Lira, a lira e a educação

Foto de Hamilton Grimaldi
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Por LUIZ ROBERTO ALVES*

O presidente da Câmara diz não fazer sentido gasto obrigatório com educação na pandemia, com pleno apoio da figura que desonra até Chicago, o Guedes

Agora está esclarecido o que disse o presidente da Câmara Federal: o “remédio amargo” nada tinha a ver com Bolsonaro e sim com outras situações e fatos. Afinal, o texto linguístico existiu e tudo o que é expresso deve ser traduzível para ser e contar como fenômeno humano, como nos ensinam os mestres mundiais das ciências da linguagem. Ou será que Lira nada disse de político e os remédios amargos eram tão somente as mezinhas de seu uso pessoal para suportar indigestão, congestão estomacal ou ansiedade?

Tirando fora a figura sinistra do Planalto, parceiro do Lira, há uma tradução possível do texto lírico. Tem a ver com a educação, pois a potestade legislativa acaba de dizer (e não revogou ou pediu desculpas) que “não faz sentido manter gasto obrigatório com educação na pandemia” (CNN Business, Anna Russi e Beatriz Gurgel).

Provavelmente, o último campo de saber em que o senhor Lira pode dar seus pitacos é o da educação. A única coisa que ele conhece é que existe certo patamar constitucional (artigo 212) para investimento e manutenção das atividades educacionais nas três instâncias de governo, bem como para a saúde. Sim, isso ele sabe, mas não gosta, pois prefere torrar esse recurso com emendas parlamentares, quaisquer que sejam elas. São os acordos do Centrão, seu mundo exclusivo. No entanto, ele consegue vociferar que os recursos da educação poderiam ir para a pandemia e suas sequelas.

Além disso, Lira desconhece qualquer coisa em educação. Tampouco sabe que 1,5% do PIB mundial cairá este ano em razão dos problemas que a pandemia malcuidada estão a acarretar para o conjunto das ações educacionais no mundo. Também não sabe que poderia e deveria ser diferente se os governos pensassem em fevereiro de 2020 nas gerações jovens (que não pediram para nascer) e revolucionassem investimentos, metodologias, novas formas de cuidado e ensino e modos de gestão da educação. É improvável que Lira ignore que o seu parceiro do Planalto fez tudo ao contrário e que não deu a mínima para o processo educacional, o que se justifica pela sua total ignorância sobre o assunto, a par de todos os seus ministros do MEC moribundo.

Lira toca lira enquanto bota fogo na educação brasileira, com pleno apoio da figura que desonra até Chicago, o Guedes. Independentemente das controvérsias em torno do incêndio de Roma sob Nero, 64 d.C., a imagem é perfeita em sonoridade e significação. Para dizer o que disse e é traduzível, Lira ignora completamente o que é educação, como se organiza, quais as suas necessidades, qual a extensão dos atos educacionais no país continental, quem são as crianças vulneráveis e priorizadas pelo investimento público e quais as relações entre as políticas de educação e as demais políticas, todas em processo de assassinato no atual “governo”.

Em vez de priorizar os projetos que tramitam (tramitam?) na Câmara e que podem dar alento e orientação para a educação brasileira, Lira projeta meter fogo no que resta dela para este e talvez demais anos sob a força de uma peste. Ora, no interior de uma peste mil emendas parlamentares poderão ter interesse mínimo e funcionar como detalhe na vida dos municípios. Nem todas, ao certo. Mas, ao contrário, a força da cultura – lugar dos símbolos e valores éticos e estéticos – e sua projeção sistemática, que é a educação (cultura e educação são irmãs siamesas que, excepcionalmente, não podem sofrer cirurgia) poderiam ser a solda, a liga, a cola da política local e regional para construir novos sentidos no contexto do horror. Não só sentidos espirituais, mas também profundamente materiais, cotidianos, vivenciados, seja pela implementação de novos currículos de estudo (ah, se o MEC existisse!), pela instalação de internet banda larga em pelo menos 80% das 190 mil escolas brasileiras de educação básica, pela revalorização do magistério em suas muitas horas extras no mal explicado ensino misto, remoto e presencial. Do mesmo modo, a conexão cultura-educação a vigorar nas escolas e entornos escolares dos centros, das periferias, dos quilombos, das florestas, das regiões ribeirinhas, entre os grupos nômades, nos grandes espaços do campo, enfim, em todo lugar, traria alento no meio da morte-assassinato-genocídio, orientação no desnorteio e na evasão de crianças e adolescentes, acolhida especial e segura para orientar quanto à higiene e saúde. Mais: com muitos investimentos (e o mais amplo uso das verdadeiras tecnologias educacionais, fora a parafernália lucrativa de certas empresas) a comunidade educativo-cultural (novo sentido e novo valor para as antigas escolas atomizadas e fragmentadas no território) tanto teria garantido a saúde do magistério comprometido e bem formado de todo o país como teria garantido que os e as estudantes fossem agentes criativos no campo dos diferentes saberes científicos, sociais, ecológicos, éticos e estéticos. E não importa se agissem a partir de suas casas, das várias formas de comunicação social vigentes entre as comunidades e do aproveitamento máximo dos períodos de abertura. Em educação tudo deve ser entendido como espaço de crescimento humano, inclusive os males e os dramas.

