Marcus Garvey

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Por MÁRIO MAESTRI*

O ativista e jornalista jamaicano que chamou a atenção do mundo e foi fundamental para os movimentos pan-africanos da diáspora e do continente africano

Nascimento, educação e formação de Marcus Garvey

Marcus Mosiah Garvey nasceu, em 17 agosto de 1887, em  Saint Ann’s Bay, no litoral da Jamaica, ilha de uns 240 km de extensão por, no máximo, oitenta de largura. Seu pequeno povoado nativo teria uns dois mil moradores e, toda a colônia inglesa, oitocentos mil habitantes. Em 1833, a escravidão fora abolida no Império Britânico, e, portanto, na Jamaica. A sociedade jamaicana era constituída por 80% negros, descendentes de cativos, em geral, pobres, vivendo em meio rural. A classe média, uns 18% da população, era formada  por mestiços diversos, com destaque para os mulatos. As classes dominantes, uns 2% da população, era integrada por brancos, descendentes de ingleses, de europeus e de jamaicanos, com ancestrais  negros mais ou menos distantes.  

A contradição sócio-racial dominante dava-se entre os brancos e, até mesmo, os mulatos com a população camponesa negra pobre numericamente dominante. Os mulatos esforçavam-se para  superar, por casamento, a “linha de cor” que os separava dos “brancos”, e para não se confundir racialmente com a população negra pobre. A realidade racial jamaicana tinha diferenças de qualidade com a estadunidense, onde se definia como negro a quem  tivesse apenas uma gota de sangue negro, ou seja, um afro-ascendente  longínquo. [DU BOIS, 1923.] 

Marcus Garvey frequentou escola integrada, onde crianças negras, brancas e mulatas, de ambos os sexos, conviviam sem problemas. Ele tomou consciência do que era o racismo apenas aos quatorze anos. Isso, quando uma sua namoradinha da escola, filha de família vizinha branca e de recursos, foi enviada para estudar  na Escócia, com a proibição de lhe escrever, por ele ser  “negro” e, certamente, pobre. Seus colegas e amigos brancos, do sexo masculino, quando cresciam e progrediam socialmente, passavam a desconhecê-lo. [GARVEY, 2017, p. 2;  LAWLER, 1990, 30 et seq; JOHNSON, 2019, p.14.]

Negro e pobre

O menino Garvey cresceu no seio de família negra e pobre. Seu pai, empregava-se como pedreiro, quando havia trabalho, e vivia da agricultura, perdendo as poucas terras  familiares em disputas judiciais. Leitor habitual, possuía uma pequena biblioteca e escrevia cartas para os vizinhos iletrados. Ele teria tido onze filhos, de três casamentos, sendo que apenas Garvey, o caçula, e sua irmã, Indiara, filhos de seu último matrimônio, sobreviveram à infância. Seu pai teria se deixado levar pelo abatimento e morreria em um asilo. Sua mãe, Sarah Jane Richards, casou-se, aos 42 anos, dois anos após o nascimento de Marcus, e passou, muito cedo, a sustentar, com seu trabalho, a família. Os Garvey reivindicavam orgulhosos serem negros puros, descendentes de quilombolas.      

A escola primária, Marcus Garvey  frequentou no Colégio Metodista de Saint Ann’s Bay, e talvez alguns anos de escola secundária, apoiado por um tio, a quem ajudava na contabilidade de seu negócio. Pequeno, baixo, tendendo à obesidade, jamais tido como bonito, entrava escondido na pequena biblioteca do seu pai que, apesar de o tratar duramente,  o teria influenciado, com as suas inquietações que jamais conseguiu materializar, em um ambiente social e intelectual opressivo. [JOHNSON, 2019, p.6.]

Em 1903, aos quatorze anos, após o pai ter abandonado sua mãe, para ajudar no sustento da família, Garvey entrou como aprendiz de tipógrafo na oficina de um seu padrinho de batismo, o que influenciou fortemente sua vida. Nas tipografias tradicionais, com o texto manuscrito à mão, o tipógrafo colocava, manualmente, em linhas, parágrafos, etc., as sequências de letras, espaços, etc. moldados em ferro. Apenas em fins do século 19, os tipógrafos datilografavam os textos em máquinas imensas, linotipos, que fundiam, em chapas de chumbo, os textos a serem publicados. [LAWLER, 1990, p. 17 et seq; DU BOIS, 1923; BENJAMIM, 2013, 17 et seq.]

Trabalhadores cultos

O tipógrafo ou o linotipista era um trabalhador alfabetizado, que lia e relia os textos que imprimia. Produzindo avisos, revistas, jornais, livros, as tipografias e gráficas eram locais aonde acorriam jornalistas, escritores, políticos, intelectuais. Os tipógrafos e linotipistas, até o desaparecimento da profissão pelo avanço tecnológico, eram operários cultos, combativos e,  não raro, organizados e politizados, pois, em geral, conscientes e mal pagos. A formação profissional de Garvey preparou-o para o jornalismo, para a fundação de publicações, para as questões políticas de sua época.

Desde jovem, Marcus Garvey revelaria alma de andarilho, viajando por não poucos países das Américas, à procura de trabalho. Em 1904, foi trabalhar na sucursal aberta por seu padrinho em Port Maria, vila de alguns poucos milhares de habitantes, centro administrativo da região em que nascera. Em 1905, com dezoito anos, transferiu-se para Kingston, capital da colônia jamaicana, então com algumas dezenas de milhares de habitantes. [JOHNSON, 2019, p. 13.]

Em Kingston, com carta de recomendação de seu padrinho, se empregou no departamento gráfico de empresa exportadora. Em 14 de janeiro de 1907, sobreveio um grande terremoto, que degradou as já difíceis condições de vida dos trabalhadores e populares. Em novembro de 1908, eclodiu greve dos tipógrafos, por aumento de salários, da qual Garvey participou. A greve fracassou e ele teria sido despedido, encontrando colocação na Imprensa Oficial britânica local.  Em inícios de 1910, fundou uma pequena revista, sem futuro, Garvey´s The Watsch Mans.  [HISTORYDRAFT; JOHNSON, 2019, p.20.] 

Iniciação sindical e política

Em março de 1909,  S. A. G. Cox,  advogado,  discriminado na obtenção de um posto, por sua cor,  apesar de ser mulato claro, em associação com H. A. L. Simpson, fundam o Clube Nacional,   de curta vida, que tinha, em seu  programa, a luta pela independência da Jamaica, ao modo do Canadá e da Austrália; o fim da discriminação racial e da política colonial inglesa; o reconhecimento dos sindicatos; a distribuição das terras públicas entre os camponeses; a proibição de importação de coolies asiáticos. Com sede em Kingston, as propostas do clube repercutiram na América Central. 

O Clube Nacional seria restrito aos jamaicanos e seu quinzenário, “Nosso próprio”, [“Our Own”], publicaria uns três mil exemplares. Garvey teria participado, sem destaque, do movimento. Estabeleceu, porém, relações com seu fundador e com os principais integrantes do Clube.  S. A. G. Cox era admirador do movimento nacionalista irlandês, pelo qual Garvey também se interessou.

 Na última edição do jornal, em 1 de julho de 1911, S. A. G. Cox, proporia: “Os negros e mestiços na Jamaica somente podem ter esperança de melhorar suas condições quando se unirem aos negros e mestiços dos USA e com os das outras Índias Ocidentais e na realidade, com todos os negros do mundo.” Proposta de união mundial de negros e mestiços retomada por Garvey, que deixou os mulatos de fora. [LAWLER, 1990, p. 25;  BENJAMIM,  2013, p.24; JOHNSON, 2019, p.20;  RABELO, 2013, p. 495-541.] 

Na América Central e do Sul e Inglaterra

Em fins de 1910, com 23 anos, Marcus Garvey viajou a Costa Rica, para se empregar nas tarefas de administração de uma plantação, contribuindo para uma pequena revista bilíngue “La Nación”, sendo preso devido às denúncias que publicou. Na América Central, observou indignado que as condições dos trabalhadores negros eram ainda piores do que na Jamaica. Mudando-se, a seguir, para o Panamá, onde as obras do Canal atraíam trabalhadores de toda a região, encontrando a mesma situação, quanto aos trabalhadores negros e outros. [JOHNSON, 2019, p.22.]

