Por SLAVOJ ŽIŽEK*
Acreditam que se continuarem segurando Assange nessa condição de morto-vivo, aos poucos nós nos esqueceremos dele. É nosso dever provar que eles estão errados
Neste dia 3 de julho, Julian Assange vai comemorar seu aniversário de cinquenta anos em uma cela prisional solitária, sem qualquer condenação, apenas esperando sua extradição. É uma suprema ironia que seu aniversário ocorra justamente um dia antes do 4 de julho, data em que os Estados Unidos celebram seu “Dia da Independência” – é como se o dia do nascimento de Assange estivesse aqui para nos lembrar dos aspectos sombrios não apenas da “terra dos livres”, mas da maioria das democracias ocidentais.
Quando a Bielorrússia forçou um avião da Ryanair que voava de Atenas a Vilnius a pousar em Minsk a fim de deter Roman Protasevich, um dissidente bielorrusso, esse ato de pirataria foi amplamente condenado pela comunidade global. No entanto, devemos lembrar que alguns anos atrás a Áustria fez exatamente a mesma coisa (obrigar uma aeronave que cruzava seu espaço aéreo a fazer um pouso forçado) com o avião do presidente boliviano Evo Morales. Isso foi feito por ordem dos EUA, que suspeitavam que Edward Snowden estava a bordo daquele avião tentando ir da Rússia para a América Latina. Para piorar a situação, Snowden sequer estava no avião.
Contra sua vontade, Assange tornou-se um símbolo desse lado sombrio das democracias ocidentais, um símbolo da luta contra as novas formas digitais de controle e regulação sobre as nossas vidas – formas muito mais eficientes do que as antigas formas ditas “totalitárias” de controle. Muitos liberais ocidentais insistem que há outros países ao redor do mundo em que há opressão direta muito mais brutal do que no Reino Unido e nos EUA, e questionam o suposto alarde em torno do caso de Assange? É verdade, mas nesses países a opressão é escancarada, ao passo que o que vemos agora no ocidente liberal é uma opressão que em larga medida deixa intacto nosso senso de liberdade. Assange trouxe à tona esse paradoxo da não-liberdade experimentada como liberdade.
É por isso que foram usados todos os truques mais baixos contra ele – até as feministas liberais sujaram as mãos. Nas maiores potências munidas, são tomadas medidas opressivas contra aqueles considerados perigosos para o establishment. Apenas no Reino Unido, temos o MI6 discretamente fazendo varreduras em cargos de agências estatais e educacionais, sindicatos sob controle da polícia secreta, regulamentação silenciosa sobre o que é publicado na mídia e o que aparece na TV, menores de idade de famílias muçulmanas interrogadas por supostas ligações terroristas, até eventos singulares como a prisão ilegal de Julian Assange… Ora, esse tipo de censura é muito pior do que os “pecados” da cultura do cancelamento – por que então os regulamentos do politicamente correto se concentram tanto em policiar detalhes de nossa fala em vez de trazer à tona essas questões muito mais prementes? Não é à toa que Assange também foi atacado por algumas feministas politicamente corretas (não apenas) da Suécia que se recusaram a o apoiar porque acreditaram nas acusações sobre sua má conduta sexual (que depois foram descartadas pelas autoridades suecas). Uma pequena infração das regras do politicamente correto obviamente supera o fato de ser uma vítima do terror de Estado…
Assange, no entanto, não é apenas um símbolo. Ele é uma pessoa viva que vem sofrendo bastante na última década. O Dia da Independência é geralmente celebrado com fogos de artifício, desfiles, cerimônias e reuniões familiares… mas uma família definitivamente não estará reunida nem hoje nem amanhã: a de Assange.
Reza a lenda (e provavelmente não se trata de muito mais do que isso) que a frase que Neil Armstrong disse logo depois de dar o primeiro passo na lua no dia 20 de julho de 1969 não foi “Este é um pequeno passo para o homem, mas um salto gigantesco para a humanidade”. Em vez de palavras oficiais estampadas na imprensa, Armstrong teria proferido uma observação um tanto enigmática: “Boa sorte, Sr. Gorsky.” Muitas pessoas da NASA pensaram que era um comentário casual sobre algum astronauta soviético rival. Foi, no entanto, só no dia 5 de julho de 1995 que, ao responder à indagação de um repórter, Armstrong finalmente explicou o enigma: “Em 1938, quando era criança em uma pequena cidade do meio-oeste, Neil Armstrong estava jogando beisebol com um amigo no quintal. Seu amigo acertou a bola, que caiu no quintal do vizinho, perto da janela do quarto do casal. Seus vizinhos eram o Sr. e a Sra. Gorsky. Quando ele agachou para pegar a bola, o jovem Neil ouviu a Sra. Gorsky gritando com o Sr. Gorsky: “Sexo! Você quer sexo?! …Você terá sexo quando o garoto aqui ao lado pisar na lua!’”.
Foi isso que literalmente aconteceu trinta e um anos depois… Quando tomei conhecimento dessa anedota, imaginei uma versão dela com Julian Assange. Digamos que, quando recebeu uma visita de sua companheira Stella Morris na prisão e os dois estavam separados pelo vidro blindado de sempre, ele tenha sonhado com um contato íntimo com ela, ao que ela teria respondido laconicamente: “Sexo!? Você quer sexo?? Ora, você terá sexo quando pisar livremente nas ruas de Nova York, celebrado como um herói de nosso tempo!” – uma perspectiva não menos utópica que imaginar em 1938 que um ser humano pisaria na lua. É por isso que não devemos poupar energias para alcançar esse objetivo, na esperança de que, daqui a trinta e um anos, possamos dizer com toda a sinceridade: “Boa sorte, Sr. Assange!”
Em claro contraste com o título da canção dos Rolling Stones, é quem está no poder que presume ter o tempo ao seu favor. Eles acreditam que se simplesmente continuarem segurando Assange nessa condição de morto-vivo, aos poucos nós nos esqueceremos dele. É nosso dever provar que eles estão errados.
*Slavoj Žižek é professor do Instituto de Sociologia e Filosofia da Universidade de Ljubljana (Eslovênia). Autor, entre outros livros, de O ano em que sonhamos perigosamente (Boitempo).
Tradução: Artur Renzo.
Publicado originalmente no blog da Boitempo.