Lacração

Sir David Wilkie, Três estudos para fotografia, data desconhecida.
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Por HENRIQUE BRAGA & MARCELO MÓDOLO*

“Lacrar” passou a assumir sentido figurado: o ato vigoroso de fechar com lacre é assemelhado à ação de anular o oponente, que seria incapaz de reagir ao ser confrontado

Quem toma decisão como homem de Estado não fica atrás da lacração”. Essa foi uma das frases de impacto proferidas recentemente pelo Ministro da Fazenda Fernando Haddad (PT), em sessão da Comissão de Finanças e Tributação da Câmara. No mesmo encontro, ele ainda disse a outro deputado: “Fecha a porta para ouvir [os empresários do varejo] e parar de lacrar na rede”.

Em sua aparente cruzada contra a lacração, o ministro nos faz pensar sobre como o uso do termo “lacrar” e seus cognatos pode ser exemplo de que até mesmo as mudanças linguísticas ocorrem de forma acelerada em meio ao excesso de comunicação que vivemos. Em pouco menos de uma década, pudemos presenciar apogeu e queda desse neologismo semântico, que veio deixando de ser associado ao orgulho de grupos discriminados e passa a ser usado estritamente, por diferentes atores políticos, em sentido pejorativo.

Primeiro ato – “lacração” e “tombamento”

A possibilidade de associar palavras por conta de semelhanças em seu significado permite enquadrá-las no que os estudos linguísticos chamam de “campo semântico”. Para compreender as recentes ocorrências do termo “lacração”, é importante considerar que, lá pela metade da década passada, ele não emergiu sozinho, mas somado a outro termo do mesmo campo: o “tombamento”. Ambos os vocábulos (além de seus cognatos, como “lacrar” e “tombar”), nesses contextos de uso, podem ser associados à ideia de “enfrentamento”.

No caso do verbo “tombar”, tornou-se recorrente que seu uso tivesse um complemento acusativo implícito, identificado com as barreiras utilizadas para invisibilizar corpos não hegemônicos (negros, femininos, queers). Usar roupas e maquiagens chamativas ou ostentar penteados de origem africana são exemplos de práticas vinculadas à noção de “tombamento”, por serem estratégias de autoafirmação utilizadas para, metaforicamente, “derrubar” (“tombar”) as restrições de uma sociedade excludente.

De forma semelhante, “lacrar” também passou a assumir sentido figurado: o ato vigoroso de fechar com lacre é assemelhado à ação de anular o oponente, que seria incapaz de reagir ao ser confrontado. Na letra de “Bixa Preta”, lançada em 2017 pela artista Linn da Quebrada, o eu-lírico explicita tal confronto: “Quando ela tá passando/ Todos riem da cara dela, mas se liga macho/ Presta muita atenção/ Senta e observa a tua destruição”. Adiante, na mesma letra, ela acrescenta: “Elas tomba, fecha, causa/ Elas é muita lacração”.

Em um processo de especialização de sentido, “lacrar” passou a remeter mais especialmente ao universo discursivo, significando algo como “apresentar argumentos irrefutáveis, encerrando uma discussão” – sobretudo em debates de ambientes virtuais. O que era “deixar sem reação” (contido por um lacre, fecho) passa a ser “deixar sem resposta”. Nesse sentido, como forma de resistência a uma história de sofrimento e discriminação, a chamada “geração tombamento” buscava anular o adversário, tendo a “lacração” como uma de suas estratégias.

Segundo ato – a reação conservadora

Como neologismos semânticos, “lacração” e seus cognatos surgem ideologicamente posicionados, uma vez que se associam a pautas que, na realidade brasileira, são majoritariamente incorporadas por grupos de esquerda. Em decorrência disso, a popularização desses vocábulos teve como um de seus efeitos a desqualificação dos próprios termos por seus antagonistas, posicionados à direita no debate público.

Em redes sociais, a expressão “só quer lacrar” tornou-se frequente para refutar posicionamentos em defesa da igualdade e da diversidade. Como exemplo, citamos uma das críticas dirigidas ao ator Maicon Rodrigues, quando associou a menor projeção de cantoras negras ao racismo: “o caso dessa falsa militância é que o povo só quer ‘lacrar’ pra gerar buzz com nomes que estão na mídia”.

Nesses usos, o ato de “lacrar” é entendido como um recurso discursivo voltado a atrair atenções, sem relações mais efetivas com a realidade. O “lacrador” seria simplesmente alguém em busca de holofotes, likes, visibilidade. Desmerecer o próprio conceito de “lacração”, portanto, passa a ser uma estratégia argumentativa ad hominem para interditar o debate, já que os supostos “lacradores” não seriam debatedores sinceros e respeitáveis.

Último ato – os lacradores são os outros

No dito campo progressista, Fernando Haddad não é exceção ao atribuir sentido pejorativo à “lacração”. Recentemente, o também ministro Paulo Pimenta acusou o prefeito da cidade de Farroupilha de tentar “lacrar na internet” quando este divulgou, de forma descontextualizada, trecho de um telefonema da autoridade federal.

Em ambos os exemplos, observa-se que a ressignificação conservadora obteve êxito na desqualificação do termo lacração e seus correlatos. Nascidos em berço esquerdista para nomear certo combate a preconceitos, os vocábulos foram sendo associados à construção de posicionamentos impactantes, porém vazios. Nesse sentido, qualquer oponente, de qualquer matiz ideológico, pode ser considerado um “lacrador”, alterando-se assim o sentido atribuído à “lacração” nos versos de Linn da Quebrada, citados acima.

Epílogo – “Todo o mundo é composto de mudança”

Como dizer o óbvio tem sido cada vez mais importante, não custa lembrar que sim, as línguas mudam: o uso cotidiano, a busca por expressividade, os contatos entre grupos e culturas fomentam a dinamicidade de um idioma. Nesse caso específico, porém, chama atenção a velocidade da mudança.

Numa época marcada pela profusão de conexões, estaria também o ritmo das mudanças linguísticas acelerado? Em um momento histórico no qual as pessoas se comunicam tanto, certos usos linguísticos podem vir a se transformar com maior velocidade? A história recente do termo “lacração” nos faz pensar se, como escrevera o poeta quinhentista, “não se muda mais como soia”.

*Henrique Santos Braga é doutor em Filologia e Língua Portuguesa pela USP.

*Marcelo Módolo é professor de filologia na Universidade de São Paulo (USP).

Uma primeira versão desse artigo foi publicada no Jornal da USP [https://jornal.usp.br/?p=767914].

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