No Panamá, no porto de Colón, teria organizado outra  publicação, “La Prensa”. Sempre à procura de trabalho, teria visitado a Guatemala, a Nicarágua, o Equador, a Colômbia e a Venezuela.  “Em todas essas repúblicas de língua espanhola, havia trabalhadores das Índias Ocidentais que deixaram suas ilhas super povoadas por causa do desemprego e da pobreza […].” [IDENTIDÁFRICA, 07.06.2022.]

Em 1912, Marcus Garvey partiu para a Inglaterra, tendo sua passagem sido paga pela irmã, Indiana, empregada doméstica ou governanta em Londres. Garvey teria trabalhado nos arredores de Londres, em Liverpool, etc. entre outras atividades, na estiva do porto.  Aos domingos, frequentava a famosa “Speaker’s Cornes”, em Hyde Park, onde todos podem discursar sobre o que quiserem, segundo a tradição. Assistiu algumas aulas de Direito e Filosofia em uma escola comunitária para trabalhadores,. [JOHNSON, 2019, p.6.]

Marcus Garvey teria assistido a debates da Câmara dos Comuns e frequentado o British Museum, onde teria se tornado um grande admirador de Napoleão e se maravilhado  com a autobiografia de B. T. Washington, Up from slavery, de 1901. [GARVEY, 2017, p. 2; MAESTRI, 2024.]. Lendo a obra, teria tomado a decisão de se tornar um líder negro. A vida de B.T.Washington e sua proposta de escolas profissionais apontavam-lhe um eventual caminho de sucesso para ele, negro, sem relações, oriundo de uma família sem recursos. 

Viajando pela Europa

Em Londres, trabalhou como auxiliar de escritório na revista “The African Times and Orient Review” [1911-1919], publicação mensal, pan-asiática e pan-africana, dedicada às “pessoas de cor”. O editor da publicação, Duse Mohammed Ali [1866-1945], jornalista e ator egípcio, de mãe sudanesa, publicara, em 1911, a primeira história do Egito escrita por um nacional. [ALI, 1911.]

Mohammed Ali participara do “Primeiro Congresso Internacional da Raça”, reunido em 1911, na Universidade de Londres, por quatro dias, com, talvez dois mil participantes. No congresso, compreendera a urgência de uma publicação pan-africana e pan-oriental, criticando o colonialismo inglês e europeu.  W.E.B. Du Bois participara daquele evento.

Em outubro de 1913, Garvey publicou o artigo “As Antilhas britânicas e o espelho da civilização”, na  revista de Mohammed Ali, onde propunha que “rápido se produzirá uma transformação na história das Índias Ocidentais”, e o povo que nela “habita […] será o instrumento” que reunirá a uma “raça dispersa”, a fim de fundar no futuro um “império no qual o sol brilhe incessantemente”, como no “Império do Norte”, ou seja, a Inglaterra. [TÊTÊVI, 1995, p. 29; ; BENJAMIM, 2013, p. 26.]

Com a bala na agulha

         Na Europa, Marcus Garvey visitou a França, a Itália, a Espanha, a Áustria, a Hungria e a Alemanha.  Em 8 de junho de 1914, partiu de volta, para a Jamaica, onde aportou em 15 de julho. [GARVEY, 2017, p. 3.] Cinco dias após seu retorno, fundou, com Amy Ashwood, jamaicana, com quem se casou, em 1919, a “Associação a Universal para o Progresso do Negro” [“Universal Negro Improvement Association and African (Imperial) League”, [UNIA]. [GARVEY, 2017, p. 3.]

A denominação da organização teria sido escolhida durante a viagem, quando se informara superficialmente sobre a realidade africana. Anos mais tarde, propôs que os objetivos da associação eram “organizar todos os povos negros do mundo em uma grande entidade e estabelecer um país e governo [negros] absolutamente próprios”.  [BENJAMIM, 2013, p.13; JOHNSON, 2019, p. 30.] Com o início da guerra, Garvey teria anunciado a fidelidade da UNIA ao Império Britânico, ao rei Jorge V e ao esforço de guerra inglês. [HISTORYDRAFT]

O pontapé inicial do projeto de Marcus Garvey, de se transformar em liderança negra, deu-se influenciado pela realidade que conhecera em suas viagens e, sobretudo, por sua vivência na Jamaica, como negro. Ele procurou interpretar os sentimentos de rebeldia da comunidade camponesa negra e pobre, discriminada por brancos e, também, por mulatos, ricos ou se esforçando para enricar, pouca atenção dando às raízes sociais das desigualdades raciais.

