Literatura na quarentena: Oração para um pé de chinelo

Imagem: Elyeser Szturm
image_pdf

Por Alcir Pécora*

Comentário sobre a peça de Plínio Marcos

Enquanto preparava a edição da das Obras Teatrais, de Plínio Marcos, que acabou saindo em seis volumes pela Funarte, tive acesso a versões e documentos que me alertaram para a relevância de certas peças do repertório de Plínio, nem sempre as mais conhecidas. Na ocasião, uma das que mais me impressionou foi Oração para um pé de chinelo, de 1969, ano em que Plínio Marcos era o autor teatral mais proibido do Brasil.

A peça começa ex abrupto com a entrada de Bereco, um fugitivo da polícia, no barraco onde dormem Rato, um bêbado tuberculoso, e Dilma, prostituta decadente. Essa irrupção imprevista leva Rato a acordar assustado e automaticamente a proclamar-se inocente sem haver qualquer acusação contra ele, o que evidencia o costume de se ver submetido a interrogatório policial. Quando percebe que o seu barraco havia sido invadido por um marginal e não pela polícia, a sua reação é de alívio, o que também dá um matiz cômico para a cena brusca.

O alívio, entretanto, não se traduz por qualquer camaradagem entre eles, ao contrário: a desqualificação mútua e o rebaixamento do outro constituem o sistema de comunicação entre as personagens trancafiadas juntas no cômodo exíguo, que lembra em tudo a situação incômoda e violenta de uma cela. A exasperação é acentuada por um gesto repetitivo, e repetido, em cena: o vasculhar nervoso de Rato entre as garrafas vazias em busca de alguma que ainda contenha um resto de bebida.

O vazio reiterado delas amplifica as agressões mútuas assim como confirma os sintomas da degradação física, social e moral em que se encontram: Rato está “chué da cuca, dos peitos, escarrando sangue e tudo”; Dilma “fede”, dá “dó” e “nojo”, espalha “chato”; Bereco tem “pinta de pé de chinelo”, que “não leva jeito de ser de nada”, o que, dentro da lógica torta em jogo, implica em falta de autoridade até como marginal.

Contra a sua sina de “pé de chinelo”, Bereco garante estar com muito dinheiro, e Rato confirma a periculosidade dele por seu nome constar de uma lista de execução da força policial, a qual já agora revela seu caráter igualmente marginal: trata-se não da força do Estado a serviço da Justiça, mas de um grupo de extermínio a serviço de particulares, talvez por conta de assaltos cometidos por Bereco.

Ainda assim, a grandeza ou heroísmo do marginal é inverossímil: ele não tem para onde correr e precisa desesperadamente de um esconderijo que o salve. A bem considerar a situação dos três, Bereco é mesmo o que apresenta maior fraqueza e temor, numa situação de verdadeiro cerco. Dilma não sente medo porque não tem esperança, e Rato tem apenas a urgência momentânea da bebida, sem qualquer expectativa de futuro, sabendo ambos que o tempo está perdido desde o nascimento na miséria.

Ao impedir Dilma de sair do barraco, por desconfiança de que ela aponte seu paradeiro aos policiais que o procuravam, Bereco evidencia também a trama paranoica que flagela as três personagens. A discussão que travam para saber quem seria mais confiável para sair e buscar comida e bebida só amplifica as suspeitas que alimentam entre si, especialmente quando se explicita a atuação de Rato como informante da polícia. As ameaças de Bereco, bem como a sua promessa de recompensas cada vez maiores a quem o ajudar, expandem a suspeita até o paradoxo, pois a venalidade que excita não pode garantir a confiança que ela mesma testemunha não existir.

Há outro paradoxo em cena. Fugindo dos policiais matadores, Bereco se dirigira justamente para o barraco de um alcagueta da polícia, movido por um plano borrado pelo desespero: quer comprar o Rato para que negocie a sua rendição, pois supõe que a condição dele como informante lhe daria alguma credencial junto aos policiais. A hipótese se revela delirada desde o início, seja pelo estado de miséria do Rato, seja pela menção especular que este faz à apavorante história do “Cheirinho”, informante fuzilado pela polícia justamente por dar “cobertura” a um marginal.

Nessa ciranda de medo, suspeita e, ao mesmo tempo, carência e necessidade de confiar, Dilma aparenta ter alguma vantagem em relação aos outros, simplesmente porque parece indiferente a qualquer fim, o dela ou o dos demais. Cética sobre qualquer saída, ela tanto estimula a desconfiança de Bereco em relação ao Rato, como incentiva o fugitivo a enfrentar os policiais e, ao contrário de se esconder, buscar cumprir o seu destino como bandido, no âmbito do mal: “É assim que tem de ser. Foi ruim. Morre ruim. Nada de dar moleza”. As suspeitas apenas podem ser sustadas com a liquidação da esperança e a aceitação do mal que lhe coube fazer na vida.

Essa escolha deliberada da vida que não se pode escolher não implica em ter chance de sobreviver, nesta ou em outra vida, mas sim numa espécie de ganho moral da morte. A pacificação do estado frenético de desconfiança e loucura só é possível pelo gesto livre de morrer descontando “as sacanagens que sempre fizeram pra nós”. Miserável, seu único verdadeiro dever é “fazer miséria”. Ou seja, para Dilma, a única vingança possível é a da aceitação decidida de uma condição criminosa. Nos termos de uma existência sem valor, a conquista da liberdade residiria exclusivamente em fazer o mal, renunciando a todo amor à vida, própria ou alheia.

