Por LUIZ RENATO MARTINS*
Comentário sobre o filme dirigido por Stanley Kubrick.
“A história […] de Hitler e seus seis primeiros discípulos, a história de como eles, em conjunto, fundaram o partido e de como depois esses sete homens se converteram primeiro em 1 milhão, e depois em 6 milhões, e depois em 30 milhões, em 40…” (Rosenberg, 2012, p.144). Essas são as primeiras frases do ensaio de Arthur Rosenberg (1889-1943) “O fascismo como movimento de massas” (1934).[1] A serpente fascista acabara de sair do ovo. Rosenberg, historiador e ex-membro do Partido Comunista Alemão (KDP), examinava então os primeiros sinais da ascensão eleitoral e política do fascismo na Alemanha, à luz do ocorrido na Itália no decênio anterior.
Quando enfrentamos, como agora, uma crise global e sistêmica, vale a pena recordar tal caso – fulminante e paradigmático – de expansão política. O êxito da gangue hitleriana, posto como pano de fundo, permite compreender melhor a parábola do filme de Stanley Kubrick (1928-1999), Laranja Mecânica (Clockwork Orange, 1971). Trata-se da fábula de uma gangue juvenil, cujos membros se alçam do submundo à integração no serviço do Estado; seu primeiro líder, como político promissor; os demais, como policiais.
Assim, como fábula urbana futurista, avivada historicamente por “rituais” nazis, a parábola se estende à questão do desenvolvimento criminal das democracias pós-modernas, vinculadas à fraude e ao espetáculo, bem como a estratégias governamentais orientadas para tecnologias de controle das formas biológicas, ou seja, biopolíticas, conforme Michel Foucault (1926-1984).[2]
O futuro logo ali, depois da esquina
O enredo do filme situa a ação na Londres do futuro, de espaços modernos degradados e cheios de lixo. Entretanto, a Londres de 1970, data da realização do filme, era o símbolo por excelência de uma cidade atraente. De modo estratégico e alusivo, o enredo que apontava ruínas urbanas e a transformação direitista da juventude funcionava, pois, como uma espécie de “ficção científica social”.
Assim, tomando emprestado traços de histórias em quadrinhos e caricaturas, Kubrick trabalhou o futuro ficcional, contexto da narrativa, em chave pessimista. Outras implicações de ordem temporal permeavam a narrativa: inúmeras referências conectavam o filme, como se fosse parte de um díptico, ao trabalho precedente do cineasta: 2001: Uma Odisseia no Espaço (2001: A Space Odyssey, 1968; doravante referido simplesmente por 2001). Uma das pontes entre os dois filmes era a recorrência da cor branca, adotada tanto nas cenas de 2001 quanto nos uniformes da gangue de Alex. O que evocava o uso do branco nesse caso?
Na ironia, que é um traço da narração dialética própria desse cineasta, cada forma evoca também seu oposto. Assim, o emprego do branco nesse caso aponta para uma ampla gama de significados associados historicamente a cores escuras. A brancura evocava em 2001 uma ordem social unificada sob uma pax fascista, da qual se apagara qualquer vestígio de luta de classes – vestígios como aquele da disputa entre os grandes símios pelo controle da água, na sequência de abertura de 2001.
A cidade dividida entre gangues é parte da ordem sublunar contemporânea às naves espaciais de 2001. Da mesma maneira, as palavras do mendigo, espancado pela gangue de Alex, tanto designam o submundo em que ele habita quanto remetem às estações orbitais de 2001. Em tal ordem futurista, os uniformes brancos da gangue – assim como as camisas marrons ou escuras das velhas milícias nazis (os Freikorps e, depois, os SA) – apontam para uma nova ordem social e política, pretensamente oposta ao caos e à ruína da crise (presente) designada como contexto narrativo.
Certamente a intenção do autor não era propor um paralelo entre as causas libertárias dos estudantes de 1968 – que, com frequência e em muitos países, buscaram estabelecer alianças políticas com os trabalhadores – e a juventude londrina do filme, que atua em suas incursões noturnas como uma reedição dos Freikorps e SA originais. Na verdade, o filme prognosticava, em 1970-71, época de sua realização – ou seja, apenas dois ou três anos após as insurreições de 1968 –, uma mutação radical no papel da juventude: sua transformação de força libertária em segmento violento que intensifica espontaneamente a opressão social.
Nesses termos, Kubrick escapou do otimismo de filmes anteriores de outros diretores que, ao enfocar a juventude como uma categoria social específica e como um novo sujeito político, enxergaram vocação libertária nos comportamentos juvenis anárquicos. Era o caso da narrativa melodramática de Juventude Transviada (Rebel Without a Cause, 1955), de Nicholas Ray (1911-1979), ou dos filmes franceses da Nouvelle Vague, com seu tom lírico ligeiro, mais próximo da sensibilidade pop. De tais narrativas – pré-1968 –, depreendia-se uma impressão de progresso e liberação, a melhoria prognosticada de valores e leis. Em contrapartida, a visão pessimista de Kubrick – com sua lucidez pós-1968 na contracorrente e adiante de suas circunstâncias – antevê os sombrios tempos atuais.
Cultura e controle
Há também outro problema estratégico relativo ao novo sujeito político e social. Os estudantes, encontrando-se em transição para o mundo do trabalho, vinculam-se concretamente à esfera da cultura, a cujas mutações são especialmente suscetíveis. Nesse sentido, por exemplo, a Nona Sinfonia, de Beethoven (1770-1827), após servir a um ritual íntimo, lado a lado com a serpente e a imagem do compositor como fetiches de Alex, converte-se em ingrediente do tratamento de choque e da intervenção psiquiátrica a que Alex é submetido. Assim, a conversão da cultura numa “tecnologia de controle”, para falar ao modo de Foucault, aparece no filme associada ao processo de mutação da juventude. Dessa perspectiva, os acontecimentos de 1968 se parecem muito menos a um amanhecer do que a um crepúsculo aziago, cujos fatos e premissas, indicadores de emancipação, já não contam mais.
Estado criminal
O enredo se situa na crise terminal do Welfare State, de seu vínculo com um Estado constitucional. Desde logo, determina os traços de uma época de transição, em que uma sociedade – cindida em termos de interesses, porém potencial ou normativamente integrada num arcabouço democrático – tem seus conflitos subsumidos e manipulados “biopoliticamente”, o que resulta numa nova ordem, moldada por um Estado criminal e omnisciente (ou panóptico).
Em suma, tal “ficção científica social” anuncia, com precisão específica, o momento posterior aos ditos “Trinta Gloriosos”, como Jean Fourastié (1907-1990) [3] batizou – já nostalgicamente, em 1979 – o período de expansão pós-1945 nas economias centrais do capitalismo (desnecessário detalhar, em contrapartida, que nós, na periferia, convivemos desde sempre e permanentemente com desigualdades estruturais que saltam à vista nas economias centrais apenas em crises agudas).
Entretanto, no filme, restam, na transição, alguns aspectos do antigo regime, como eleições e rivalidades entre partidos. Se os motivos da crise – cíclica e previsível – não são especificados, seus sinais já aparecem realçados: pobreza, ruínas urbanas, evasão escolar, juventude desocupada, conselheiros disciplinares, cárceres abarrotados e o fato de que as formas tradicionais de controle social (lei, prisão, religião, escola, família etc.) não funcionam mais para impedir que os jovens cometam crimes – daí a busca estatal por terapias de choque; e, ao que parece, em medida ainda maior, a absorção estatal da delinquência, como estratégia para fazer frente à elevação dos índices de criminalidade.
No fim das contas, seriam medidas para monopolizar a criminalidade? Nesse sentido, a criminalidade de Estado configuraria o corolário da crise, o signo de “uma nova era disciplinar”, para falar de acordo com as categorias de Foucault.
Watkins, Fellini, Pasolini
As teses pessimistas de Kubrick, mesmo que estivessem na contracorrente da tendência geral, não surgiram de forma isolada. Assim, em Punishment Park (1971), o cineasta britânico Peter Watkins (1935) imaginou os Estados Unidos convertidos numa ditadura militarizada à moda latino-americana (naquela altura), logo, com presos políticos e um campo de concentração no deserto, para jovens rebeldes. Analogamente, Fellini (1920-1993), de modo irônico e caricaturesco, apresentou em três filmes feitos após 1968 – Os Palhaços (I Clowns, 1970), Roma de Fellini (Roma, 1971) e Amarcord (1973) – a análise da emergência original do fascismo na Itália, sob feições cotidianas, prosaicas e insuspeitas. Também Pasolini (1922-1975), silenciado mediante assassinato, como Trótski (1879-1940), procurou alertar em 1974 para a ascensão de “uma forma completamente nova e ainda mais perigosa de fascismo” (Pasolini, 1975, p. 285).
Desse modo, numa série de artigos publicados em periódicos entre 1973 e 1975, e reunidos em Scritti Corsari (1975), Pasolini iniciou uma análise sistemática do que ele então designou como “a primeira, verdadeira revolução da direita” (Pasolini, 1975, p. 24). O texto assim intitulado, publicado em 15 de julho de 1973, começava: “Em 1971, principiou um dos períodos mais reacionários, violentos e definitivos da história” (Pasolini, 1975, p. 24).
“Ultraviolências”: velhas e novas
Uma vez acentuada a escala de objetividade e significação do problema, podemos passar agora à análise da função das imagens do nazismo em Laranja Mecânica. O clímax terapêutico da “reprogramação cerebral” de Alex é salientado no filme pela imagem do próprio Hitler (1889-1945), flanqueado por dois comandantes. O nazismo aparece então como o paradigma histórico da ultraviolência, cultivada pela gangue de Alex – a qual, como as gangues rivais, evidencia ter raízes numa ordem social marcada pela hiperprodução da publicidade.
A ultraviolência é um signo dos prazeres e práticas que Alex, como prisioneiro e paciente do Estado, deve abandonar. De fato, o nazismo aparece como forma anacrônica, rejeitada pelo Estado e pelos psiquiatras que introduzem a nova terapia. No entanto, o filme também apresenta paralelos claros entre a substância da ultraviolência e do ódio contra o outro, desfrutado nas incursões noturnas da gangue, como também naquelas da chamada Noite dos Cristais (Kristallnacht, 9/10 de novembro de 1938) na Alemanha nazista. Para os entediados adolescentes londrinos, cada noite se convertia numa Kristallnacht.
Sem dúvida, o Estado tem a intenção de curar Alex. Mas o papel do espectador – se estiver atento à contranarrativa e à ironia próprias de Kubrick – é o de entender que os movimentos de incorporação e negação, indo e vindo entre a nova ordem e o velho fascismo, constituem uma oscilação dialética. Esta tem a função de caracterizar no filme a especificidade da forma corrente de fascismo.
Assim, as gangues não trazem aspectos das antigas milícias nacionalistas, mas correspondem a mutações folgadas e hedonistas, liberadas do sentido de dever ou de fidelidade a uma cultura ou poder nacional. Ainda assim, segundo ressalta o filme, as gangues se mostram espontaneamente dispostas e treinadas para a ultraviolência, praticada como passatempo.
Analogamente, os duetos cômicos entre Alex e o oficial da carceragem, cuja disciplina caricata e desejo de castigar evocam a ordem imperial britânica, têm o propósito de destacar a novidade – mas também de nos alertar quanto às mutações genéticas da matriz fascista.
Enfastiadas, rebeldes, ociosas, erráticas e hedonistas – enfim, aparentemente bem distintas das SA e de outras milícias nazistas originais –, e ao mesmo tempo tão à vontade com o espírito de militarização e agressão contra o outro… Enfim, de onde vêm e para onde vão tais gangues?
Bem-vindos à “faísca da vida”!
A mãe de Alex trabalha numa fábrica. Os jovens em questão são de origem operária, mas se mostram totalmente dissociados dos valores de seus pais. O filme salienta o vazio entre Alex e seus “velhos”. De fato, a juventude das gangues é aquela do chamado baby boom; seu cordão umbilical, a superprodução de bens. Diante da crise, qual é a nova ordem a que aspiram as gangues?
Laranja Mecânica é a última parte de um tríptico que analisou as subjetividades constituídas no curso da Guerra Fria: Dr. Fantástico (Dr. Strangelove, 1963-1964) enfocava o pessoal do sistema bélico nuclear; 2001, a colonização do cosmos numa idade tecnológico-imperial – ou “na etapa mais alta do capitalismo”. Após este último, Laranja Mecânica vem revelar como a crise e a “etapa mais alta” podem conviver, até que, por fim, se impõe – no período pós-1968 – o projeto do novo capitalismo: à base de tecnologias de biocontrole social, desmantelamento do Welfare State e redirecionamento dos recursos para o mercado de capitais. Observemos de perto tal distopia, tão similar ao mundo atual.
A ordem analisada pelo cineasta parece muito próxima daquilo que Foucault, poucos anos depois, numa aula de março de 1976, designou como “biopolíticas” [biopolitiques] (Foucault, 1997, p. 213-235). Tal noção apareceu num curso cujo objetivo crítico e anti-idealista era o de estudar o poder “não desde a perspectiva dos termos primitivos e ideais da relação”, mas sim para estabelecer “como a relação de dominação pode produzir o sujeito” (Foucault, 1997, p. 239).
O que importa à luz de tal paralelo é que as investigações de Foucault e Kubrick tratam de aclarar os novos tipos de condicionamento, assim como seu impacto sobre os “sujeitos condicionados”. As formas de condicionar enfocadas por Kubrick operam de várias maneiras. Vão desde tomar o anabolizante “leite-plus” até o controle dos passos de Alex por “um conselheiro público pós-correcional”. Sua presença na casa de Alex é tão frequente que ele se move ali livremente e termina por receber as chaves da casa das mãos da mãe do jovem. O fato de ele saber mais sobre Alex do que seus próprios pais assinala tanto um hiato geracional quanto a onipresença das “biopolíticas” governamentais.
Estas últimas são uma novidade deplorada pelo diretor da prisão e o oficial da guarda, ambos devotos da propedêutica de disciplina e castigo, consoante a tradição imperial britânica. Também a recorrência dos temas do “novo homem” e seu recondicionamento denotam a nova ordem, que é aquela das ruínas do trabalhismo e do Welfare State – ruínas vislumbradas na sujeira do lugar, assim como em pichações e grafites que cobrem o mural que tematiza trabalhadores, na entrada do conjunto habitacional popular onde vivem os pais de Alex.
A nova subjetividade
Detenhamo-nos na questão-chave do “homem-novo”, que vez por outra aparece nas relações de hostilidade contra os mais velhos – por exemplo, na surpresa do mendigo espancado por Alex –, bem como no processo terapêutico e em seus desenvolvimentos. Quem é o “homem novo”, afinal? É o Alex do início? Ou o segundo, que aprende novas práticas na prisão, lê a Bíblia e se oferece como voluntário para o método Ludovico? Ou antes, seria o Alex convertido à passividade por meio das náuseas programadas? Ou, por fim, o quarto Alex, transformado em favorito do ministro?