Visão epidérmica

         Ao propor a união de todos os negros do mundo, Garvey definiu-os epidermicamente  em oposição ao branco. Ignorou as múltiplas singularidades entre e no interior das comunidades nacionais afro-descendentes das Américas. A simplicidade de seu “pan-africanismo” tinha também raízes no seu desconhecimento das infinitas riquezas e diversidades das comunidades africanas. Era claro seu euro-centrismo, ao sonhar com uma colonização das populações africanas, vistas como atrasadas, pelos negros americanos. [RABELO, 2013, 499.] 

Em geral, as biografias de Marcus Garvey são pobres sobre os dezenove meses que passou na Jamaica, tentando avançar a UNIA que, muito logo, encontrou-se “em dificuldades econômicas”. Em verdade, ele fracassou na fundação de escola agrícola, como as propostas por B.T. Washington, e criou animosidade entre seus seguidores, ao viver, ele e Amy, dos fundos obtidos para as escolas e a UNIA. [JOHNSON, 2019, p.30; MAESTRI, 2024.]

 Em setembro de 1923, Marcus Garvey propôs que o programa da UNIA fora mal recebido, sobretudo pela comunidade mulata de classe média, que resistia a se conceber como  “negra”, como ele propunha. Ela exigia, ao contrário, que fosse considerava e tratada como ou quase como branca. Garvey registra ter conseguido avançar em algo sua organização apoiado, sobretudo, na “ajuda de um bispo católico, o governador Sir John Pringle; do reverendo William Graham, um clérigo escocês e de vários outros amigos brancos.” [GARVEY, 1917, p.5.] 

Se os mulatos jamaicanos mobilizavam-se para varar a relativamente permeável “linha de cor” jamaicana, para serem tratados como brancos, as autoridade e os cidadãos britânicos  se interessavam em fortalecer a mesma linha, diferenciando os brancos raízes dos mulatos, mesmo dos mais claros. Não seria a única vez que Marcus Garvey se apoiou em aliados brancos racistas para avançar suas propostas e interesses.

II. À Conquista da América

         Em 23 de março de 1916, Marcus Garvey partiu para os Estados Unidos. Alguns autores propõem que seu objetivo era buscar apoio financeiro para fundar, na Jamaica, um Instituto Tuskegee, coração do império estadunidense de B.T. Washington, como ele já tentara e fracassara. Na Inglaterra, ele teria escrito e recebido convite do líder negro para ir aos USA e discutirem aquele projeto. [GARVEY, 2017, p. 3.]  

Propõe-se também que ele viajou para Nova Iorque quando seu movimento, e ele, patinavam, como vimos. Marcus Garvey afirmou que partiu com a intenção de retornar à Jamaica. Com maior pertinência, sugere-se que ele viajou com a decisão de se radicar em Nova Iorque, retomando o papel de liderança negra de B.T. Washington, falecido em 14 de novembro de 1915, quatro meses antes de sua viagem. Nesse momento, ele dispunha de organização e programa político, apontando em outro sentido. Na grande cidade, visitou lideranças e intelectuais negros conhecidos, como W.E.B. Du Bois, que ele e a UNIA receberam, sem muito tato, quando da visita do importante intelectual negro a Kingston, na Jamaica, em 1915.

Marcus Garvey  empreendeu, a seguir, uma demorada visita de 38, dos então 48 estados do país, onde encontrou, segundo ele, ditas lideranças negras [“so-called Negros leaders”], que não teriam programas e viveriam da boa-fé do povo negro. Se propunha e certamente se via como um profeta desembarcado das Antilhas, para divulgar o verbo negro no País da Promissão!  [GARVEY, 2017, p.5; TÉTÉ-ADJALOGO, 1995, p. 271.]

Sucesso surpreendente

         Em fins de 1916,  Marcus Garvey abriu, em Nova Iorque, no Harlem, uma sucursal da UNIA, que, devido ao seu sucesso quase imediato, ele teria abandonado, segundo propôs, o projeto de retornar à Jamaica.  A escolha do Harlem não era aleatória. O antigo bloco de elegantes quarteirões de moradias de famílias brancas se transformara em local de residência de milhares de negros chegados das Antilhas e do sul dos Estados Unidos. Em 1914, viveriam ali em torno de 50 mil negros que, em 1930, eles já eram 200 mil, dos quais, uns 55 mil antilhanos.

