Lima Barreto como personagem do jornal Dom Quixote

Blanca Alaníz, serie Velos de color sobre el comercio número 4, fotografía analógica digitalizada, Ciudad de México, 2020
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Por ALEXANDRE JULIETE ROSA*

Considerações sobre a vida do escritor brasileiro e a imagem que dele foi sendo construída ao longo do tempo.

O jornale seu criador

Dom Quixote, jornal humorístico semanal, começou a circular em 16 de maio de 1917 e durou até março de 1926. Seu idealizador e diretor foi o jornalista Manoel de Bastos Tigre, que também foi poeta [publicou 16 livros de poesia], cronista, publicitário, bibliotecário, entre outras muitas atividades que exerceu.

Bastos Tigre nasceu em 12 de março de 1882, na cidade do Recife, filho de um próspero comerciante da região. Com 16 anos foi mandado ao Rio de Janeiro para estudar engenharia na Escola Politécnica. Acabou se apaixonando pela cidade, “que fez sua”, conforme a expressão de Marcelo Balaban, e lá acabou passando o resto de sua vida: “Formou-se engenheiro em 1906, mas nunca chegou a exercer o ofício. Dedicou sua vida à literatura, que entendia de forma plural, abarcando a poesia humorística, o jornalismo, a publicidade e o teatro. Além de todas essas atividades, foi ainda bibliotecário, ofício que exerceu por muitos anos e que lhe rendeu o título de patrono dos(as) bibliotecários(as) no Brasil”.[i]

A data de 12 de março, “dia do bibliotecário”, é uma homenagem a Bastos Tigre, que faleceu a 2 de agosto de 1957. Quando finalizou o curso de Engenharia, Tigre já havia mergulhado na boêmia literária carioca, fundara alguns jornais e colaborava em outros, como A Avenida e Correio da Manhã. Frequentava as “rodas” dos cafés e confeitarias. Seu pai, preocupado com os descaminhos do filho, mandou-o fazer uma especialização em eletricidade nos Estados Unidos, o que não adiantou muito. Foi nesse país que o poeta entrou em contato com Mervil Derwey, o criador do Sistema de Classificação Decimal. Voltando ao Brasil, Tigre participou de um concurso para bibliotecário, sendo aprovado em primeiro lugar para ocupar uma vaga na biblioteca do Museu Nacional.[ii]

Outro contato feito nos Estados Unidos e que teve forte influência na vida de Bastos Tigre foi com a propaganda. O desenvolvimento que essa dimensão da mercadoria havia tomado no país yankee deixou o poeta arrebatado: “os yankees, reis da reclame, anunciam em toda parte, por todos os modos e maneiras originais e surpreendentes; lê-se, por exemplo, em uma lápide do cemitério do Bronx, em New York, este sentido epitáfio: ‘Aqui jaz Willian Brown, negociante de calçados na rua 28, Oeste. A sua inconsolável viúva continua na mesma casa, com o mesmo ramo de negócios.’ Não há como censurar a viúva inconsolável; a reclame não tem barreiras, ela não para diante de uma pedra de sepultura: vai além túmulo.”[iii]

Nessa época era muito comum aos homens de letras, principalmente os poetas, escrever propagandas. Muitos deles colocavam sua pena a serviço da “reclame”, como o próprio Olavo Bilac o fez: “Tigre começou a explorar esse filão a partir de 1913, quando passou a redigir a propaganda da cervejaria Brahma, substituindo [o também poeta] Emílio de Menezes. Ele [Tigre] se tornou um verdadeiro profissional da propaganda e chegou a abrir aquele que é considerado o primeiro escritório profissional do ramo no Brasil e que se chamava ‘Publicidades Bastos Tigre’. Alguns de seus slogans ficaram célebres. Ele é o autor do ‘Se é Bayer, é bom’, traduzido para muitas línguas.”[iv]

Dom Quixote foi um dos mais importantes jornais humorísticos cariocas da primeira República. Havia uma verdadeira plêiade de cronistas, humoristas e, principalmente, caricaturistas e desenhistas. Nos anos iniciais contava com a colaboração de Humberto de Campos, Antônio Torres, Emílio de Menezes, Lima Barreto, Domingos Ribeiro Filho, entre tantos outros. No desenho: Julião, Raul, Calixto, Bambino, Gil [Carlos Lenoir] – alguns nomes imortais do “lápis”.

A principal marca editorial do periódico era a irreverência que perpassava pelos diversos gêneros: nas crônicas, poemas, esquetes teatrais, piadas, causos, desenhos, caricaturas e até mesmo nos classificados e reclames. Havia, também, certo posicionamento crítico em relação aos acontecimentos políticos e sociais, principalmente envolvendo figurões da política e personalidades da época. Dom Quixote foi o ponto de culminância na carreira de seu idealizador: “A trajetória de Bastos Tigre, nas décadas de 1900 e 1910 foi marcada por uma atuação plural, que foi se definindo aos poucos até atingir o ápice entre os anos 1917, quando fundou a revista D. Quixote, e o início da década de 1920.”[v]

Lima e Tigre

A amizade entre Lima Barreto e Bastos Tigre começou quando ambos eram alunos de engenharia na Escola Politécnica do Rio de Janeiro. O futuro autor do Policarpo Quaresma, segundo informa Francisco de Assis Barbosa, fez-se amigo daquele jovem bulhento e brincalhão, de grandes bigodes, cujo nome começava a se projetar mesmo fora da Escola: “Um era a antítese do outro. Lima Barreto caladão, metido nos cantos dos corredores ou enfurnado na biblioteca, era conhecido apenas de uns poucos colegas. Tigre, não. Dava-se com todo mundo. A qualquer pretexto, era chamado para fazer discursos. Foi ele quem, vencendo a timidez do amigo, acabou transformando Lima Barreto em colaborador d’A Lanterna, periódico de ciências, letras, artes, indústrias e esportes.”[vi]

Os dois amigos chegaram a idealizar outras publicações humorísticas, O Diabo e Quinzena Alegre, dos quais ainda não se têm maiores notícias. O certo é que Lima Barreto entrou para o “bando” da Politécnica, mas não por muito tempo.

Havia um abismo entre Lima Barreto e os amigos – a cor da pele.