Aqui, tal como na incorporação e na negação do nazismo, encontram-se oscilações entre distintas posições narrativas. Porém, mais decisivas e emblemáticas do que as referidas posições são os incessantes deslocamentos do pêndulo, que estabelecem o problema do “homem novo” em oposição ao Welfare State e à ordem prévia. Este é o ponto-chave: as posições de Alex derivam sempre, de um modo ou de outro, do seu condicionamento, ou seja, sempre resultam de identidades pré-moldadas, previamente adaptadas ao entorno.
Assim, as subjetividades do novo regime compreendem dois aspectos: o primeiro corresponde a uma situação insegura e vulnerável. Tal é a situação do prisioneiro, mas também a do trabalhador e cidadão atual, sob o neoliberalismo, todos destituídos dos direitos sociais básicos. A redução da vida a aflições e incertezas, assim como sua imersão no fluxo da concorrência incessante, caracteriza a nova ordem antevista pelo filme.
O segundo aspecto do novo regime de subjetividade implica satisfações rápidas ou imediatas, derivadas da realização narcisística de fantasias perversas ou atos de autoafirmação. Na personalidade de Alex, constantemente propensa a disfarces e máscaras, tal tendência aparece desde a primeira tomada, em close sobre seus olhos pintados, até sua última pose, junto ao ministro.
Note-se, entre parênteses, que tal perversão virá a se tornar rotineira como uma prática de classe na era atual, pautada pelo capital fictício. Nessa, os ganhos não requerem as antigas mediações, mas tão somente metamorfoses ou realizações imediatas, mediante intercâmbios on-line de ativos financeiros. Assim, no último filme de Kubrick, De Olhos Bem Fechados (Eyes Wide Shut, 1999), essa disposição se expande de forma ilimitada. Não ficam imunes a ela sequer os médicos que, de praxe, são arautos positivistas.
Em suma, estetização, disfarce, ecletismo, erradicação do sentido histórico e militarização sobressaem em Laranja Mecânica, oferecendo-nos uma chave de leitura precursora das tendências pós-modernas.
Os anos formativos: rumo ao tandem liberal-fascista
Adotemos uma das pistas que vale como síntese das demais. A odisseia de Alex funciona como um “romance de formação” (Bildungsroman). Narra as memórias da formação de um jovem e ambicioso quadro ministerial (un jeune loup, como dizem os franceses). As intervenções do atual ministro (do Interior), assim como seus cuidados com os meios de comunicação, demonstram que não se trata das formas do antigo fascismo. Ao contrário, o atual ministro é o representante de um Estado que conta com um orçamento acima de tudo racionalizado e cada vez mais restringido – como o ministro assinala ao diretor da prisão que lhe pede fundos. Logo, o ministro não é todo-poderoso, mas sua autoridade presta contas ao Estado e ao processo eleitoral.
No entanto, é certo que tal subordinação ocorre estritamente na esfera da atuação cênica. Trata-se de um Estado-Espetáculo, de ministros que atuam teatralmente e de minorias definidas e condicionadas em termos “biopolíticos”. Todos têm um sentido claro da cena midiática, como vemos na lição para Alex, ditada e revisada diretamente pelo próprio ministro.
É parte do papel dos meios de comunicação registrar o pacto entre o ministro e o “representante dos prisioneiros mentalmente curados”, funcionando, pois, ao modo de um “contrato social”. Que papel cabe à esfera cultural na ordem social assim reordenada?
Sabemos que os governos neoliberais realizaram um processo de reestruturação das funções da cultura. De âmbito em que os conflitos eram simbolicamente traduzidos e reelaborados, sua função foi transformada estrategicamente em modo operativo, no qual os conflitos concretos de classe e interesses são dissimulados (por trás de máscaras e razões multiculturais) e falsamente solucionados mediante a integração geral ao consumismo. Tal modelo de cultura não requer fundamentalmente mais do que um parque temático, amalgamando as ilusões de acesso generalizado – em modo de autosserviço – às mercadorias; acesso estimulado mediante a redução de custos em função do modo chinês de superexploração, e combinado à expansão creditícia do capital fictício. O modelo cultural também implica a extinção de um ente republicano histórico como o Poder Legislativo, substituído pela liturgia do mercado.
Vivemos numa era de pseudodemocracias totalitárias, nas quais as mediações políticas entre polos opostos cederam lugar a espetáculos apoteóticos e à satisfação midiática. Há acaso melhor síntese, no cinema, de tal formação histórica do que a imagem de um futuro primeiro-ministro alimentando – ou melhor, dando de comer na boca, como a alguém de sua própria prole – o representante de uma categoria “biopolítica”? Cabe notar: representante biopolítico que, desde logo, foi transformado em político sorridente e promissor e, quem sabe, em futuro primeiro-ministro… [4]
* Luiz Renato Martins é professor-orientador dos PPG em História Econômica (FFLCH-USP) e Artes Visuais (ECA-USP). Autor, entre outros livros, de The Long Roots of Formalism in Brazil (Haymarket/ HMBS).
Revisão e assistência de pesquisa: Gustavo Motta.
Referência
Laranja Mecânica [A Clockwork Orange].
EUA, 1971, 136 minutos.
Direção: Stanley Kubrick
Roteiro: Stanley Kubrick, a partir da novela de Anthony Burgess, A Clockwork Orange. Londres: William Heinemann, 1962 [ed. bras.: Laranja Mecânica. Trad. Fábio Fernandes. São Paulo: Aleph, 2015]. Elenco: Malcolm McDowell, Patrick Magee, Michael Bates, Warren Clarke, John Clive, Adrienne Corri, Carl Duering.
Referências bibliográficas
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FOUCAULT, Michel. Il faut défendre la société: cours au Collège de France (1975-1976). Ed. Mauro Bertani e Alessandro Fontana, sob a direção de François Ewald e Alessandro Fontana. Paris: Hautes Études/Seuil-Gallimard, 1997. [Ed. port.: É preciso defender a sociedade. Lisboa: Livros do Brasil, 2006.]
FOURASTIÉ, Jean. Les trente glorieuses ou la révolution invisible de 1946 à 1975 [1979]. Paris: Fayard/Pluriel, 2011.
MARTINS, Luiz Renato. El triste fin del estado de bienestar: la parábola de Kubrick. In: PINCHEIRA, Iván et al. (eds.). Máquinas del saber, mecanismos del poder, prácticas de subjetivación. Actas de la 1a Jornada Transdisciplinar de Estudios en Gubernamentalidad/ Núcleo de Estudios en Gubernamentalid de la Universidad de Chile. Santiago: Ediciones Escaparate, 2016. p.59-64.
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______. La prima, vera rivoluzione di destra. Tempo Ilustrato, 15 jul. 1973. In: Scritti corsari. Milão: Garzanti, 1975. p.24-30.
______. Scritti corsari. Milão: Garzanti, 1975 [Ed. bras.: Escritos corsários, trad. Maria Betânia Amoroso. São Paulo, Ed. 34, 2020].
ROSENBERG, Arthur. Fascism as a Mass-Movement [1934]. Trad. Jairus Banaji. Historical Materialism, Londres, v.20, n.1, 2012, p.144-189.
Notas
[1] Ver Rosenberg (2012, p.144-189).
[2] Ver Foucault, 1997, p. 213-235. 237-244
[3] Ver Fourastié (2011).
[4] Editado a partir de texto originalmente publicado sob o título de “El triste fin del estado de bienestar: la parábola de Kubrick”, in PINCHEIRA, Iván (ed.)/ Núcleo de Estudios en Gubernamentalidad, Univ. de Chile. Máquinas del saber, mecanismos del poder, prácticas de subjetivación (Santiago: Ediciones Escaparate, 2016), pp.59-64; republicado em português, sob o titulo “O triste fim do Welfare State: a parábola de Kubrick”, in Crítica Marxista, n. 48, São Paulo, IFCH-U