Nos primeiros tempos, a UNIA conquistou algumas centenas de aderentes, que deviam pagar 25 centavos de dólar ao mês, como cotização. Marcus Garvey afirma que seriam entre 800 e mil, “muitos  deles  imigrantes  das  Índias  Ocidentais”, com destaque para os jamaicanos. Logo, a UNIA cresceu, com a adesão de outras lideranças e associações negras.  Em dezembro de 1917, ela conheceu cisão, superada, em janeiro de 1918, quando alcançava 1.500 aderentes. Garvey manobrou para ser eleito presidente da sede da UNIA, agora em Nova Iorque. [GARVEY, 2017; BENJAMIM,  2013, p. 32; JOHNSON, 2019, p.42.]

O sucesso da UNIA não se explica pela pregação ou magnetismo de Marcus Garvey. A semente foi lançada em um solo então fertilíssimo. B.T. Washington morrera quando já fracassava sua pregação de emancipação da população negra pelo trabalho em atividades manuais. E quando o jamaicano pôs os pés na Terra da Promissão, fora precedido por uma imigração em massa de negros jamaicanos, antilhanos e sulistas, atraídos pela expansão da oferta de trabalho devido à I Guerra Mundial. 

Voltando da guerra

         Em 1919, após o fim do conflito, centenas de milhares de soldados negros estadunidenses retornam ao país, desgostosos com o tratamento que haviam sofrido, antes, durante e após o fim da guerra. Os antilhanos emigrados, desraigados, comumente analfabetos, com os preconceitos trazidos de seus países contra os  brancos e mulatos, teriam sido os mais fiéis seguidores de  Marcus Garvey  nos Estados Unidos.  [DU BOIS, 1923, p. 541.]

No mesmo ano, com a UNIA com milhares de membros e simpatizantes, Marcus Garvey fundou, em Nova Iorque, o semanário “The Black World”, pedra de toque da organização nos anos seguintes. [GARVEY, 2017, p. 6.]  No final do seu primeiro ano, a revista publicaria umas dez mil cópias. E em arrojo singular, o jamaicano avançou a explosiva proposta da fundação de uma companhia marítima, a “Black Star Line”, e de corporação de empresas negras, a  “Negro Factories Corporation”. E, nesse embalo, a UNIA comprou, no Harlem, uma velha igreja, transformada em auditório para  seis mil pessoas, o “Liberty Hall”. Seguiram-se, porém, poucos anos de vacas gordas. [JOHNSON, 2019, p.46.]

Em outubro de 1919, George Tyler, um membro da UNIA, fere Marcus Garvey, com um revólver de calibre 38, na cabeça e na perna. Nesse momento, seria forte a luta pela direção da organização e de seus recursos. Em 1920, as propostas da UNIA começam a sair do papel. Nesse então, ela teria umas trinta secções e, segundo Garvey, dois milhões de associados. Du Bois, cientista social negro de enorme respeito, propôs que, em 1920, a UNIA contaria com uns oitenta mil associados, com uns trinta a vinte e cinco mil pagando mensalmente suas cotizações. [GARVEY, 2017, p. 6; DU BOIS, 1923.] 

Expansão portentosa

Em 1921, a UNIA alcançava o pináculo do seu sucesso. Marcus Garvey reivindica, para esse ano, seis milhões de aderentes em todo o mundo. “Estudos indicam que entre 1925 e 1927, nos Estados Unidos, existiam entre 719 e 725 divisões [da UNIA], e se haviam disseminados por outros 41 países”.  Uma “divisão” da UNIA podia se reunir em uma sede, com dezenas e mesmo centenas de associados, ou em uma casa particular, com alguns poucos membros associados. [BENJAMIM, 2013, p. 34.]

Quando menino, Malcolm X acompanhava seu pai, o reverendo Earl Little, às reuniões da UNIA que ele dirigia,  com a presença de, no máximo, uns vinte participantes. Elas eram  realizadas “discretamente”, nas estreitas cozinhas ou sala de casas particulares, “sempre distintas” em Lansing, Michigan, quase na fronteira com o Canadá. Nas reuniões, seu pai fazia circular fotos de Marcus Garvey, “um negro enorme [sic] que portava um uniforme deslumbrante […] e um extraordinário chapéu de plumas largas”.  [BENJAMIM, 2013, p.35; MALCOLM X, 2019,  p. 15, 17.]

Se estimarmos, em média, cinquenta membros pagantes por divisão, teríamos os 35 mil membros propostos por Du Bois. O certo e indiscutível é que Marcus Garvey se transformara no dirigente político negro mais performático entre as classes populares estadunidenses, ainda que, como proposto, os camponeses negros jamaicanos e antilhanos  imigrados fossem seus mais irrestritos apoiadores.  [TÉTÉ-ADJALOGO, 1995, p.268 et seq.; BENJAMIM, 2013; DU BOIS, 1923.]

III. Convenções internacionais

Em 20 de agosto de 1920, Marcus Garvey promoveu, sempre no Harlem, durante um mês, a “Primeira Convenção Internacional dos Povos Negros”, com delegados dos mais variados pontos dos Estados Unidos, da América Central, das Antilhas e mesmo, alguns poucos, da África. Antes  daquele encontro, haviam ocorrido outros, de diversas naturezas. Entre 23 e 25 de julho de 1900, em Londres, reunira-se a Primeira Conferência Pan-africana, chamada pela African Association, que contara com a presença de W.E.B. Du Bois. 

Em 1911, também em Londres, ocorreu o “Primeiro Congresso Internacional das Raças” que, mesmo não sendo centrado na questão negro-africana, reuniu  lideranças pan-africanistas, entre elas, W.E.B. Du Bois, que se destacaria no evento. De 17 a 19 de abril de 1912, ocorrera uma “Conferência Internacional sobre o Negro”, no Instituto Tuskegee, no Alabama. O encontro, com uns cem delegados, sobretudo teólogos e missionários, objetivava estender à África Negra a rede de escolas de B.T. Washington. [TÉTÉ-ADJALOGO, 1995, p.56 et seq; JOHNSON, 2019, p.13; PARQUE, 1912, p. 117-120.]

“Primeira Convenção Internacional dos Povos Negros” foi chamada e dirigida pela UNIA e por Marcus Garvey que, nela, foi entronizado como soberano de seu breve e fantasioso reinado, que propunha materializar, em pequeno, o que ele sonhava fazer, em grande, na África Negra.  Foi destaque na Convenção o desfile, pelas ruas do Harlem, em 1 de agosto, das diversas legiões militares da UNIA: a “Legião Africana Mundial”; o “Exército Motorizado” e a “Cruz Negra”; o “Corpo Juvenil” e o “Corpo voador da Águia Negra”. Os integrantes dos destacamentos vestiam vistosos uniformes, com os oficiais, à frente, portando espadas.

Marcus Garvey participou do desfile como um soberano, no banco de trás de um automóvel aberto, cingido de um chapéu emplumado, vestindo pesado uniforme militar azul, com rendas e cordões dourados, portando uma espada. No mesmo dia, foi ovacionado por milhares de ouvintes no Madison Square Garden II, prometendo libertar cada centímetro da África à frente de exército de quatrocentos mil homens. Portava uma toga aos ombros, púrpura, verde e ouro. Em 1927, escreveu que, com a Convenção, o “nome de Garvey começou a ser conhecido como líder de sua raça”. O que motivou, também segundo ele, que lideranças, com destaque para os “negros de cor clara”, conspirassem para sua queda. [GARVEY, 2017, p. 7, 8.]

Catarse liberatória

         O público e os seguidores de Marcus Garvey eram formados sobretudo por antilhanos  imigrados e negros chegados do Sul, não raro analfabetos e desterrados. Um povo humilhado e diminuído, desde sempre, pelas instituições civis, pela cultura dominante, pelas condições de existência e, sobretudo, mas não apenas, no caso dos afro-sulinos, pela violência das instituições, dos patrões, dos supremacistas brancos, sintetizada no Apartheid, do Sul, e no pesado racismo, do Norte. 