Foi principalmente após a entrada para a faculdade que Lima Barreto começou a compreender a violência sistemática do racismo. É o caso, entre outros, de uma noite em que Lima Barreto se recusou a pular um muro para entrar num teatro sem pagar o ingresso, junto aos amigos Nicolau Ciancio – que dividia um quarto de pensão com Lima – e Bastos Tigre, este, o mentor da ideia. O caso foi relatado pelo próprio Ciancio a Francisco de Assis Barbosa:

“– Por que você não veio? [pergunta Nicolau Ciancio, após voltar para a pensão e encontrar Lima Barreto deitado e lendo]. “– Para não ser preso como ladrão de galinhas!” [responde o estudante]. Ciancio faz-se de desentendido, no que Lima Barreto completa: “– Sim, preto que salta muros de noite só pode ser ladrão de galinhas!”. Nicolau ainda tenta amaciar a situação: “– E nós, não saltamos?”. A resposta vem a queima roupas: “– Ah! Vocês, brancos, eram rapazes da Politécnica. Eram acadêmicos. Fizeram uma estudantada. Mas eu? Pobre de mim. Um pretinho. Era seguro pelo polícia. Seria o único a ser preso”.[vii]

Esse fato ocorreu mais ou menos em 1902, 1903. Época em que se abateu sobre Lima Barreto a desgraça doméstica, a ‘loucura’ do pai, o abandono da faculdade e a entrada para o serviço público, como amanuense na Secretaria do Arsenal de Guerra. Outros fatores levaram a certo distanciamento entre Lima Barreto e Bastos Tigre, sem que, no entanto, a camaradagem fosse rompida.

Tigre foi cada vez mais solidificando sua posição de pequeno burguês. Passou a frequentar outras “rodas”. Conviver com a gente chic do Rio de Janeiro. Participar dos saraus de Botafogo e das concorridíssimas conferências literárias. Lima Barreto ia ficando na marginalia, convivendo com os anarquistas e com a gente simples do subúrbio. E assim as duas carreiras foram se fazendo. Em termos de produção literária, Bastos Tigre representava o oposto daquilo que Lima Barreto considerava o dever do escritor.

É muito provável, no entanto, que Lima Barreto tenha sido convidado por Bastos Tigre para colaborar no Dom Quixote. A essa altura, Lima Barreto já tinha publicado Recordações do Escrivão Isaías Caminha [1909], Triste fim de Policarpo Quaresma [1911, em folhetins, e 1915 em livro], Numa e a Ninfa [1915, em folhetins, e 1917 em livro], além de colaborar para vários jornais e revistas, dentre elas, a Careta, uma das mais renomadas do período. Não era mais um nome desconhecido, antes consagrado, e por isso mesmo invejado e rejeitado.

Seu primeiro texto no D. Quixote saiu na edição de 1º. de agosto de 1917 e tem por título “A defesa do sr. Café”. Trata-se de uma crônica que ironiza a segunda política de valorização do café [1917 a 1920], instrumento utilizado pelos governos federais no período da primeira República para socorrer da bancarrota os fazendeiros paulistas.[viii]

Lima Barreto, personagem do Dom Quixote

Consegui identificar seis crônicas publicadas por Lima Barreto no Dom Quixote. Das seis, quatro, ao que tudo indica, não constam nas coletâneas que reúnem os textos do autor, tanto nos volumes de crônicas, quanto nos de contos.[ix]

Embora a colaboração não tenha sido muito intensa, o nome de Lima Barreto é algo onipresente nas edições do jornal – até 1922, ano em que o escritor faleceu. Não é muito fácil identificar o tipo de relacionamento entre Lima e os redatores do Dom Quixote. Não há correspondência publicada entre Lima Barreto e Bastos Tigre. São poucos os registros existentes.

Um desses registros é uma carta de Domingos Ribeiro Filho, escritor, na época anarquista, amigo de Lima Barreto e colega de repartição pública. Ribeiro Filho colaborou no Dom Quixote ao longo de 1918, mas seus textos destoavam da linha editorial do jornal, principalmente por seu protesto anarquista e algo moralizante, indo às vezes ao protesto meio macabro.[x]

 É esse ponto que aparece na carta: o fato de Ribeiro Filho se sentir “espantado de como ainda me publicam a mim, um boicotado e um insubmisso”. Ribeiro se considera um gauche no Dom Quixote, vivendo sob uma “vaga ameaça que se agrava pela minha acentuada aversão pela pilhéria inócua”. Escreve que tentou, junto a Bastos Tigre, mudar a orientação do jornal, dar-lhe “uma feição combativa, uma face impetuosa e um espírito capaz de ferir de frente.” Tudo em vão, pois o Bastos Tigre era “o avesso do apóstolo e um documento atualíssimo do talento egocêntrico, utilitário e oportunista” e que “o resto do Dom Quixote é feito para anular o mau efeito das minhas irrupções maximalistas (tens lido?)”.[xi]

São palavras duras que não sei se Lima Barreto concordava. Aliás, o autor do Isaías Caminha não concordava nem com o tipo de negócio que Bastos Tigre fazia com as letras, nem com o tipo de literatura que Ribeiro Filho escrevia. Colaborava para o Dom Quixote da mesma forma que para diversos outros periódicos humorísticos – para completar a renda e ir se fazendo notado. Empenhava sua energia criativa para as grandes obras que o fizeram um dos maiores de nossas letras. Ele mesmo havia desabafado ao amigo Antonio Noronha Santos, numa carta de 1908, que achava “bem ignóbil esta minha vida de escriba assalariado a jornalecos de cavação e de pilhérias! Estou tentando me livrar dessa infame cousa”.[xii]

O certo é que, além das crônicas que assinou nas edições do Dom Quixote, o nome de Lima Barreto figurava como uma espécie de personagem do jornal. As observações humorísticas recaiam basicamente em duas características de Lima Barreto – a humilde vestimenta e o alcoolismo, sinais da pobreza do escritor e do fardo pesadíssimo que carregou em vida e que o fez começar a beber.

Reproduzo algumas anedotas:

“Lima Barreto, o elegante romancista, encomendou à Alfaiataria Belchior Irmãos um terno de sobrecasaca. Desconfia-se que ele pretende apresentar a sua candidatura à Academia.”[xiii]

“Foi muito comentada nos salões do Itamaraty, na festa do dia 7, a cabeleira lisa do ilustre sr. Nilo Peçanha. A modificação foi atribuída à loção denominada ‘Carapinhina’, que tem dado excelente resultado no cabelo dos srs. Paulo Barreto, Hermes Fontes e do nosso companheiro Antônio Torres. Os únicos atestados negativos são, até agora, do dr. Juliano Moreira e do romancista Lima Barreto.”[xiv] [o traço racista da brincadeira é evidente, pois todos os nomes citados eram homens negros].

