Maquiavel e as Forças Armadas

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Por LUIZ MARQUES*

A verdadeira arte da guerra para o Brasil é substituir o currículo da suspeição por uma formação cívica que forje soldados-cidadãos, imunes ao vírus golpista e devotados apenas à Constituição

Todos sabem que há uma intersecção entre a política e a guerra. O tema é teorizado no século V a.C. quando o general, estrategista e filósofo chinês Sun Tzu escreve A arte da guerra. Com um mesmo título, mas sem conhecimento do ensaio clássico, o chanceler florentino Nicolau Maquiavel escreve uma obra homônima dois mil anos depois, em 1521. Em ambas, as lições de lógica estratégica se sobressaem independente das mudanças de tempo e espaço. A guerra é um meio político de fazer o inimigo retroceder em seus objetivos, sendo um modo extremo e apaixonado de fazer política.

À época, o desafio na Itália era organizar um exército forte e amparado nos valores republicanos de respeito ao ordenamento institucional, a fim de resistir às investidas de potências estrangeiras que incursionavam por seu território. Tal agrupamento deveria possuir uma educação cívica para forjar um civismo pautado pelos interesses gerais, sem se curvar a uma ordem antirrepublicana e, hoje, acrescentaríamos, autoritária para aplicar golpes de Estado. A consciência dos direitos de cidadania serve de motivação para o desempenho das funções de soldado mais do que o estímulo pecuniário.

Maquiavel estava preocupado com a formação de exércitos próprios em alternativa às traiçoeiras legiões mercenárias. A ideia é de que um cidadão mais virtuoso é também o melhor guerreiro para empunhar as armas na sociedade e assegurar uma continuidade para as instituições constitucionais. A devoção à causa da pátria (o bem comum) forja o combatente melhor, porque imbuído de ideais.

Diferente dos que por hábito obedecem aos condottieri (chefes militares): “com semelhantes tropas, um príncipe só poderá evitar a própria ruína enquanto puder evitar um ataque contra si; será pilhado por elas em tempo de paz e pelo inimigo em tempo de guerra”. Para precaver-se, as democracias modernas buscam um contrapeso ao indicar para o Ministério da Defesa um patriota civil convicto.

1.

Para fazer o inimigo – no plural – retroceder nas disposições iniciais, a Rússia impediu que a Ucrânia se integrasse à Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e se juntasse às vinte e nove nações, dos Estados Unidos e da Europa, para uma cooperação nas áreas de segurança e defesa em suas fronteiras a Leste e ao Sul. A mídia sublinha a invasão arquitetada em Moscou e cala sobre o conluio de Washington e Kiev. Propaga fake news em seus canais desinformativos da verdade. Os analistas geopolíticos sérios já dissecaram a total (ir)responsabilidade ucraniana e a vitória russa.

No que tange os acontecimentos na Faixa de Gaza, é preciso salientar o esmero com que a Rede Globo reproduz aquilo que é conveniente ao governo dos EUA e Israel. Para ocultar o sequestro do pensamento, socorre-se das emoções e manda às favas o princípio do contraditório. Explora então sentimentos da audiência. “O que você sentiu ao ouvir os tiros dos terroristas do Hamas, no fatídico atentado de 7 de outubro de 2023?” Sobre os 210 jornalistas mortos na região conflagrada em dois anos, 56 alvejados intencionalmente pelos israelenses para não informar o genocídio, – nenhum pio.

Por outro lado, o currículo da Escola Militar de Agulhas Negras (AMAN), em Resende/RJ, ainda remete à Guerra Fria e ao estudo dos “inimigos internos” que tornam o povo brasileiro o ponto alto na hierarquia dos sujeitos sociais alvos de suspeição. A deseducação cívica dos membros das Forças Armadas, disfarçada pela pertença a uma corporação fardada, é regada por um nacionalismo sui generis de entrega do patrimônio público e submissão ao domínio imperialista estadunidense.

Sem mudar a orientação curricular para que o patriotismo não se esgote em um fetichismo militar, sempre haverá golpistas de verde-oliva na lista dos conspiradores para substituir o Estado de direito democrático por um assustador regime de exceção. Os suspenses se repetem na história do Brasil. O “soldado-cidadão”, em priscas eras cultivado por antigos romanos, é parte da agenda do próximo governo progressista para resolver de vez a equação sobre as volúveis corporações das FFAA.

2.

A nota de 11 de novembro de 2022, tendo por signatários o general Freire Gomes e os comandantes da Marinha e da Aeronáutica, antecipou as justificativas sobre a constitucionalidade das críticas às autoridades oficiais, bem como das passeatas, manifestações, reuniões, etc. Por decoro, não cita os acampamentos putschistas cujos protestos ganham um novo fôlego graças à providencial circular.

A incitação do setor militar foi mais ativa do que concluíram as investigações da Polícia Federal e a Procuradoria-Geral da República (PGR). Não houve omissão, senão participação em consonância com o planejado para destituir, e quiçá matar, os mandatários ungidos pela soberania popular. As faixas contra o Supremo Tribunal Federal (STF) e o sistema eleitoral brasileiro eram o prenúncio.

Vídeos divulgados pelo jornal Estado de São Paulo (13/10 do corrente) revelam os militares com tratores para nivelar o terreno em frente o quartel-general de Brasília, em 18 de novembro de 2022, para instalação do acampamento que pedia uma “Intervenção militar com Bolsonaro no poder!” Duas semanas após o segundo turno certificar nas urnas a vitória do presidente Lula da Silva, nas eleições. As máquinas de terraplanagem visavam drenar a água e a lama em prol dos acampados. O cenário sujo e enlameado simbolizava eleitores e, os acampados, a famíliamiliciana de Silvérios dos Reis. O sítio garantiu abrigo ao retrocesso até o ato de vandalismo na Praça dos Três Poderes.

Essa é outra razão para ponderar a superioridade da virtú militar republicana encarnada na figura do soldado-cidadão, qual um modelo, para a reconfiguração de preceitos formadores das elites armadas da nação, pela nação e para a nação. Afinal: “Quem considere a vida dos romanos e a ordenação daquela república, veria nela muitas coisas possíveis de introduzir em uma cidade (e em um Estado) onde subsista algo de bom”, sublinha o diplomata renascentista no corpo de sua A arte da guerra.

Assim, não se multiplicariam as cenas de violência e traição como se fôssemos vítimas indefesas em uma interminável e torturante série de quinta categoria, dirigida pelos humores da caserna.

*Luiz Marques é professor de ciência política na UFRGS. Foi secretário estadual de cultura do Rio Grande do Sul no governo Olívio Dutra.


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