Prosa poética

Imagem: Jan van der Zee
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Por PRISCILA FIGUEIREDO*

Três relatos curtos

SAMARA

Chegara fazia dois dias. Tinha o rosto enigmático de um bebê já velho. Além dos cachos que caíam sobre ele de um cabelo volumoso demais para a cabeça, uma penugem preta avançava sobre a testa e as faces, tão encardidas como desidratadas. Era uma menina, comprida demais para estar num berço, para estar só deitada; ela não andava, me advertiram, e seu olhar não respondia aos meus cuidados. Parecia vir de alguém vivido e desencantado. Quando inclinei meu corpo sobre o berço para pegá-la nos braços, me afastou com os seus, virando o rostinho feio para o lado com uma expressão enjoada, ou entediada, não vendo razão para aquilo. Aquela criança estava deprimida, pensei, e não tinha nem um ano. Não, ela não tinha um ano — num instante afastou um pouco os lábios uns dos outros e eu pude ver o que pareciam ser alguns dentes. Logo, num gesto que eu mesma julguei invasivo, abri um pouco mais a sua boca e verifiquei arcadas dentárias quase inteiras… Trinta anos depois desse encontro, lembro ainda com assombro o quanto pareciam carbonizadas tal era o grau do estrago. Na hora, o que senti foi mesmo terror e uma compaixão estranha. Me virei e disse para uma funcionária já quase saindo do dormitório: “Mas ela está com os dentes todos podres!”. Embora num átimo eu tivesse me convencido de que ela era bem mais velha do que eu supunha, ainda que não falasse e não andasse, não fui sensível o suficiente para imaginar que podia entender o que disséssemos. E foi o caso, pois assim que expressei minha constatação a menininha caiu num choro amargo, muito amargo. Minha frase a tinha sacudido da indiferença, do desprezo pela vida e pelas pessoas. A palavra podre deve ter sido forte demais para ela e a levou a reagir, mostrando quanto era viva e sensível, que fazia alguma imagem de si e podia ter até alguma vaidade. Ora, mas por que fui tão indelicada dizendo aquilo? Ou por que o fiz perto dela, como se eu me referisse a uma amostragem, a um objeto de pesquisa? E eu não estava ali para fazer nenhuma pesquisa.

Dois dias depois uma funcionária que acompanhava seu caso me contou que ela tinha cinco anos e seus pais eram viciados em crack.

(2023)

UM JOVEM VELHO

Abro uma revista na sala de espera e então deparo com a foto de um vizinho no alto de uma reportagem sobre a velhice. O ângulo é oblíquo e pega muito mais a face direita; o enquadramento coincide com a moldura da janela da frente de sua casa, através qual ele lança um olhar enviesado para a rua, ou para a jornalista que o vem visitar. Se eu não o reconhecesse logo, e à fachada da casa, teria a impressão de que se tratava de um asilo. Na verdade, ele tem muito de um jovem velho, a pele lisa, mas os cabelos já brancos, aquela composição que vemos em Julian Assange, com o qual, noto agora, ele se parece muito. Mora quatro ou cinco casas depois da minha, e a dele não se destaca, embora seja de construção sólida, na qual não se percebe nenhum desejo original de embelezamento, mas só o princípio utilitário de usar bons materiais, para que não viesse a dar trabalho muito mais à frente, materiais escuros, considerados mais neutros, que a fariam atravessar décadas sem grandes reformas. O resultado tinha saído por isso asséptico e pouco atraente, de modo que quase sempre eu tinha passado ao lado sem lhe dar muita atenção, ao contrário do que faço quando, tocada por algum encanto, do conjunto ou mesmo pelo detalhe de uma varanda lateral, que sempre achei promissora e aconchegante, desacelero meus passos e tento adivinhar a parte de dentro, forçando o olhar com toda a força escópica de que é capaz por uma porta deixada aberta, pela luzinha embaciada de uma vidraça, um caminho estreito para o jardim. A casa de Leo — pois agora sei pela reportagem que o rapaz ancião se chama Leo — jamais tinha me despertado a curiosidade. O que eu já sabia é que perdera os pais e ainda que os perdera um atrás do outro havia mais de 15 anos, pois os meus tinham até ido a cada um dos enterros, o que, claro, não estava escrito ali. Ele tem uma velha faxineira, a qual, aliás, lembro agora que divide os dias com mais dois vizinhos da rua, de modo que em certa ocasião quase estive tentada a combinar sua vinda a minha casa também, mas por fim receei que por meio dela expusesse meus hábitos a uma gente em geral fofoqueira. Ela ainda prepara a comida de Leo para toda a semana e é a única pessoa com a qual mantém uma convivência mais contínua, enfatiza ele para a entrevistadora. Não fosse ela, provavelmente já estaria em um asilo. Mas você é tão jovem ainda, ela o contradiz. Se eu fosse, você não estaria aqui me entrevistando sobre velhice e solidão. Veja, nos indicaram você, algum conhecido seu, nós o contatamos, e você, informado do assunto, não ofereceu resistência nenhuma. Apenas adiou muito o nosso encontro (dizendo isso, ri um pouco). Eu fiquei ansioso, sempre quero receber pessoas, trazer algum colorido para a minha rotina, mas na verdade acabo me angustiando e me retraio. Devo dizer que chegando aqui me espantei consideravelmente. Mas ficou, não é? Não tentou se retirar dizendo: “Desculpe-me, deve ter havido algum engano”. Sim, verdade, você não era exatamente o que eu imaginava, mas logo agarrei, digamos, a oportunidade de ver a coisa por um ângulo novo ou mesmo conceber uma nova matéria a partir da matéria original, o que eu mesma não esperava. Acho que você vai enriquecer bastante o nosso projeto — você é um jovem velho, você sabe, e não só pelos cabelos que digo isso. Você falou em asilo… Você diz confundir muito a data dos acontecimentos. Apesar de não ter dúvida sobre sua idade, você tem dúvida sobre a data de quase tudo que ocorreu no mundo na última década, e, no entanto, não tem nenhuma doença degenerativa. Sim, me sinto muito cansado. Os muitos acontecimentos é que são responsáveis por eu confundi-los tanto, não sei, ou a televisão. Você não usa internet, redes sociais? Uso muito pouco porque mesmo para fazer uma rede virtual de amigos é preciso algum amigo concreto de onde partir, e ainda assim não seria fácil. Nunca teve amigos? Eu só tive dois em toda minha vida — um foi para o exterior e outro morreu cedo. O texto nos assegurava que ele parecia em paz com a sua situação.

Depois do diálogo as páginas vinham ilustradas com fotos de cômodos da casa, e na descrição de uma delas se dizia: “A pátina da solidão cobre todos os móveis”. Creio que os badulaques kitsch que se veem em alguns não devem ter sido escolhidos por Leo. Havia uma imagem do fundo da propriedade que jamais me interessou conhecer, mas ela me revelava algo inesperado, pois a mangueira tão alta que sempre avistei do meu quintal agora sei que vinha do quintal dele. A sala de estar é escura e poderia cheirar a incenso de igreja, como eu com quase repugnância imaginava, e nela ocupa muito espaço um sofá em L, ainda ao estilo dos anos 70, de veludo verde escuro, onde ele se senta. A repórter, também responsável pelas fotos, é sensível, logo vi, e nesse ensaio sobre a solidão  calculara bem a luz pela qual revelaria como as coisas tinham perdido seu ritmo próprio para adotar o de Leo, que ainda guardava um ferrorama da infância, pego em funcionamento pela câmera enquanto ele o olhava com ar um pouco distante, talvez pelas recordações e mesmo fantasias que o brinquedo, comprado decerto numa época de fartura em sua família, pois se via que era de um modelo internacional e cobiçado, ainda desencadeava. Fiz uma associação estranha, mas súbita, o que lhe dá mais valor, entre ele e as engenhocas artísticas que Ludwig, o rei da Baviera e célebre solitário, mandava construir de tempos em tempos. A quatro ou cinco casas à direita da minha para quem vem da rua Demissionários mora um Ludwig de classe média, o qual também calha de ser cuspido e escarrado Assange, esquecido naquele ambiente esquivo à luz, mas quase vibrátil quando, a qualquer hora do dia, a magnífica locomotiva em miniatura é posta em movimento.

Foi num sonho que tive há alguns dias que li a reportagem mencionada, e o que pensei sobre ela pensei também nesse sonho. 

(2020)

PINTADINHA

            (para Elaine Armênio, i.m.)

Ah era pintadinha como uma banana madura, disse meu pai com a voz já combalida pela doença, mas num tom que se podia discernir como extremamente carinhoso e não era de fraqueza, embora fosse como que adotado para imitar alguém dizendo aquilo. Compreendi logo que era a si mesmo que imitava, a si mesmo numa época remota.

Já não podia andar poucos dias antes de sua morte, e eu tinha lhe perguntado, como se não soubesse nada, de sua namoradinha de infância, uma prima chamada Vivi, que morava num casarão na rua São Vicente de Paula, próximo de uma pensão familiar em que ele, o irmão e seus pais tinham ido se hospedar por uns tempos logo depois de se mudarem de Santos. Eu já sabia dessa Vivi, de como o meu pai saía da escola e ia correndo até a casa dela, parando junto ao tronco de uma árvore do outro lado da calçada e da qual ia tirando lascas com as unhas até ela aparecer na janela. Eu sabia também que ela era ruiva e sardenta — mas ele em nenhuma vez que a mencionara tinha feito a comparação de agora, nunca tinha usado a imagem da banana pintadinha. Ele não gostava, aliás, de quando esta atingia esse ponto, coisa de que também não gosto; mas então me ocorreu o quanto todas as vezes em sua vida que viu a casca da fruta em tal estado não pensou nessa Vivi, que na minha imaginação era um corpo miúdo e um rosto ferruginoso, no qual eu não punha nenhuma feição, embora o envolvesse com um cabelo vermelho, longo e grosso.

Talvez assim, mais fraco, era como mais facilmente puxado pela força gravitacional de sua infância, da qual nunca afastou muito os pés, na verdade, sempre sonhando que por alguma porta sua mãe entraria trazendo a bandeja de cajuzinhos de abóbora, cremosos por dentro e com uma casca fina e vidrada por fora, como sempre acrescentava, pois parecia nos dar instruções para uma receita que, pela mais extrema desatenção, aquela que se desenvolve diante de um fenômeno muito repetido, nunca pudemos fazer, o que me enche de remorso, mais um, pois eu devia ter vencido a repetição e o tédio e reconhecer ali um dos poucos pedidos mais legítimos e delicados que já foram feitos a mim e creio que também a minha mãe. Mas, por esse desarranjo de camadas mentais que acontecia agora no meu pai, ouvi pela primeira vez aquela analogia, tão imediata e tão antiga, oferecida a mim como um sítio revirado oferece a alça de um vaso milenar. Na verdade não se tratava de imitação, como eu tinha dito no começo disto que é a lembrança de uma lembrança, mas era o seu próprio ser mais antigo, que assim voltava subitamente a falar — a doença, talvez porque fosse maligna e apressada, curiosamente também parecia seguir aquele protocolo de uma última generosidade concedida em alguns lugares aos condenados à morte, e então dava essa chance à percepção infantil ali aprisionada havia anos.

(2018)

*Priscila Figueiredo é professora de literatura brasileira na USP. Autora, entre outros livros, de Mateus (poemas) (Bem te vi).

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