O niilismo de Dilma parece introduzir algum valor moral na existência, conquanto igualmente a declare impossível de ser vivida. Não é surpresa, portanto, mas fruto da mais perfeita lógica — por mais que seja sentida pelo público como surpreendente, pois é inevitável apiedar-se dos miseráveis e não levar a sério a sua capacidade de fazer mal –, ser Dilma a trair a confiança de Bereco e denunciá-lo, depois de ficar com o seu dinheiro. Esta é uma hipótese plausível, embora mantida sabiamente irresolvida na peça, sem que se conheça a exata medida da traição.

Ao final, quando a luz se apaga, como Plínio fez questão de explicitar na rubrica da peça, o seu foco deve estar sobre o rosto de Bereco, mostrando-o com uma “expressão torturada”, o que significa que foi consumada a morte previsível, mas também que não há qualquer redenção à vista. O “bom negócio” da morte quando a “vida é uma merda”, postulado por Dilma, é apenas outra face vazia da loucura. A afirmação de si (“eu sou mais eu”) pelo instrumento da força, no qual o revólver é o grande “trunfo”, não muda nada, pois o destino é cumprido, afinal, fora da vontade individual: “as coisas acontecem sem a gente poder miar”.

Assim, na peça de Plínio, o crime é efetuado não como transfiguração da condição ou do valor moral do “pé de chinelo”, mas apenas como continuidade da insignificância da vida. Não há concessão alguma ao patetismo romântico, ao idealismo vitimista ou ao marginalismo heróico. No vocabulário final da peça, até o niilismo postulado por Dilma é ainda uma ilusão de grandeza na morte. O que resta, de verdade, é o varejo da violência e da dor, cuja origem os que a sofrem sequer a podem sonhar.

*Alcir Pécora é professor no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp.

Referência

Plínio Marcos. Oração para um pé de chinelo. In: Obras teatrais, vol. 1: Atrás desses muros. (Funarte, 2016) (https://amzn.to/3QHBHI3).

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
O segundo choque global da China
06 Dec 2025 Por RENILDO SOUZA: Quando a fábrica do mundo também se torna seu laboratório mais avançado, uma nova hierarquia global começa a se desenhar, deixando nações inteiras diante de um futuro colonial repaginado
2
Simulacros de universidade
09 Dec 2025 Por ALIPIO DESOUSA FILHO: A falsa dicotomia que assola o ensino superior: de um lado, a transformação em empresa; de outro, a descolonização que vira culto à ignorância seletiva
3
A guerra da Ucrânia em seu epílogo
11 Dec 2025 Por RICARDO CAVALCANTI-SCHIEL: A arrogância ocidental, que acreditou poder derrotar a Rússia, esbarra agora na realidade geopolítica: a OTAN assiste ao colapso cumulativo da frente ucraniana
4
Uma nova revista marxista
11 Dec 2025 Por MICHAE LÖWY: A “Inprecor” chega ao Brasil como herdeira da Quarta Internacional de Trotsky, trazendo uma voz marxista internacionalista em meio a um cenário de revistas acadêmicas
5
Raymond Williams & educação
10 Dec 2025 Por DÉBORA MAZZA: Comentário sobre o livro recém-lançado de Alexandro Henrique Paixão
6
A riqueza como tempo do bem viver
15 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: Da acumulação material de Aristóteles e Marx às capacidades humanas de Sen, a riqueza culmina em um novo paradigma: o tempo livre e qualificado para o bem viver, desafio que redireciona o desenvolvimento e a missão do IBGE no século XXI
7
A crise do combate ao trabalho análogo à escravidão
13 Dec 2025 Por CARLOS BAUER: A criação de uma terceira instância política para reverter autuações consolidadas, como nos casos Apaeb, JBS e Santa Colomba, esvazia a "Lista Suja", intimida auditores e abre um perigoso canal de impunidade, ameaçando décadas de avanços em direitos humanos
8
Norbert Elias comentado por Sergio Miceli
14 Dec 2025 Por SÉRGIO MICELI: Republicamos duas resenhas, em homenagem ao sociólogo falecido na última sexta-feira
9
Asad Haider
08 Dec 2025 Por ALEXANDRE LINARES: A militância de Asad Haider estava no gesto que entrelaça a dor do corpo racializado com a análise implacável das estruturas
10
A armadilha da austeridade permanente
10 Dec 2025 Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Enquanto o Brasil se debate nos limites do arcabouço fiscal, a rivalidade sino-americana abre uma janela histórica para a reindustrialização – que não poderemos atravessar sem reformar as amarras da austeridade
11
Ken Loach: o cinema como espelho da devastação neoliberal
12 Dec 2025 Por RICARDO ANTUNES: Se em "Eu, Daniel Blake" a máquina burocrática mata, em "Você Não Estava Aqui" é o algoritmo que destrói a família: eis o retrato implacável do capitalismo contemporâneo
12
A anomalia brasileira
10 Dec 2025 Por VALERIO ARCARY: Entre o samba e a superexploração, a nação mais injusta do mundo segue buscando uma resposta para o seu abismo social — e a chave pode estar nas lutas históricas de sua imensa classe trabalhadora
13
Impactos sociais da pílula anticoncepcional
08 Dec 2025 Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: A pílula anticoncepcional não foi apenas um medicamento, mas a chave que redefiniu a demografia, a economia e o próprio lugar da mulher na sociedade brasileira
14
Benjamim
13 Dec 2025 Por HOMERO VIZEU ARAÚJO: Comentário sobre o livro de Chico Buarque publicado em 1995
15
Violência de gênero: além do binarismo e das narrativas gastas
14 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Feminicídio e LGBTfobia não se explicam apenas por “machismo” ou “misoginia”: é preciso compreender como a ideia de normalidade e a metafísica médica alimentam a agressão
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES