Manet e o impressionismo

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Por LUIZ RENATO MARTINS*

Édouard Manet atuou como uma espécie de incentivador e referência dos jovens pintores impressionistas, mas não por isso participou do movimento

 

A força própria do finito: a medida

Não obstante os conflitos que marcaram a recepção da pintura de Édouard Manet em vida, tornou-se frequente desde as obras historiográficas de Julius Meier-Graefe (a primeira das quais[i] publicada quinze anos após a morte do pintor), a assimilação de Manet como o primeiro dos impressionistas.

Mais tarde, com a aceitação e a oficialização da arte moderna, tal recepção converteu-se num clichê reproduzido automaticamente (trata-se de caso de infortúnio crítico encoberto pelo manto da glória póstuma, ambos obstando cada um a seu modo,[ii] a compreensão do que essa pintura teve de disruptivo e perturbador à época em que surgiu).

De fato, a negação da medida e dos limites correlatos constituiu um dos marcos divisórios entre o impressionismo e Édouard Manet (que demarcava e realçava contrastes e limites, medindo seus objetos de um modo ou de outro, como se verá adiante). Em sentido inverso, se é verdade que a série das Ninfeias (paradigma de situação descritiva submetida à afirmação prevalente de um sentimento unificador ilimitado), de Claude Monet, só foi realizada decênios após a morte de Édouard Manet, os aspectos, porém, nela maximizados já se apresentavam de modo implícito ou virtual no partido impressionista de privilegiar os dados atmosféricos, ao invés da resistência das coisas.[iii]

Nesse sentido, a se tomar Claude Monet como o expoente do impressionismo[iv] e a absolutização da imediaticidade da sensação como pedra-de-toque do impressionismo, as Ninfeias podem ser consideradas como um desdobramento consequente das premissas originais.

Em síntese, a pressuposição impressionista, extraída de posições empiristas, de que a sensação na sua imediaticidade assinalava a existência de uma unidade prévia à cisão sujeito-objeto, fundou um modo de pintar dirigido à dissolução de todo limite, resistência ou alteridade, com a expectativa de reunificar, mediante a compensação da prática estética, a oposição entre sujeito e objeto.

A ratificação do princípio clássico da unidade pictórica, nas obras de Claude Monet, corroborou, no plano específico da obra como objeto de contemplação estética, a crença na unidade do sistema do qual sujeito e objeto supostamente participariam. Além de sancionar a entronização do impressionismo como estilo emblemático da belle époque, e pedra angular dos acervos e coleções em formação na então emergente economia norte-americana,[v] tal crença assinalou o teor ideológico regressivo e a estética restauradora e compensatória do impressionismo.

 

Correntes e contracorrentes

Em sua época, Édouard Manet atuou como uma espécie de incentivador e referência dos jovens pintores impressionistas, mas não por isso participou do movimento. Distinguido pelos jovens, foi, entretanto, precedido por eles quanto à aceitação pública de sua obra que, caracterizada como provocadora, continuou a enfrentar hostilidade mesmo depois do reconhecimento público dos impressionistas.[vi] Calude Monet retribuiu o apoio recebido de Édouard Manet no início da carreira, ao liderar uma campanha, após a morte deste, para que Olympia (1863) fosse incorporada ao acervo oficial do Louvre.

Afinidades e circunstâncias levaram um e outro a trabalhar lado a lado. Édouard Manet representou em certas telas o colega mais jovem no trabalho ao ar livre e também retratou a família deste. Se Édouard Manet flagrou e estudou a atividade de Claude Monet, convertendo-a em motivo, já, do ponto de vista do impressionista, tal interesse não foi recíproco. Vale dizer, o paralelismo afetivo e de atividades exercidas aparentemente em comum não se traduziu em concepções pictóricas de fato similares. E é fato conhecido que Édouard Manet, em vida, jamais aceitou participar de uma exposição impressionista, ou seja, ter a sua pintura confundida com essa corrente. O que revelavam, não obstante discretas, tais discrepâncias?

Do ponto de vista estético, se a posição antinormativa e pró-espontaneidade de Édouard Manet, privilegiando a perspectiva da sensação, serviu de plataforma para o surgimento dos impressionistas – que, tal como Manet, eram sequiosos de “autenticidade” e “originalidade”, à margem dos padrões acadêmicos –, por outro lado, deu-se uma diferença em torno de algumas diretrizes ou valores adotados pelos impressionistas, independentemente de Édouard Manet.

Este último recusava toda pressuposição de infinitude ou de dissolução dos limites das coisas e não acatava o dogma clássico da unidade pictórica. Dentre os trabalhos de Édouard Manet que constituíam exemplos cabais de tal perspectiva – materialista e realista –, encontram-se alguns que, no curso de sua realização, compreenderam alguma relação circunstancial com Claude Monet. Porém, enquanto em Monet se verificava uma tendência crescente à dissolução cromática das formas, em Édouard Manet, por sua vez, mesmo obras tematicamente vizinhas do impressionismo (cenas fluviais, por exemplo) enfatizavam poderosamente elementos distintivos operando como marcos divisores – seja do ponto de vista cromático, seja do efeito verticalizador de certas linhas – assim, por exemplo, o perfil de mastros de embarcações, talhando o céu e a unidade da tela.[vii]

Ademais, em Claude Monet Peignant dans son Atelier/ Monet Sur Son Bateau [C.M. em seu Atelier/ M. em Seu Barco] (Claude Monet Painting in his Studio Boat [Die Barke], 1874, óleo sobre tela, 82,7 x 105 cm, Munique, Neue Pinakothek), Édouard Manet representou de modo quase emblemático – como se estivesse refutando Claude Monet – vultos de chaminés fabris, ao fundo, em direção distinta daquela para a qual o impressionista estava voltado. Duas das chaminés, ao menos, aparecem emitindo poderosas golfadas de fuligem, representadas por Édouard Manet pelo amarelo sujo que se destaca – e absolutamente não se dissolve – no azul do céu.

Em suma, tais obras de Édouard Manet dissociavam-se do impressionismo por características bem marcadas: (a) prioridade ao estudo de situações ou de tipos humanos, em lugar de paisagens, que eram caracterizadas de modo secundário, e como objetos desnaturalizados; (b) enquadramento fechado e curto, segundo a tradição realista; (c) recusa do tonalismo, bem como de qualquer outra forma de unificação cromática ou atmosférica; (d) recurso enfático a pinceladas repetidas ou quase serializadas, como forma de determinação de cada corpo.

 

Em torno do vaivém dos pincéis

Não cabe aqui discutir as três primeiras características herdadas por Manet, em grande medida, do realismo precedente. Já, quanto à quarta marca de distinção de Manet ante o impressionismo, para além da intempestividade que procurava manifestar frente à sensação do efêmero, o modo de uso do pincel no curso da obra de Manet passou a denotar também aspectos ordenados, tal se dá o compasso de um remo. Implicou assim, por vezes, até um aspecto metódico, ou seja, um passo rumo ao regime das pinceladas em série, que Cézanne viria a adotar em seguida.

Uma das primeiras manifestações nesse sentido consistiu na água-forte realizada por Manet em 1871 durante o cerco de Paris pelas tropas prussianas, La Queue Devant la Boucherie [A Fila Diante do Açougue] (Queue at the Butcher Shop/ Line in Front of the Butcher Shop, 1870-1, gravura em metal, 16,9 x 14,7 cm, Baltimore, Museum of Art), na qual o contraste entre os traços uniformes constitutivos de cada corpo – mas fortemente divergentes entre uma massa física e outra – evocava o acirramento dramático das tensões na cidade sitiada e devastada pela fome após três meses de cerco militar. Nesse caso, além de significação narrativa, o procedimento já assumia claramente a tarefa fundamental de estruturar a composição.

O duplo papel – semântico ou narrativo e estrutural – do traço e da pincelada acentuar-se-ia nos anos a seguir. Do ponto de vista semântico, o recurso à pincelada como modo de determinação dos volumes, em lugar dos artifícios tradicionais (gradação dos tons, claro-escuro ou efeitos de perspectiva), ocorreu mediante o contraste marcado da direção das pinceladas referentes a cada corpo específico, em face daquelas outras referentes aos corpos vizinhos. A divergência dos eixos vetores das pinceladas, que sugeriam representações diagramáticas de linhas de força, aludia à resistência e ao atrito, em suma, ao jogo de ações e reações recíprocas que é característico das interações entre as coisas materiais. Logo, tais determinações corporais (por traços ou pinceladas) situavam – como repulsão de massas ou energias – as diferenças entre um corpo e outro.

 

A lição da resistência

Do ponto de vista estrutural, o recurso ao traço ou à pincelada, para definir a massa segundo os limites de cada corpo, introduzia na composição uma descontinuidade que remetia às diferenças específicas entre um corpo e o outro. Essa fragmentação – cujo significado era materialista – também divergia do caráter da poética impressionista, como metáfora ou veículo alegórico do ideário monista e panteísta (e narcísico, dir-se-ia) de Claude Monet. Além disso, a descontinuidade – que introduzia a exposição do modo de fabricação do quadro – evidenciava o teor opaco e material da linguagem e suspendia toda crença na imediaticidade da sensação estética do pintor, como do observador.

Noutros termos, a função estrutural, para a composição, da descontinuidade das pinceladas aludia também à atividade da consciência imanente do sujeito, não apenas na pintura, mas na representação do fenômeno como realidade. Cézanne, Van Gogh, Degas (1834-1917) e o Picasso (1881-1973) pré-cubista, mais tarde, iriam seguir e desenvolver a lição crítica de Édouard Manet.

A adoção por Édouard Manet desses procedimentos distintivos nos óleos parece ter se acentuado expressa e progressivamente após a constituição do movimento impressionista. É o caso de se cogitar, se não foi um modo de precisar a linha divisória entre o realismo – materialista, descontínuo e crítico – de Édouard Manet e o outro realismo (de raiz impressionista), permeado de monismo e idealismo e, em última análise, acrítico?

Quanto a Édouard Manet, fato é que, além dos exemplos (antes citados) de trabalhos que eram todos contemporâneos ao surgimento do impressionismo, [viii] pode-se distinguir no andamento e na disposição das pinceladas de várias telas do pintor, nos anos seguintes, assomarem tanto um elã a um só tempo inventivo e metódico e um maior vigor produtivo, quanto uma reflexividade explicitada e intensificada.[ix] Afloram assim, nesses sinais, não apenas a diferença e a resposta de Édouard Manet ao impressionismo, mas um ganho na economia crítica e materialista da pintura realista. De fato, daí – ou seja, diretamente da dialética crítica armada por Édouard Manet em resposta ao impressionismo –, provirão certas práticas de Cézanne e de Van Gogh.

* Luiz Renato Martins é professor-orientador dos PPG em História Econômica (FFLCH-USP) e Artes Visuais (ECA-USP). Autor, entre outros livros, de The conspiracy of Modern Art (Haymarket/HMBS).

Extrato de trecho da versão original (em português) do cap. 9, “Pintura como forma-trabalho”, do livro La Conspiration de l’Art Moderne et Autres Essais, édition et introduction par François Albera, traduction par Baptiste Grasset, Lausanne, Infolio (2023, prim. semestre, proc. FAPESP 18/ 26469-9).

 

Notas


[i] Julius Meier-Graefe, Manet und der Impressionismus [Manet e o impressionismo] (1897-8, sem outra referência localizada). Essa obra foi seguida, seis anos depois, por outra mais ambiciosa e que retomou a mesma leitura de Manet, desta vez, pretendendo sistematizar o surgimento da arte moderna: Entwicklungsgeschichte der modernen Kunst: Ein Beitrag zur modernen Ästhetik [História do desenvolvimento da arte moderna: uma contribuição para a estética moderna], 3 vols., Stuttgart, 1904; logo traduzido para o inglês: Modern Art: Being a Contribution to a New System of Aesthetics, trans. Florence Simmonds and George W. Chrystal, 2 vols., London, 1908]. Meier-Graefe era marchand e representante comercial de galerias alemãs, em Paris, além de autor de novelas. Foi o primeiro historiador a aplicar narrativamente a teoria da “pura visibilidade”, de Konrad Fiedler, ao estudo da arte, dissociando essa última de toda função semântica.

[ii] Ver “Retornos do regicídio”, A Terra é Redonda, 08.04.2022, https://aterraeredonda.com.br/retornos-do-regicidio/ (capítulo 6, do livro referido ao final).

[iii] Para uma descrição detalhada e discussão do senso de ilimitação que permeia a série, ver L. Steinberg, Outros Critérios: Confrontos com a Arte do Século XX, trad. Célia Euvaldo, São Paulo, Cosac Naify, 2008, pp. 289-93.

[iv] Ver Meyer SCHAPIRO, Impressionism/ Reflections and Perceptions [Impressionismo/ Reflexões e Percepções], New York, George Braziller, 1997, pp. 179-205.

[v] Ver Paul Hayes TUCKER, “Monet and the bourgeois dream: Argenteuil and the modern landscape [M. e o sonho burguês: Argenteuil e a paisagem moderna]”, in Benjamin H. D. BUCHLOH, Serge GUILBAUT and David SOLKIN, Modernism and Modernity/ The Vancouver Conference Papers, Halifax (Nova Scotia), The Press of the Nova Scotia College of Art and Design, 1983, pp. 21-41; ver também P. H. TUCKER,  Monet at Argenteuil [M. em Argenteuil], New Haven and London, Yale University Press, 1982; idem, with SHACKELFORD, G. T. M. and Stevens, M. A., exh. cat., Monet in the 20th Century [M. no Século 20] (Museum of Fine Arts, Boston, 20.09 – 27.12.1998; Royal Academy of Arts, London, 23.01 – 18.04.1999).; ver também Michael LEJA, “The Monet revival and New York School abstraction [O revivalismo de M. e a abstração da Escola de Nova York/”, in idem, pp. 98-108, pp. 291-3 (notas).

[vi] Ver Michael FRIED, Manet’s Modernism or, The Face of Painting in the 1860s, Chicago and London, The University of Chicago Press, 1996, pp. 3-6.

[vii] Ver, por exemplo, de Manet: La Seine à Argenteuil [O Sena em Argenteuil] (The Banks of the Seine at Argenteuil, 1874, Londres, Courtauld Gallery); La Famille Monet au Jardin [A Família M. no Jardim] (The Monet Family in their Garden at Argenteuil, 1874, Nova York, The Metropolitan Museum of Art); Claude Monet Peignant dans son Atelier/ Monet Sur Son Bateau [C.M. em seu Atelier/ M. em Seu Barco] (Claude Monet Painting in his Studio Boat [Die Barke], 1874, Munique, Neue Pinakothek). Para outros contrastes entre os dois pintores, ver também, de Manet: Portrait de Madame Édouard Manet sur un Canapé Bleu Retrato da Sra. Manet num Canapé Azul] ( 1874, Paris, Musée d’Orsay); En Bateau [No Barco] (In the Boat, 1874, Nova York, The Metropolitan Museum of Art); Argenteuil (1874, Tournai, Giraudon, Musée des Beaux-Arts); Le Grand Canal à Venise [O Grande Canal em Veneza] (The Grand Canal, Venice, 1875, Shelburne, Vermont, Shelburne Museum).

[viii] A saber, de Manet: La Seine à Argenteuil (The Banks of the Seine at Argenteuil, 1874, op. cit.); Claude Monet Peignant dans son Atelier/ Monet sur son Bateau (Claude Monet Painting in his Studio Boat [Die Barke], 1874, op. cit.); La Famille Monet au Jardin (The Monet Family in their Garden at Argenteuil, 1874, op. cit.); En Bateau (In the Boat, 1874, op. cit.); Argenteuil (1874, op. cit.)

[ix] Ver a propósito, as seguintes telas de Manet: Le Grand Canal à Venise (The Grand Canal, Venice, 1875, op. cit.); La Rue Mosnier aux Paveurs [Os Trabalhadores da Pavimentação da Rua Mosnier] (Road-menders in the Rue Mosnier, 1878, óleo sobre tela, 63,5 x 80 cm, Cambridge, col. particular, The Fitzwilliam Museum); Promenade: Portrait de Madame Gamby dans le Jardin de l’Artist à Bellevue [Passeio: Retrato da Sra. Gamby no Jardim do Artista em Bellevue] (The Walk, ca. 1879, óleo sobre tela, 92,7 x 69,7 cm, Upperville, Virginia, col. Paul Mellon); Portrait de Moore [Retrato de Moore] (George Moore at the Café, 1879, óleo sobre tela, 65,4 x 81,3 cm, Nova York, The Metropolitan Museum of Art); La Femme au Chat [A Mulher com um Gato] (Woman with a Cat/ Portrait of Mme. Manet, ca. 1880, óleo sobre tela, 92,1 x 73 cm, Londres, The Tate Gallery). Para mais detalhes concernentes às questões de métier e da relação de Manet com os impressionistas, ver Françoise CACHIN, Manet, New York, Konecky & Konecky, 1991, pp. 56-7, 100-1, 112-21.

 

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