O senhor Lira, se tivesse dedicado 5 minutos do seu tempo, por dia, a ler sobre educação e cultura, no Brasil e no mundo, evitaria a condição presente de parvo. Condição não é a essência da pessoa.

Este senhor poderoso, que está a barganhar orçamentos, não consegue ver o educativo-cultural além de uma ou outra escola que conhece, atualmente fechada com cadeado. Do ponto de vista da cidadania, alvo maior da escola cultural, livre, responsável e comprometida, todas as escolas permeiam o bairro e a cidade, visto que, via presença ou via tecnologias, que são extensões capazes de transformar o silêncio em novos discursos sociais, elas poderiam ter sido – e ainda serem – a voz da ciência, a voz da história, a voz da arte, a voz da higiene, a voz da saúde, a voz dos desejos sociais.

Mas nada seria feito sem alto investimento, carinho e persuasão, talvez maior que os percentuais da Constituição Federal. No entanto, isso não justifica outra parvoíce, isto é, “flexibilizar” recursos educacionais em nome dos cadeados escolares e muito menos da saúde, cujos recursos não foram gastos pelo atual governo como deveriam. Segundo a Agência Senado (12.04.2021, 11h13min) “Gasto médio do governo com pandemia é 12 vezes menor em 2021”. Tratou-se de comparar com os gastos de 2020, já poucos.

A lira de nero do senhor Lira tem sido sua verborragia a favor do indefensável. E é assim que ele entrará para a história, o que certamente não o impressiona porque agora ele está no poder. Mas o poder é efêmero e as gerações jovens (como pensou Hannah Arendt em A Crise da Educação) continuarão a estar conosco, ansiosas e necessitadas de educação e cultura em quaisquer circunstâncias. Toda unidade escolar, entendida como lugar de possível cidadania, pode ser lugar de amor, acolhida, merenda, comunicação social, orientação para a saúde, criação virtual ou presencial da cultura. Para isso, investimentos devem ser pesados, incluída a regulamentação imediata do Fundeb, também girando por aí.

Há algo bizarro e bisonho no meio do horror. O senhor Lira, que faz cara de estranho ao papel desempenhado pelo parceirão do Planalto, indutor do desrespeito à higiene, negador do processo científico, abominador de um tempo de fechamento como muitos países fizeram e pouparam vidas, agora, no interior da desgraça cultivada e estimulada, vem com a conversa fiada de cortar recursos da educação. Isso é ato de incendiário, que beira à sandice para quem estuda e vive educação.

Espera-se toda a reação ao incêndio romano que vem da potestade legislativa. Não pode ser na educação e na cultura que recaia o corte de um centavo, sob pena de perdermos o foco civilizatório. No entanto, a considerar o movimento econômico-financeiro do país e suas relações internacionais, há muita obra a ser adiada sem que símbolos e valores fundamentais da civilização brasileira sejam violentados.

Já se machucou demais o magistério, a educação e a cultura. Basta! Viu-se aqui o quanto poderia ter sido feito com investimentos fortes e não se fez. Qualquer justificativa, agora, é parvoíce. É profunda ignorância.

Visto que o pastor Ribeiro não tem voz para nada, exceto talvez para fazer suas pregações, e visto que a sociedade brasileira está manietada ao verdadeiro pânico estabelecido pelo presidente da república, que governou contra o povo, a educação cultural espera orçamentos muitíssimo maiores para ainda operar a favor da saúde, da ciência, dos direitos e do amor aos educandos e educandas, pois Sars Cov 2 não é onda, é uma desgraça ecológica e ambiental que disputa conosco, os humanos, o jogo da inteligência, o espaço estendido da palavra, o tempo aproveitado ao máximo e com cuidado, a gestão inovadora, o uso intenso de todos os sentidos humanos tendentes ao aprendizado da vida e sobre a vida no mundo.

Nada disso se faz sem foco profundo em educação. Senhor Lira, pare com a sua verborragia.

*Luiz Roberto Alves é professor sênior da Escola de Comunicações e Artes da USP.

 

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