“O romancista Lima Barreto é outro homem de sociedade que desperta atenção. Isso não lhe acontece, porém, pela esbelteza do porte, mas pelo auxílio do alfaiate, o qual se esforça na feitura das suas roupas, que ele tem o cuidado, entretanto, de mandar fazer, sempre, pela medida dos outros.”[xv]

“O Lima Barreto acaba de receber cem mil réis no Garnier, quando a cédula lhe foge da mão e cai num lugar pouco limpo.

L’argent n’a pas d’odeur [O dinheiro não tem cheiro] – diz o gerente.

E o Lima:

Et l’auteur n’a pas d’argent [E o autor não tem dinheiro].

E saiu com o ‘cobre’.”[xvi]

Essa pequena amostra veio da coluna “Elegâncias”, que tinha como função, no Dom Quixote, fazer uma paródia humorística da famosa coluna “Binóculo”, criada pelo jornalista e escritor Figueiredo Pimentel, no jornal Gazeta de Notícias. “Binóculo” foi um dos protótipos das muy famosas “Colunas Sociais” que se alastraram pela imprensa nas décadas seguintes.

Lima Barreto tornou-se figura frequente da coluna “Elegâncias”. Não tem como saber o que Lima pensava das sacanagens, ele próprio um notório piadista. Era o espírito da época, num tempo em que os literatos, os homens de letras, tinham um status social que os tornavam verdadeiras celebridades. Não por acaso aquele período também ser denominado como ‘República das Letras’. Conforme observou a historiadora Isabel Lustosa: “O prestígio dos literatos significa também o prestígio de suas atitudes, quase sempre contaminadas pela irreverência. Para elas também vale a lei do espírito. Mesmo as mais absurdas, quando tomadas com o aval do espírito, perdem o seu caráter pernicioso para enriquecer o folclore que torna notáveis os boêmios. Nenhum período da história brasileira se igualará à virada o século como a era de ouro da anedota e da irreverência”.[xvii]

Acerca de sua vestimenta, o próprio Lima Barreto teceu algumas considerações, tal como aparece numa de suas crônicas mais pungentes: “não se incomodem com meu esbodegado vestuário, porque ele é a minha elegância e a minha pose.”[xviii]

Parece mesmo que Lima Barreto gostava de provocar a gente chic do Rio de Janeiro: “quando venho à Avenida [Avenida Central, hoje Rio Branco], principalmente nos dias em que estou sujo e barbado, sinto uma grande volúpia em comparar os requintes de aperfeiçoamento da indumentária, com o meu absoluto relaxamento…”[xix]

Num texto de 1921, no qual relembra coisas do passado, podemos observar que a questão do vestuário já vinha de longa data: “Quando, há vinte anos, fui morar nos subúrbios, o trem me irritava. A presunção, o pedantismo, a arrogância com que me olhavam as minhas roupas desfiadas e verdoengas, sacudiam-me os nervos e davam-me ânimos de revolta. Hoje, porém, não me causa senão riso a importância desses magnatas suburbanos.”[xx]

Vistas por esse ângulo, as sacanagens envolvendo Lima Barreto e seu vestuário vinham, por uma lado, das dificuldades financeiras do escritor, e de outro, da assunção dessa pobreza transformada em pose. Vale notar que esse Lima Barreto molambento sobre quem tanto se falou realmente existiu, mas por alguns momentos – “principalmente nos dias em que estou sujo e barbado” – e não foi, em hipótese alguma, uma constante em sua vida. A imagem tétrica do escritor bêbado e mal vestido, caindo pelas sarjetas, surgiu como um recorte enviesado, muitas vezes maldoso, de sua biografia e que perdura até hoje.

O próprio Bastos Tigre, que conviveu com Lima Barreto por quase duas décadas, num momento muito especial em que resgata a história do escritor, insiste naquele ramerrão da cachaçada e da vestimenta esbodegada. Escrevendo algumas crônicas de memória no ano de 1946, numa série intitulada “Emilio de Menezes e a Boemia do seu tempo”, concede três textos para o autor do Policarpo Quaresma. O primeiro é a boa e velha anedota envolvendo Lima Barreto e a cachaça:

“Contava-se na roda da má-língua que Lima Barreto se queixava da sede passada numa cidade do nordeste, em plena seca.

– Imaginem, dizia ele ao Armando Gonzaga, que uma noite no Apodi [região montanhosa do Rio Grande do Norte], a minha sede foi tanta que, desesperado, avancei numa garrafa de verniz que descobri em cima de uma prateleira.

– E bebeste o verniz?

– Bebi, quero dizer, o verniz propriamente não. O verniz estava depositado no fundo da garrafa; tive todo o cuidado de ingurgitar o álcool que estava em cima.

– Espantoso! Exclamou Gonzaga. Mas não havia, por ali por perto, um poço, um riachinho, uma lagoa, qualquer coisa com água?

– Haver havia; mas eu ia lá pensar em tomar banho àquela hora!

(Diga-se em bem da verdade que Barreto nunca andou pelo nordeste…)”[xxi]

Outra lembrança de Bastos Tigre, essa mais longa e ‘pessoal’, saiu na edição de 12 de dezembro daquele mesmo ano. O amigo reconhece, sem se colocar entre os divulgadores, que o nome de Lima Barreto vinha sendo sistematicamente relembrado através de certas anedotas: “os que têm se ocupado da personalidade ímpar do autor de Isaías Caminha conheceram-no através de informações e anedotas, estas sempre relacionadas com o alcoolismo do escritor.”[xxii]

Tigre considera que a embriaguez na vida de Lima Barreto “era consequência de sua cabeça fraca e do seu estado de permanente desnutrição.” Por isso, bastava apenas uma dose de parati “para deixá-lo transtornado; um pouco mais e ei-lo trôpego, mastigando as palavras, misturando as ideias; Fato notável a registrar: Este mestiço sem educação social, frequentando durante muitas horas do dia os meios inferiores da sociedade, era incapaz, mesmo no período mais agudo da embriaguez, de pronunciar qualquer palavra suja, qualquer expressão obscena. A sua limpeza, o seu comedimento de linguagem foram fatos sempre notados e comentados pelos seus companheiros”.

Por aí já se pode notar a distância ‘sociológica’ entre os dois, além do preconceito bastante enraizado no modo como Tigre se refere às classes populares. Não deixa de comentar, também, “o desleixo da indumentária”, que era algo “incorrigível” no escritor: “Lima Barreto era de um absoluto desleixo de toilette. Se a roupa se manchava de comida ou bebida, pouco se lhe dava. Por vezes dormia vestido e, pela manhã e dia a fora, e roupa amarrotada denunciava o leito duro e incômodo em que repousava”.

Homem de raros amigos aquele Lima Barreto. Segundo Tigre, poucos foram aqueles que “lhe dedicaram real estima, admirando a obra e não se envergonhando de sua companhia, apesar do desalinho e do precário asseio de sua roupa sob medida… dos outros. Lima Barreto, naquela casca de pedinte, era demasiado orgulhoso para solicitar dinheiro a quem quer que fosse. No máximo aos seus íntimos pedia uns níqueis para o bonde”.

Importante ressaltar que lá no final do artigo o memorialista se esforça um pouco para ampliar o painel de informações sobre a vida do escritor. Aos contadores de anedotas suspeitas que envolviam Lima Barreto numa vida lastimável, quase um catrumano, Tigre chama atenção para a importância de se “examinar a série de complexos que influíam no espírito do pobre romancista para levá-lo a se aturdir, a criar com o álcool um ambiente artificial em que lhe parecesse menos doloroso o suplício de viver: Para começar, a cor, que foi para ele grande e pesada pedra no caminho. Logo a seguir a pobreza junta a incapacidade psíquica de ‘cavar’, de ‘tomar’ o dinheiro. Junta-se a isso o pai doente mental, que o seu carinho de filho conservava em casa, transformando o seu lar humilde em sítio de tristezas e preocupações. Lima Barreto fugia para a rua, para o fundo do boteco suburbano onde encontrava os personagens dos seus romances. A bebedice (dipsomania, chamam-na depois de sua morte) foi um mal para ele e para as letras pátrias.”

O Dom Quixote se aproveitou o quanto pôde dessa – sempre importante frisar – face atribulada da vida de Lima Barreto. Das páginas do jornal surgiam os sedimentos que ajudaram a marcar a imagem do escritor borracho e molambento. Citemos algumas:

“Lima Barreto, o magnífico Lima Barreto das ‘Memórias do escrivão Isaías Caminha’ fez-se maximalista. Diariamente na Associação de Imprensa, faz ele meetings de propaganda, organiza sovietes, distribui a fortuna do Modesto Leal e do Visconde de Moraes, desanca São Paulo, desmoraliza o exército, dissolve a marinha e prega a política dos soldados e operários. Há dias servia-se ele de um modesto chope no bar Rio Branco, quando, atentando no copo que lhe serviram, onde o loiro líquido chegava apenas a três dedos abaixo da borda do recipiente, bradou:

– Como é isso?

– Capitão?

– Não senhor! Soldado raso! Eu sou maximalista! Não admito galões!

O garçom, temendo a bomba de dinamite, nivelou a cerveja pela cota mais alta.”[xxiii]

 “O sr. ministro da Agricultura está vivamente interessado, agora, em descobrir o melhor processo de pesca nas costas do Brasil. O dr. Lima Barreto, do ministério da Guerra, ficou de apresentar à inspetoria da Pesca um memorial sobre a pesca do Parati.”[xxiv]

“Queixava-se o Lima Barreto da falta d’água.

– E quando sente essa falta onde é que vai você, Barreto?

Recto ao bar… respondeu o romancista do Isaías Caminha.”[xxv]

“– Quais são as maiores cidades do mundo? – perguntaram ao Lima Barreto.

E ele, geográfico:

– Genebra e Parati.”[xxvi]

Rodava pelos jornais da época a notícia de um projeto de lei proibindo a venda de bebidas alcoólicas nos bares, cafés e restaurantes do Rio de Janeiro, após as dezenove horas. Foi um prato cheio para os redatores e desenhistas do D. Quixote.

Sobre esse assunto encontramos pérolas como esta: “Debalde empenhará o seu magnífico talento, no combate de morte às garrafas, o sr. Francisco Sá [Senador]. O sr. Raymundo de Miranda [Senador] será à toa que soltará berros condenando todas as águas que passarinho não bebe; na Câmara, nem falemos; seria difícil enumerar quantos legisladores abstêmios cansarão inutilmente os bofes pregando a quebra de todos os cascos… vazios. Uma tal medida além disso seria contraproducente; toda a perseguição faz mártires e o martírio é sempre simpático. O fruto proibido é o mais ambicionado; veríamos progredir, prosperar gloriosamente a ‘Alcoolpathia’, a nova ciência de curar, a única medicina que segundo afirma o professor Amorim Júnior, poderá acabar com o reumatismo do Lima Barreto.”[xxvii]

Não são apenas as anedotas esparsas que povoam as páginas do jornal. Lima Barreto figurava como verdadeiro personagem nas crônicas e em outros registros, tendo seu nome quase sempre ligado ao álcool. Aparece na famosa série História do Brasil pelo Método Confuso, assinada por Mendes Fradique, pseudônimo do médico capixaba José Madeira de Freitas.

Escrita no melhor estilo folhetinesco, a série escrita por Mendes Fradique é uma paródia aos livros didáticos sobre a história do Brasil, mas não para por aí. Segundo a historiadora Isabel Lustosa, essa parte humorística e satírica da obra de Madeira de Freitas se constitui como síntese de toda uma forma de expressão daquele período, entre o final do século XIX até meados dos anos 1930, ou seja, o período da primeira República: a carnavalização da história, da sociedade, da política, das letras, das personalidades.

A História do Brasil pelo Método Confuso “obedece à cronologia dos fatos históricos tradicionalmente seguida pelos livros didáticos dedicados às escolas primárias. Mas essa obediência à cronologia é relativa. Mendes Fradique trabalha, na verdade, com dois tempos simultâneos. Num movimento diacrônico, a narrativa obedece ao modelo tradicional. No entanto, num movimento sincrônico, faz com que essa história tradicional aconteça num Brasil contemporâneo.”[xxviii]

É assim que tomamos conhecimento da partida da frota de Cabral, “confiada a parte técnica ao almirante português Capistrano de Abreu, e o comando da frota ao Coronel Pedro Álvares Gouveia de Cabral, oficial da briosa, cavador-mor do Reino e antigo senador pelo Amazonas”[xxix]

O livro exige um conhecimento muito pormenorizado da história do Brasil, principalmente da década de 1910. O próprio Cabral – o português –, como sugere Isabel Lustosa, aparece imbricado na figura do coronel Antônio Clemente Ribeiro Bittencourt, que foi governador do Amazonas entre 1908 e 1913, apelidado de Pedro Álvares Cabral e acusado de promover bebedeiras e orgias no palácio do governo. Capistrano de Abreu, por sua vez, foi um dos mais importantes historiadores brasileiros e era tido como figura das mais relevantes entre a intelectualidade brasileira do início do século XX: “O resultado é um curioso painel da sociedade e de suas elites políticas e culturais da Primeira República, em forma de quebra-cabeça ou de charada, cheio de pistas falsas.”[xxx]

Esse é o mecanismo básico do método de Fradique Mendes: a história ‘oficial’ do Brasil diluída e imbricada no tempo contemporâneo do autor; tudo costurado num humor cínico e moleque, valorizado pelas caricaturas grotescas feitas pelo próprio Madeira de Freitas. Não há nenhum tipo de gradação entre os tempos históricos: “a banalização dos personagens se dá através de seu contato cotidiano com a realidade familiar ao leitor e ao autor.”[xxxi]

No capítulo 5 do livro [‘As primeiras cavações – Caramuru’], Mendes Fradique narra a história de um tripulante que conseguiu sobreviver a um torpedeamento de uma das frotas enviadas de Portugal para o Brasil. Era o início da colonização, um dos navios da frota portuguesa foi torpedeado por um submarino alemão [referência aos ataques alemães que resultaram na entrada do Brasil na Primeira Guerra Mundial]. Só restou um sobrevivente que, “depois de nadar oito dias e oito noites, deu à costa encharcado, sobraçando uma apólice de companhia de seguros. Na praia encontrou Savage Landor, contrabandista e homem de letras que, já havia algum tempo, ganhava a vida nas costas do Brasil.”[xxxii]

Savage Landor vivia numa gruta, onde guardava o fruto de suas maquinações como contrabandista. Conseguiu aplicar um golpe no náufrago, ficando com as apólices de seguro e conseguindo fugir no momento exato em que a gruta havia sido descoberta pela polícia indígena. O náufrago foi preso e descobriram que se tratava de ninguém menos do que o próprio Caramuru [Diogo Alvares Correia], que reagiu à prisão e disparou um tiro contra o doutor Ozório Duque, descobridor da verdadeira identidade do náufrago. Caramuru errou o tiro, ou pior, acertou na galinha d’Angola, que havia feito toda a travessia junto a Pedro Alvares Cabral: “O tiro causou verdadeiro escândalo entre os indígenas, sendo nomeada uma comissão de notáveis para explicar o estouro. Foi aberto o inquérito. Dando uma busca na gruta de Savage, encontraram várias garrafas de uísque, que o sr. Lima Barreto, membro da comissão, concluiu ser uma edição inglesa do parati.”[xxxiii]

Lima Barreto também aparece no capítulo sobre a Independência, mais precisamente no contexto das chamadas Cortes de Lisboa – tão decisivo para o rompimento entre o Brasil-colônia e Portugal: “Os atos de rebeldia às cortes de Lisboa sucediam-se com amiudada frequência, e foi numa tarde de chuva que o sr. Lima Barreto organizou o conselho de procuradores, encarregado de procurar um meio de organizar, quanto antes, a independência pessoal de cada um.”[xxxiv]

Seu nome continua aparecendo em vários episódios da História, a maioria das vezes relacionado com o álcool. A título de último exemplo, cito a presença do escritor no capítulo sobre o reinado de D. Pedro I, uma reinvenção fradiqueana do episódio da dissolução da constituinte, ocorrido em novembro de 1823, onde aparecem outros nomes contemporâneos a Mendes Fradique, como Bastos Tigre, o ator Leopoldo Fróes, entre outros: “Foi nessa mesma tarde que Pedro I, o Rotschild, entrando na Pascoal [famosa confeitaria nos anos 1910], ligeiramente tocado, aderiu à roda do guaraná, e como não gostasse dessa bebida, por causa da trepação [chateação, zoeira dos outros], pediu um caldo de garrafa com água de coco. Bebeu; chegou o Lima Barreto: beberam. Apareceu o Cavalcanti [Lima Cavalcanti, o João Barafunda], continuaram a beber. A horas tantas, esgotado o estoque da Pascoal, d. Pedro, insaciável, dissolveu a Constituinte e bebeu.”[xxxv]

Em outra publicação inusitada, Lima Barreto aparece como médium numa sessão espírita; uma crônica cheia de fanfarronice envolvendo o senador Raymundo de Miranda, grande inimigo da bebida: “A sessão memorável da semana foi, porém, a que se realizou no escritório do sr. Raymundo de Miranda, na qual tomaram parte, entre outras pessoas gradas, os srs. senadores Adbias Neves, dr. Adoasto de Godoy, dr. Bastos Tigre, dr. Luiz Edmundo, e, servindo de ‘médium’, o romancista Lima Barreto.”[xxxvi]

A criatividade dos redatores do D. Quixote não tinha limites. Na edição de 9 de março de 1921 encontramos a dramaturgia de um sainete [gênero de peça curta, popular, em um ato, cômica ou satírica] intitulada “Grêmio Temperança” e assinada por um tal Joachim Conceagá. A cena se passa “num clube elegante, às três horas de uma linda madrugada” e retrata uma “memorável reunião presidida por Lima Barreto”, reunião essa que tinha como objetivo a fundação do “Grêmio Temperança”, uma brincadeira, como diversas outras que já foram mostradas, com a questão da bebida entre os intelectuais e que trazem Lima Barreto como figura central.[xxxvii]

Finalizando essa pequena amostra que recobre os cinco anos nos quais Lima Barreto figurou como personagem do Dom Quixote, citemos as quadrinhas da seção “De Zóio Aberto”, de janeiro de 1922:

Pru fala nisso eu lembrei

Duma ideia singulá,

Se a moda de dá cachaça

Pr’os ôtomóve pegá,

A garage pode sê

A Brahma ô ontonce o Paschoá,

Se acauso o Lima Barreto

Num subé de otros lugá.[xxxviii]

Existem outras referências ao nome de Lima Barreto que não estão necessariamente relacionadas ao álcool ou ao estilo maltrapilho do escritor. São raras. Uma delas, uma carta do escrivão Isaías Caminha endereçada ao Policarpo Quaresma, dois de seus principais personagens: “Meu caro Policarpo Quaresma. Deixem que os tolos riam do teu inabalável patriotismo. Bem rirá quem rir por último. O Brasil é o país do futuro; ele se desenvolverá pela força de sua lavoura, do seu comércio e da sua indústria, queiram ou não queiram os pessimistas. Ainda hoje, enquanto espantava as mágoas, deleitando-se com o cigarro que me ofereceu o Lima Barreto, cheguei à conclusão de que não é possível competir conosco em matéria de bons cigarros. Curioso, li a etiqueta: York – Marca Veado. Fuma-o e recomenda-o aos teus amigos. Sempre teu afetuoso; Isaías, Escrivão.”[xxxix]

Mas o que ficou mesmo, para a posteridade, ao lado do reconhecimento como um dos maiores escritores que tivemos, foi a fama de bebum e maltrapilho. E, realmente, nesses momentos, Lima Barreto descia até à sarjeta. Passou por algumas internações em hospitais psiquiátricos por conta do abuso do álcool, que começou a consumir depois dos trinta anos de idade.

No final da vida já estava quase que totalmente destruído pela bebida. É dessa época que data um encontro, ou desencontro, entre Lima Barreto e o jovem Sérgio Buarque de Holanda. A cena foi narrada pelo próprio autor de Raízes do Brasil, quando participava da banca de doutoramento do historiador Nicolau Sevcenko. Este descreveu o incidente numa carta para Francisco de Assis Barbosa: “O Prof. Sérgio relatou um incidente, que considerou como extremamente desagradável, ocorrido certa vez entre ele e o escritor [Lima Barreto]. Estando a passear com uma sua namorada, moça muito educada e de elevada condição social, deparou-se com o literato num cruzamento de uma das ruas próximas da Av. Rio Branco. Lima Barreto, afirmou, estava bêbado e sem camisa e dirigiu-se aos dois de forma rude e deselegante, em tom de desafio quanto à sua situação e desalinho, o que a ambos deixou vexados e constrangidos. O tom melancólico da voz do arguidor parecia confirmar que a mera evocação do incidente ainda lhe despertava uma sensação desconfortável. Contudo, ele ainda ressaltou que era necessário compreender que essa deselegância e desmazelo do amanuense foram-lhe impostas originalmente pela própria situação de penúria e as reais dificuldades financeiras em que o autor vivia.”[xl]

Um contraponto

Valorizou-se muito essa parte desgovernada da vida de Lima Barreto, que contou com alguns episódios críticos, como os surtos psiquiátricos desencadeados pelo excesso de álcool e eventos como esse ‘encontro’ com Sérgio Buarque de Holanda. Soma-se a isso o anedotário característico da vida boêmia e intelectual do Rio de Janeiro das primeiras décadas do 1900. Por outro lado, é possível encontrar vestígios muito eloquentes de que Lima Barreto não foi apenas o bêbado mal vestido que tinha momentos de genialidade.

Existem muitas evidências segundo as quais Lima Barreto participava ativamente dos círculos sociais da República das Letras e não apenas das “rodas” dos botequins e confeitarias. No início da década de 1910 chegou a fazer parte de alguns julgamentos, atuando como jurado no tribunal do júri, sendo, inclusive, escolhido presidente em um deles.[xli]

Em agosto de 1911 discutia-se a criação da “Academia d’A Imprensa”, também chamada de “Academia dos Novos” ou “Academia dos Dez”, para rivalizar com a Academia Brasileira de Letras e abrir espaço para novos valores da literatura nacional. Trata-se de uma iniciativa do grupo de intelectuais ligados ao jornal A Imprensa, que “havia relacionado nada menos de trezentos nomes da nova geração, figurando entre eles o de Lima Barreto. Esses trezentos elegeriam os dez membros efetivos da Academia. Cada candidato eleito poderia votar em três nomes diferentes. Lima Barreto interessou-se pelo pleito. Pelo menos, esteve presente à apuração, como se vê na fotografia, publicada na primeira página de A Imprensa, em 12-8-1911”.[xlii]

A Academia dos Novos não chegou a se concretizar e acabou poucas semanas depois do pontapé inicial. Houve protestos contra o resultado do concurso para a eleição dos dez efetivos. E tudo acabou num ridículo duelo de espadas entre o crítico literário d’A Imprensa, José do Patrocínio Filho, e um dos candidatos gorados, o cônsul Ferreira de Vasconcelos.

Não é muito difícil encontrar o nome de Lima Barreto em diversas ocasiões solenes e ao lado das figuras representativas da intelectualidade do período. Vejamos um pequeno recorde de um dos principais jornais da época: O Paiz.

Nesse jornal havia também a tal “coluna social”, onde encontramos Lima Barreto participando, por exemplo, da organização da festa de recepção a Olavo Bilac, que regressava de uma viajem à Europa. A homenagem ao príncipe dos poetas foi uma iniciativa dos membros da Associação Brasileira de Imprensa, da qual Lima Barreto era sócio. As comissões eram de Recepção, Convites e de Festa e dentre as muitas adesões foram recebidas as seguintes: “Fontoura Xavier, Humberto Gottuzo, Sylvio Bevilaqua, José Oiticica, Lima Barreto…”.[xliii]

Em junho de 1914 era fundada a Sociedade de Homens de Letras, por iniciativa do escritor Oscar Lopes. Foi mais uma tentativa de se criar uma organização cujo objetivo era trabalhar pela profissionalização dos escritores e pela defesa das atividades intelectuais. E lá estava Lima Barreto como um dos cofundadores da nova instituição.

Do discurso inaugural de Oscar Lopes cito essa passagem: “Há bem poucos anos a ideia foi agitada pelos srs. Costa Rego, Goulart de Andrade e Sebastião Sampaio. Também não foi essa a primeira vez em que de tal se cogitou no Brasil: suponho que, em 1890, os mais preclaros nomes das diversas correntes literárias da época logravam obter uma forma de agremiação, cujos fins principais eram, como os da presente, a defesa da produção mental. É possível que haja mais iniciativas. O sr. Lima Barreto, que há poucos dias descobriu os estatutos de outra, a mais antiga de todas, lembrou-se gentilmente de m’os oferecer.”[xliv]

As reuniões da Sociedade dos Homens de Letras ocorriam no luxuoso prédio do Jornal do Comércio e contavam, em suas ocasiões solenes, com a fina flor da sociedade carioca. Uma de suas atividades mais concorridas era a “Hora Literária”, onde ocorriam os recitais de poesia, aos sábados à tarde. Foi num evento da “Hora Literária” que uma tragédia ceifou a nova agremiação de escritores: o assassinato do poeta Annibal Theóphilo pelo escritor e recém eleito deputado Gilberto Amado. O crime aconteceu na tarde do dia 19 de junho de 1915 e virou notícia bombástica entre a população carioca. Gilberto foi preso em flagrante após disparar vários tiros que puseram fim à vida do poeta. Houve ampla cobertura por parte da imprensa, que noticiava o caso frenética e diariamente, principalmente os bastidores, tanto do crime quanto do processo criminal.[xlv]

O nome de Lima Barreto continua aparecendo nas páginas d’O Paiz, como participante e cofundador de grêmios, sociedades, organizações etc. É ocaso, em janeiro de 1916, da notícia sobre a fundação do Centro Carioca: “Reúnem-se no próximo dia 20 do corrente, às 14 horas, no Liceu de Artes e Ofícios, os filhos do Distrito Federal, a fim de tratarem da fundação de um centro beneficente, sem cor política. Aderiram e aceitaram o título de sócios, os Srs. Raul Pederneiras, Francisco Bittencourt Filho, José Mariano, Lima Barreto, Nicanor Nascimento…”[xlvi]

Em julho daquele mesmo ano, o Paiz já noticiava alguns eventos realizados pelo Centro Carioca: “Realiza-se no dia 14 do corrente, no parque da Praça da República, uma encantadora festa organizada pelo Centro Carioca, novel agremiação que conta elementos tais como Lima Barreto, Regulo Valderato, Raul Pederneiras, Dr. Carlos Magalhães, Olavo Bilac…”[xlvii]

Na mesma “Vida Social”, outra festa organizada pelo Centro Carioca, em setembro daquele mesmo ano: “Realiza-se a 17 de setembro vindouro, no Parque da Praça da República, com um atraente programa, confeccionado pelos sócios: Dr. Raul Pederneiras, Dr. Francisco Salema Garção Ribeiro, Amadeu de Beaurepaire Rohan, Dr. A. Peres Júnior, Lima Barreto, Dr. Paulo Frontin e outros”.[xlviii]

Uma pesquisa mais depurada em outros jornais e revistas e um aprofundamento nas atividades desenvolvidas por tais agremiações poderia enriquecer qualitativamente esta face da vida de Lima Barreto. Creio ter sido suficiente esses pequenos exemplos para demonstrar que não foi só de cachaça e botequim que o escritor viveu. Por outro lado, existe o revigoramento das pesquisas em torno da categoria do relato autobiográfico, que desloca o protagonismo de uma referencialidade autocentrada e estável para múltiplas possibilidades e estratégias de autofiguração de um “eu que escreve”. Muitas vezes não há uma única coincidência entre um sujeito que narra sua vida – num diário, por exemplo – e a pessoa de carne, sangue, coração, cérebro e estômago que está diante da folha de papel em branco.

O que existe são estratégias. Para o escritor “mulato” do começo do século passado, sobre quem pesava toda sorte de evidências cientificas que comprovavam a inferioridade da mistura de raças, a degeneração já era um dado da natureza; as qualidades morais e os traços físicos coincidiam: quanto mais escura a cor da pele, mais desgraçado. Parece que as coisas não mudaram muito de lá pra cá.

A centralidade de determinado traço de uma personalidade, traço que nos é legado pela transmissão histórica, nunca isenta ou imparcial, depende de um contexto. A biografia de Lima Barreto ainda está inscrita em determinações e categorias de julgamento de mais de um século. O esforço de Francisco de Assis Barbosa infelizmente não teve continuidade. Pelo contrário. Algumas “novas” biografias que surgiram retrocederam lá pro começo do século XX, e quando tentam avançar um pouco não passaram do esforço embolorado de tirar conclusões sobre a vida do escritor a partir de sua obra de ficção, apelando para o providencial alter ego do autor.

Acredito que existe uma diferença radical entre a escrita de introspecção feita por um autor branco e burguês, com seus dramas e contradições privadas, e a inserção nesse tipo de escrita de quadros da vida psíquica de um escritor radicado na experiência do trauma histórico da escravidão. A questão foi colocada por Paul Gilroy: “Como devem ser pensadas as histórias descontínuas da resistência da diáspora […] Como essas histórias têm sido teorizadas por aqueles que experimentaram as consequências da dominação racial?” [xlix]. O mesmo movimento que o pensador do Atlântico Negro enxergou na obra de Frederick Douglass talvez seja uma boa para se pensar os “autobiográficos” de Lima, que expressariam “da maneira mais poderosa, uma tradição de escrita na qual a autobiografia se torna um ato ou processo de simultânea autocriação e autoemancipação, cuja apresentação de uma persona pública torna-se assim um motivo fundador dentro da cultura expressiva da diáspora africana.”[l]

*Alexandre Juliete Rosa é mestre em literatura brasileira pelo Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP).

Notas


[i] Marcelo Balaban. Instantâneos do Rio Antigo – Bastos Tigre. Campinas: Mercado das Letras, 2003, p. 11.

[ii] Idem, p. 17.

[iii] Bastos Tigre (D. Xiquote). “A Reclame”. Dom Quixote. Rio de Janeiro, 30 de maio de 1917, p. 11. Neste link.

[iv] Marcelo Balaban. Op. cit., p. 19.

[v] Idem, p. 21.

[vi] Francisco de Assis Barbosa. A vida de Lima Barreto. Belo Horizonte: Autêntica, 2017, p. 107.

[vii] Idem, p. 116.

[viii] Lima Barreto. “A defesa do sr. Café”. Dom Quixote. Rio de Janeiro, 1 de agosto de 1917, p. 12. Neste Link.

A crônica foi recolhida por Assis Barbosa e publicada no volume Coisas do Reino do Jambon – Vol. VIII das Obras Completas de Lima Barreto. São Paulo: Brasiliense, 1956, pp. 94-6. Também presente no Toda Crônica, Vol. 1.

[ix] As crônicas foram publicadas nas edições de 31/01/24 e 24/04/24 do site A terra é redonda e podem ser acessadas através deste link e deste outro link.

[x] Vejam, por exemplo, a crônica “O pato sem cabeça”, de 09 de outubro de 1918. Neste Link.

[xi] Carta de Domingos Ribeiro Filho a Lima Barreto. Sem data, mas provavelmente de 1918. Disponível em Lima Barreto. Correspondência – Tomo I. Obras Completas de Lima Barreto, Vol. XVI. São Paulo: Brasiliense, 1956, p. 214-5.

[xii] Lima Barreto. Correspondência – Tomo I. Obras Completas de Lima Barreto, Vol. XVI. São Paulo: Brasiliense, 1956, p. 35.

[xiii] Dom Quixote. Elegâncias. Rio de Janeiro, 22 de agosto de 1917, p. 06. Neste Link.

[xiv] Dom Quixote. Elegâncias. Rio de Janeiro, 19 de setembro de 1917, p. 06. Neste Link.

[xv] Dom Quixote. Elegâncias. Rio de Janeiro, 25 de dezembro de 1918, p. 31. Neste Link

[xvi] Dom Quixote. Elegâncias. Rio de Janeiro, 11 de junho de 1919, p. 06. Neste Link.

[xvii] Isabel Lustosa. Brasil pelo Método Confuso: humor e boemia em Fradique Mendes. Rio de Janeiro: Bertand Brasil, 1993, p. 38 – 40.

[xviii] Lima Barreto. “Quem será, afinal?”. A. B. C. Rio de Janeiro, 25 de janeiro de 1919, p. 13. Neste Link.

Crônica recolhida pelo próprio Lima Barreto para o volume Bagatelas, publicado postumamente. Rio de Janeiro: Empresa de Romances Populares, 1923, pp. 81–85. Presente também em Toda Crônica, Vol. 1.

[xix] Lima Barreto. “Vestidos Modernos”. Careta. Rio de Janeiro, 22 de julho de 1922, p. 32. Neste Link.

Recolhida na coletânea Marginália – Vol. XII das Obras Completas, p. 89. Em Toda Crônica, Vol. II.

[xx] Lima Barreto. “O Trem de subúrbios”. Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro, 21 de dezembro de 1921, p. 02. Neste Link.

Crônica recolhida por Assis Barbosa no volume Feiras e Mafuás, pp. 241–46. Em Toda Crônica, Vol. II.

[xxi] Bastos Tigre. “Emilio de Menezes e a Boemia do seu tempo”. Vamos ler! Rio de Janeiro, 3 de outubro de 1946, p. 60. Neste Link.

A crônica foi recolhida por Marcelo Balaban, op., cit., p. 152.

[xxii] Bastos Tigre. “Emílio de Menezes e a boemia do seu tempo”. Vamos ler! Rio de Janeiro, 12 de dezembro de 1946, p. 35 e 63. Neste Link.

[xxiii] Dom Quixote. Rio de Janeiro, 27 de março de 1918, p. 10. Neste Link.

[xxiv] Dom Quixote. Boletim do dia.Rio de Janeiro, 05 de março de 1919, p. 10. Neste Link.

[xxv] Dom Quixote. Rio de Janeiro, 08 de outubro de 1919, p. 10. Neste Link.

[xxvi] Dom Quixote. Rio de Janeiro, 12 de novembro de 1919, p. 10. Neste Link.

[xxvii] João Qualquer. A vitória dos páos d’água. Dom Quixote. Rio de Janeiro, 17 de setembro de 1919. Neste Link.

[xxviii] Isabel Lustosa. Brasil pelo Método Confuso: humor e boemia em Fradique Mendes. Rio de Janeiro: Bertand Brasil, 1993, p. 127.

[xxix] Mendes Fradique (José Madeira de Freitas). História do Brasil pelo Método Confuso. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 63.

A série original foi escrita ao longo do ano de 1919, no D. Quixote. Em 1920 saiu em livro pela Livraria e Editora Bento Ribeiro. Em 1923 já estava na quinta edição, com mais de 15 mil exemplares vendidos. A partir desse link é possível acessar essa edição da obra.

[xxx] Isabel Lustosa. “Introdução”. In: História do Brasil pelo Método Confuso. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 16.

[xxxi] Isabel Lustosa. Brasil pelo Método Confuso, p. 130.

[xxxii] Mendes Fradique. História do Brasil pelo Método Confuso, p. 94. (“Arnold Henry Savage Landor [1865 – 1924], filho de ingleses, nascido na Itália e educado na França, esteve no Brasil na primeira década do século XX. Autor de vários livros de viagens com relatos fantasiosos”. Isabel Lustosa, op. cit., p. 295.)

[xxxiii] Idem, p. 95. Através desse link vocês podem consultar a publicação original.

[xxxiv] Idem, p. 130.

[xxxv] Idem, p. 136.

[xxxvi] Dom Quixote. Elegâncias. Rio de Janeiro, 12 de janeiro de 1921, p. 12. Neste Link.

[xxxvii] Dom Quixote. O Grêmio Temperança – sainete por Joachim Conceagá. Rio de Janeiro, 9 de março de 1921, p. 18 e 19. Neste Link.

[xxxviii] Joaquim da Sirva Garvão. De Zóio Aberto. Rio de Janeiro, 11 de janeiro de 1922, p. 23. Neste Link.

[xxxix] Dom Quixote. Rio de Janeiro, 10 de outubro de 1917, p. 21. Neste Link.

[xl] A carta de Nicolau Sevcenko a Francisco de Assis Barbosa foi descoberta pelo pesquisador Denilson Botelho, a quem agradeço pelo envio do documento na íntegra. Ver o artigo “Lima Barreto é proibido no jornal!”, a partir do link:

[xli] A esse respeito ver a crônica “Um jantar no Júri”, publicada em outubro de 1915 na revista Careta e o artigo “Os uxoricidas e a sociedade brasileira”, publicado na Revista Contemporânea em março de 1919.

[xlii] Francisco de Assis Barbosa. “Alcindo Guanabara – 1911”. In: Lima Barreto. Correspondência ativa e passiva, 1º Tomo. Obras Completas de Lima Barreto – Vol. XVI. São Paulo: Brasiliense, 1956, p. 235. A partir deste link vocês podem ver essa foto raríssima citada por Assis Barbosa, onde Lima Barreto aparece, ao fundo, acompanhando a apuração da eleição:

[xliii] O Paiz. Vida Social. Rio de Janeiro, 25 de junho de 1913, p. 03. Neste Link.

[xliv] O Paiz. Sociedade de Homens de Letras – Sessão de fundação. Rio de Janeiro, 18 de junho de 1914, p. 2. Neste Link.

[xlv] A partir desse link vocês têm acesso ao artigo “O assassinato de Annibal Theophilo: honra literária e conflitos entre escritores no rio de janeiro”, escrito pelo historiador Marcelo Balaban, que reconstrói e interpreta todo aquele episódio.

[xlvi] O Paiz. Os cariocas fundam um centro de resistência. Rio de Janeiro, 16 de janeiro de 1916, p. 7. Neste Link.

[xlvii] O Paiz. Vida Social. Rio de Janeiro, 07 de julho de 1916, p. 4. Neste Link.

[xlviii] O Paiz. Vida Social. Rio de Janeiro, 19 de agosto de 1916, p. 4. Neste Link.

[xlix] Paul Gilroy: O Atlântico negro. São Paulo, Editora 34, p. 83.

[l] Idem, p. 151.


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