centrado na política financeira e, mais especialmente, na estratégia cambial. Esta ênfase eclipsa qualquer debate sobre a reconfiguração econômico-social em curso, cujo aprofundamento é vislumbrado através da análise do arsenal jurídico já disponível.

Por meio de uma associação mecânica entre a intervenção no mercado cambial e a taxa de inflação, pretende-se oferecer uma solução para uma preocupação popular indiscutível: o aumento constante do custo de vida, com uma inflação oficial de 79,8% nos primeiros seis meses completos da gestão de Javier Milei.

Durante quase todo o mês de julho as manchetes da imprensa exibiram uma série de detalhes técnicos sobre a intervenção nas finanças públicas e as múltiplas tipos de câmbio existentes: dólar oficial, dólar blend, dólar tarjeta, dólar contado con liqui, dólar MEP, dólar blue, entre os mais conhecidos.[1] Nesta orquestra financeira a ausência de uma cotação livre, embora ilegal, coexiste numa harmonia complexa, mas extensa.

As variáveis financeiras e cambiais, a evolução das reservas e a contabilização das contas públicas contrastam fortemente com o escasso impacto que os meios de comunicação hegemônicos dão às consequências do colapso do tecido sócio-produtivo e à deterioração social causada por estas medidas. Carlos Pagni, provavelmente o porta-voz mais lúcido das atribulações da direita, questiona-se nas páginas do jornal aristocrático La Nación se a diferença cambial não condiciona a brecha política.

Apesar de, após o debate e aprovação da iniciativa legislativa do governo, já tivéssemos aludido nestas páginas à colaboração e atuação de uma maioria de legisladores e meios de comunicação impressos e audiovisuais, e de juízes por omissão, considero necessário aprofundar o caráter estratégico dos acordos jurídico-políticos alcançados com as três amplas regulamentações em vigor.

São eles: o “Decreto de Necesidad y Urgencia” (DNU, 70/2023) com o qual Javier Milei iniciou sua gestão em dezembro passado, a resolução conhecida como “Protocolo de Seguridad” (PS, 943/2023) do ministério homônimo sob o comando de Patricia Bullrich, e a chamada “Ley Combi” (LC), aprovada recentemente pelo parlamento sob negociações que refletiram até onde um bloco político substantivo e majoritário representa uma opção política tão inovadora quanto sinistramente aquiescente, capaz de rearticular as relações de força ou, como lhes chamam a mídia, “a brecha”.

Estas três regulamentações, atuando em conjunto, simbolizam uma reconfiguração integral do Estado e da economia argentina. Sob a bandeira da modernização do país através da desregulamentação e da privatização, eles lançam uma série de múltiplas ameaças aos interesses populares.

Embora possamos encontrar antecedentes de redução das proteções laborais, acompanhadas pela flexibilidade e liberalização do mercado — um caminho bem trilhado para uma maior concentração de riqueza e poder de fato — este movimento está interligado com um reforço sem precedentes do controle social, que restringe drasticamente o direito ao protesto e à liberdade de expressão, atingindo uma profundidade e um alcance sem precedentes, superiores até mesmo aos dos governos de direita de Carlos Menem ou Maurício Macri.

É um fenômeno político que transcende o mero lixo tecnicista dos anglicismos financeiros ou o eco de um neoliberalismo revivido. Ao sintetizar brutalmente a essência e a magnitude desta estratégia antipopular formalmente articulada, revelam-se pelo menos cinco eixos inevitáveis. Prefiro correr o risco de incomodar o leitor com referência ao conjunto normativo, ao invés de cair na narrativa genérica de repetições ou simples analogias, pois acredito que as estratégias devem ser reveladas e não assumidas.

(i) Desregulamentação Econômica e Liberalização do Mercado. O coração destas legislações bate ao ritmo de um mercado selvagem, eliminando qualquer barreira ao seu império. O DNU proclama a desregulamentação do comércio, dos serviços e da indústria, eliminando restrições que, alegadamente, distorcem os preços e sufocam a livre iniciativa privada (art. 1).

Declara também a erradicação de todos os requisitos regulamentares que impeçam a interação espontânea entre oferta e procura (art. 2.º). Simultaneamente, no art. 3, promove maior inserção no comércio global, alinhando a regulamentação argentina aos padrões internacionais, especificamente às recomendações da Organização Mundial do Comércio (OMC) e da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Para isso, revoga leis que restringem a atividade econômica, como a Lei de Abastecimento (nº 20.680), a Lei de Promoção Industrial (nº 21.608) e a Lei das Gôndolas (nº 27.545), entre outras.

Estas revogações procuram eliminar obstáculos ao livre comércio e à competitividade (arts. 4.º a 12.º), permitindo a transformação das empresas públicas em sociedades anônimas em 180 dias (art. 13.º), medida reforçada pela LC no seu art. 48, eliminando vantagens de direito público. Isto inclui empresas estatais e empresas de economia mista. A LC também altera a Lei 23.696 para facilitar a privatização e promover a participação dos empregados na propriedade das empresas estatais, incentivando a transferência de ações aos empregados (arts. 41 a 47) ou revogando decretos de marcos regulatórios anteriores (arts. 36 a 40).

(ii) Reforma do Estado e Privatização. Os artigos 13.º a 35.º do DNU abrangem leis e regulam setores vitais como a energia, a mineração e a agricultura, abrindo as portas à participação privada. Exemplos disso incluem a revogação da Lei nº 18.425 de Promoção Comercial e da Lei nº 27.113 da Agência Nacional de Laboratórios Públicos. O Artigo 52.º reduz o controle estatal sobre as empresas privatizadas, libertando as suas operações das restrições governamentais.

A LC revoga leis que impunham restrições fiscais e subsídios, proporcionando maior flexibilidade na gestão de recursos e taxas. Isto inclui a eliminação dos subsídios aos serviços públicos e energéticos (arts. 36-40), uma medida que pinta um cenário onde o Estado é reconfigurado, dando lugar às forças de mercado e promovendo uma nova era de privatizações.

(iii) O DNU tece modificações na Lei do Contrato de Trabalho (nº 20.744) e na Lei do Trabalho (nº 24.013), abrindo caminho para uma contratação e demissão mais ágil de empregados, reduzindo remunerações e flexibilizando os contratos de trabalho. Estas medidas incluem a prorrogação do período experimental e a autorização de mecanismos alternativos de compensação (arts. 53-70).

Além disso, redefine o âmbito de aplicação da Lei do Contrato de Trabalho, excluindo determinados trabalhadores, como os dos sectores público e agrícola, das suas disposições mais protetivas (art. 65), ou eliminando o princípio da norma mais favorável para o trabalhador em caso de dúvida, desgastando assim as proteções legais para os empregados (art. 66). A LC estabelece um sistema de registro laboral simplificado e digitalizado, com o objetivo declarado de reduzir a informalidade, embora também enfraqueça as proteções laborais tradicionais.

Inclui modificações nas leis trabalhistas para facilitar a flexibilidade e reduzir custos para os empregadores, como alterações na Lei nº 20.744 para flexibilizar as relações trabalhistas, permitindo contratos mais flexíveis e a eliminação de certas garantias trabalhistas (arts. 68 a 70). Embora este seja o único caso em que o poder judicial interveio, dando origem a uma medida cautelar que deixa as medidas suspensas, o objetivo permanece claro: mantém-se a estratégia dominante, devendo-lhe ser dada a respectiva importância.

(iv) Fortalecimento da Segurança e do Controle Social. O PS inverte a longa tradição de protesto público de rua que se estabeleceu com o surgimento do movimento de piquetes e coexistiu durante mais de duas décadas. Hoje confere às forças de segurança o poder de intervir sem necessidade de ordem judicial em caso de bloqueio de estradas, classificando-os como crimes flagrantes. Esta intervenção estende-se às vias nacionais e demais estradas sob jurisdição federal (art. 1º), autorizando as forças de segurança a desobstruir as vias de comunicação com a força mínima necessária.

A intervenção deve ser imediata e sem ordem judicial prévia (art. 2º), aplicando-se a qualquer concentração de pessoas ou colocação de obstáculos que reduzam a largura de ruas, vias ou avenidas (art. 3º). A atuação das forças de segurança terá como objetivo a desobstrução de vias de acesso e de comunicação ou transporte até que o espaço destinado à circulação esteja completamente livre (art. 4º).

Além disso, exige a identificação de manifestantes e veículos, permitindo futuras ações judiciais e administrativas contra organizações e participantes de protestos. Isto inclui a identificação dos autores, cúmplices e instigadores através de filmagens e outros meios digitais (artigos 6.º a 8.º). Culminando, o artigo 11.º permite ao Ministério da Segurança processar organizações e responsáveis pelos custos das operações e danos, bem como enviar dados à Direção Nacional de Migrações no caso de estrangeiros envolvidos.

(v) Redução dos gastos públicos. O DNU declara emergência pública em diversas áreas, incluindo áreas fiscais e tarifárias, até 31 de dezembro de 2025, abrindo a porta para ajustes fiscais drásticos. Isto implica a eliminação dos subsídios e a redução dos gastos públicos (art. 1). O controle estatal sobre preços e tarifas é retirado (artigos 36.º a 50.º), desencadeando uma nova ordem onde as finanças públicas são sujeitas a uma austeridade implacável, sacrificando no altar da eficiência econômica as proteções e apoios que outrora sustentavam os consumidores mais vulneráveis.

Este apontamento rápido e sintético não pretende induzir a procura de retrospectivas, de cuja utilidade não desconsidero para a historiografia, mas antes apreciar a excepcionalidade e o drama do crescente consenso político que se articula — na “casta” — em torno do fenômeno de Javier Milei, como emergindo de uma transformação implacavelmente regressiva da sociedade argentina. No jargão náutico e da aviação, quando uma catástrofe é iminente, grita-se: mayday !!!

*Emilio Cafassi é professor sênior de sociologia na Universidade de Buenos Aires.

Tradução: Artur Scavone.

Nota do tradutor


[1] Dólar Oficial: Refere-se à taxa de câmbio oficial estabelecida pelo governo argentino para a conversão do peso argentino em dólares. Dólar Blend: é o valor do dólar recebido pelos exportadores que contém 80% do dólar oficial e 20% do CCL. Dólar Tarjeta: É para compras com cartão de crédito no exterior e pagamento local em pesos, no valor oficial em dólar mais vários impostos, tornando-o ainda mais caro que o dólar Blue. Dólar Contado con Liquidación (CCL): É uma forma de movimentação de moedas que permite que o dinheiro saia do país, trocando pesos por dólares e, em seguida, convertendo-os novamente em reais ou uma moeda diferente fora da Argentina. Dólar MEP (Mercado Electrónico de Pagos): É uma forma de compra e venda de dólares que acontece dentro do mercado financeiro local. Dólar Blue: Este é o termo usado para o dólar que é vendido no mercado paralelo.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
A rede de proteção do banco Master
28 Nov 2025 Por GERSON ALMEIDA: A fraude bilionária do banco Master expõe a rede de proteção nos bastidores do poder: do Banco Central ao Planalto, quem abriu caminho para o colapso?
2
A poesia de Manuel Bandeira
25 Nov 2025 Por ANDRÉ R. FERNANDES: Por trás do poeta da melancolia íntima, um agudo cronista da desigualdade brasileira. A sociologia escondida nos versos simples de Manuel Bandeira
3
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
4
A arquitetura da dependência
30 Nov 2025 Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR: A "arquitetura da dependência" é uma estrutura total que articula exploração econômica, razão dualista e colonialidade do saber, mostrando como o Estado brasileiro não apenas reproduz, mas administra e legitima essa subordinação histórica em todas as esferas, da economia à universidade
5
A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados
01 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra
6
Colonização cultural e filosofia brasileira
30 Nov 2025 Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: A filosofia brasileira sofre de uma colonização cultural profunda que a transformou num "departamento francês de ultramar", onde filósofos locais, com complexo de inferioridade, reproduzem ideias europeias como produtos acabados
7
Raduan Nassar, 90 anos
27 Nov 2025 Por SABRINA SEDLMAYER: Muito além de "Lavoura Arcaica": a trajetória de um escritor que fez da ética e da recusa aos pactos fáceis sua maior obra
8
A feitiçaria digital nas próximas eleições
27 Nov 2025 Por EUGÊNIO BUCCI: O maior risco para as eleições de 2026 não está nas alianças políticas tradicionais, mas no poder desregulado das big techs, que, abandonando qualquer pretensão de neutralidade, atuam abertamente como aparelhos de propaganda da extrema-direita global
9
O empreendedorismo e a economia solidária
02 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem
10
Totalitarismo tecnológico ou digital
27 Nov 2025 Por CLAUDINEI LUIZ CHITOLINA: A servidão voluntária na era digital: como a IA Generativa, a serviço do capital, nos vigia, controla e aliena com nosso próprio consentimento
11
Walter Benjamin, o marxista da nostalgia
21 Nov 2025 Por NICOLÁS GONÇALVES: A nostalgia que o capitalismo vende é anestesia; a que Benjamin propõe é arqueologia militante das ruínas onde dormem os futuros abortados
12
Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
13
O arquivo György Lukács em Budapeste
27 Nov 2025 Por RÜDIGER DANNEMANN: A luta pela preservação do legado de György Lukács na Hungria de Viktor Orbán, desde o fechamento forçado de seu arquivo pela academia estatal até a recente e esperançosa retomada do apartamento do filósofo pela prefeitura de Budapeste
14
Argentina – a anorexia da oposição
29 Nov 2025 Por EMILIO CAFASSI: Por que nenhum "nós" consegue desafiar Milei? A crise de imaginação política que paralisa a oposição argentina
15
O parto do pós-bolsonarismo
01 Dec 2025 Por JALDES MENESES: Quando a cabeça da hidra cai, seu corpo se reorganiza em formas mais sutis e perigosas. A verdadeira batalha pelo regime político está apenas começando
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES