Por DENNIS DE OLIVEIRA*
A escolha de Datena reflete a instrumentalização da TV Brasil, onde a lógica comercial e a busca por capital político suplantam a missão de construir uma esfera pública plural e distante do sensacionalismo
1.
Diversas entidades ligadas à área de comunicação expressaram sua discordância do anúncio da contratação do apresentador José Luiz Datena pela Empresa Brasil de Comunicação (EBC). Segundo a informação, confirmada por pessoas do governo, José Luiz Datena irá apresentar um programa de entrevistas.
O Coletivo Intervozes, organização não governamental de defesa da democratização da comunicação, considerou que “a contratação do apresentador contraria princípios legais e éticos e afronta o projeto de uma comunicação pública que respeite os direitos humanos”.
A Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), em nota publicada no seu site afirma que José Luiz Datena consolidou um tipo de “jornalismo” marcado pelo desrespeito sistemático aos direitos humanos e pelo proselitismo político – práticas vedadas pela legislação que rege a comunicação pública e que criou a EBC.
José Luiz Datena, que já foi filiado ao PT, chegou a ganhar o Prêmio Vladimir Herzog de Direitos Humanos em 1987, com a reportagem Heróis da resistência, injustiça e perigo, sobre crianças trabalhando em um lixão na cidade de Ribeirão Preto – a reportagem foi ao ar na EPTV, afiliada da Rede Globo, de Ribeirão Preto.
Os indícios não sinalizam se o que motivou a contratação de José Luiz Datena seja este seu passado político e jornalístico. A marca da sua carreira foi a programação sensacionalista mais recente que levou às críticas das entidades. Não há em falas ou atitudes de José Luiz Datena nenhum indicador de que ele tenha voltado a este momento passado que é o centro da argumentação de defesa da sua contratação.
2.
Mas há outros elementos que mostram que esta ida de José Luiz Datena à EBC se encaixa no pragmatismo político que toma conta das forças políticas do governo interessadas em constituir uma popularidade instrumental para objetivos eleitorais.
Primeiro, em relação ao próprio projeto da EBC. É fato que desde o golpe de 2016 que ungiu Michel Temer à presidência, se iniciou um processo de desmonte houve tentativas de desmontar do projeto de uma empresa pública de comunicação. Os conselhos de participação social foram extintos, houve com ameaças de privatização, aparelhamento governamental da emissora de televisão e da agência de notícias, entre outros.
Em 2022, um dossiê de censura e governismo na empresa elaborado por uma comissão de trabalhadores da EBC apontou 64 casos de censura, 228 de governismo e 245 casos de coberturas de pautas irrelevantes (como cobertura de celebração do “Dia da Coxinha”). Os conselhos de participação social foram extintos. O interessante é que a mídia hegemônica que sempre criticou a criação da EBC nos governos petistas acusando-a de “mídia governista” nunca fez esta crítica durante os governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro.
Entretanto, mesmo após o retorno de Lula à presidência, o projeto de uma empresa pública de comunicação não foi consolidado. Há 13 anos que não há reposição no quadro funcional que foi reduzido em 30% com aposentadorias e demissões voluntárias, gerando uma sobrecarga de trabalho nos que ainda trabalham. Até 2025, a presidência da EBC estava a cargo de Jean Lima que pediu demissão e foi substituído por Andre Bausbaum, jornalista que fez uma carreira em várias emissoras comerciais, como Globo e Record.
Durante os três anos de governo Lula, já houve duas trocas na presidência. Antes de Jean Lima, ocupou o cargo Helio Doyle que foi retirado da presidência em 2013, oito meses depois da sua nomeação, por ter compartilhado na sua rede social uma postagem do cartunista Carlos Latuff de crítica a Israel pelo massacre de palestinos na Faixa de Gaza. Latuff chamava de “idiotas” os apoiadores da ação do Estado de Israel.
A pressão sobre o governo foi intensa e a cabeça de Helio Doyle rolou. Um pouco antes disto, Doyle foi pressionado para demitir o editor do programa jornalístico Repórter Brasil, Luiz Carlos Braga por ele ter negado a existência da “ditadura militar”.
O que salta aos olhos nestes episódios são decisões tomadas ao sabor das conveniências políticas do governo e que passam ao largo de mecanismos participativos. Não foram decisões tomadas a partir de demandas construídas a partir da sociedade que poderiam ser expressas, por exemplo, nos conselhos participativos da empresa, mas por decisões tomadas no âmbito da política de comunicação do governo que, diga-se de passagem, é cada vez mais tomada por preocupações instrumentais (haja vista que as credenciais do atual mandatário da comunicação governamental são de ser um publicitário vitorioso em pleitos eleitorais).
3.
Assim, é possível entender a contratação de José Luiz Datena por dois elementos. O primeiro é a tentativa do governo em dar uma resposta à agenda de “segurança pública” visibilizada pelo massacre feito pela polícia do governador do Rio de Janeiro em fins de outubro no Complexo da Penha e Morromorro do Alemão, que trouxe para àa cena política a necessidade de se combater o crime organizado.
O discurso de defesa da violência policial que alçou José Luiz Datena à popularidade na televisão é uma credencial que foi levada em conta. Não que José Luiz Datena vá fazer um programa nos mesmos moldes na TV Brasil. Mas a sua figura pública conhecida pela defesa do policiamento ostensivo e violento pode, simbolicamente, trazer parte deste capital político para o governo e isto foi calculado como um bônus.
Segundo, a tentativa de aumentar a audiência da TV Brasil com a popularidade de José Luiz Datena, numa lógica que pouco difere das emissoras comerciais.
Estes dois elementos são preocupantes. Uma comunicação pública deveria ter como objetivo justamente construir uma outra relação com o público que não seja meramente de um consumidor de mensagens – e que leva, necessariamente, a conferir como critério de qualidade o “interesse do público” e não o “interesse público”.
A relação a ser construída é de fomentar o debate mediado por interesses democráticos e de cidadania. Assim, agendas como da diversidade etnicorracial, de gênero, orientação sexual, entre outros, além de evidenciar os conflitos de classe não são pautas específicas e sim constituintes do que se chama de esfera pública. E esta tarefa não é possível de ser construída por uma mídia comercial monopolizada, subordinada a setores oligopolistas do grande capital nacional e transnacional e que só pode ser enfrentada à medida que se forma um público com consciência crítica.
A dificuldade de compreensão do papel de uma comunicação pública com estes objetivos é a rendição de determinados setores do campo progressista ao pragmatismo da realpolitik. Confunde-se uma boa política de comunicação com visibilidade das ações do governo que tem resultados positivos em termos de popularidade e/ou eleitorais, independente dos valores ideológicos consolidados na sociedade.
Considera-se que o apoio de boa parte da população a ações de violência nas periferias são produto de uma “boa comunicação da extrema direita” e não da necessidade de um enfrentamento de cunho político-ideológico que vai muito além de ações de propaganda e marketing.
A constituição de uma comunicação pública nestes moldes exige mais que pessoas com popularidade e sim articulações com movimentos sociais organizados que fluam as discussões com a sociedade e, por isto, a dimensão participativa de uma emissora pública é fundamental (por isto, é preocupante que decisões importantes como a contratação de um profissional como o José Luiz Datena ocorra ao arrepio do conselho da EBC).
Subordinar a comunicação pública e toda a política de comunicação ao pragmatismo da realpolitik e do marketing eleitoral pode até dar resultados positivos a curto prazo. Mas continuaremos vivendo ainda em uma sociedade que naturaliza violência contra mulheres, LGBTS, o racismo estrutural e medidas institucionais nunca serão suficientes para coibir.
*Dennis de Oliveira é professor titular do curso de Jornalismo da Escola de Comunicações e Artes da USP. Autor, entre outros, livros de Racismo estrutural: uma perspectiva histórico-crítica (Dandara). [https://amzn.to/44ALJB0]
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