O desfile das coortes uniformizadas da UNIA, liderada por um potentado negro, vestido garbosamente, transmitia aos participantes e assistentes, orgulho da raça e sentimentos de força e pertencimento a um poderoso movimento em marcha. Menino, Malcolm X, presente a reuniões semi-clandestinas de UNIA, registrou o orgulho que aqueles desfiles despertava entre os humildes seguidores de Marcus Garvey. [MALCOLM X, 2019, p.15-17.] Viviam catarse liberatória coletiva, sem desdobramento e continuidade, que em vez de apontar para o futuro, imobilizava-os. Marcus Garvey prometia como solução de seus sofrimentos fantasiosa transferência para a África Negra, a ser conquistada por suas coortes. 

A marcha triunfal da UNIA não foi a primeiro e, nem de longe, a mais numerosa, quando aos participantes e expectadores negros. Em 17 de fevereiro de 1919, a parada de regresso do 369º Regimento Negro do exército estadunidense, chegado da Europa, teria reunido até um milhão de assistentes. Em outras grandes cidades, se repetiram paradas congêneres. Nelas, desfilavam ex-soldados negros, “marcados com suas experiências de guerra e com o seu tratamento no pós-guerra”. [DU BOIS, 1923.] Também essas demonstrações de força não produziram desdobramentos sociais e políticos.

Estado Africano Semi-absolutista

         Marcus Garvey pretendia criar, na África, e impôs, na UNIA, ordem autoritária e anti-democrática. Em 1937, enquanto Mussolini invadia a Etiópia, ele registrou a sua admiração pelo Duce, a se propôs como precursor do fascismo.  Para ele, o “Governo  deveria  ser  absoluto  e  o  chefe  […] completamente  responsável  por  si  e  pelos  atos  de  seus  subordinados”.  [GARVEY, 1967, p. 12, 74; RABELO, 2013, p. 505-508.]               

         Na “Convenção”, Marcus Garvey se fez aclamar como o primeiro “Presidente Provisório da África” pelos exércitos da UNIA. Africanos presente protestaram pelo presidente provisório da África não ser um africano nato. A população africana, é claro, não fora consultada quanto à designação de seu primeiro presidente.

         E como eram muitas as personalidades do movimento a serem honorificadas, criaram-se, para o futuro reino africano, ordens nobiliárias da “Etiópia”, do “Ashanti”, do “Moçambique”, com, entre outros, um “Duque do Nilo”, um “Conde do Congo”,  um “Visconde do Niger”, um “Barão do Zambeze” , um “suserano da Uganda”. Todos com as respectivas vestimentas vistosas e coloridas. 

Sua Grandeza, o Potentado

         Marcus Garvey, com o título de “Sua Grandeza, o Potentado”, passou a dirigir um Alto Conselho Executivo, de dezoito membros.  Uma “Declaração dos direitos dos povos negros no mundo” foi votada e aprovada. Lideranças afro-estadunidenses mobilizadas em prol da educação e da organização da população denunciaram Marcus Garvey pela manipulação rústica, carnavalesca e populacheira que inebriava o povo negro simples e o desviava da luta por seus direitos. 

         Entre as organizações críticas se destacava a “Associação Nacional para o  Progresso de Pessoas de Cor” [NAAPC], onde militavam negros, brancos, mulatos, judeus. W.E.B. Du Bois era o editor da principal publicação da organização. Garvey rebatia as críticas definindo-as sobretudo como provenientes de mulatos e segmentos elitistas do movimento negro. [TÉTÉ-ADJALOGO, 1995, p. 271.]

         A segunda “Convenção Internacional” se reuniu, durante o mês de agosto de 1921, já sem o esplendor da primeira. Nesse momento, como veremos, a perda sucessiva e inexplicável  de navios da “Black Star Line” feria o prestígio do fundador da UNIA. Repetiram-se os desfiles, os comícios e foram criados novos títulos de nobreza masculinos e femininos. Realizaram-se sessões noturnas de fervorização dos presentes sobre a doutrina da UNIA e os ensinamentos de Marcus Garvey.

Irmandade de Sangue

         O grupo negro radicalizado pan-africanista, “Irmandade de Sangue Africana” foi expulso do encontro, como “bolchevista”, por denunciar a contradição entre a grandiloquência de muitas propostas da UNIA, com a ausência de orientação política para a população. Denunciou também a proposta de Garvey de que se podia ser fiel a uma bandeira de uma nação opressora e lutar, ao mesmo tempo, contra ela.

         O BBB fora fundado, em 1919, por Cyril Valentine Briggs, mulato claro, caribenho, radicado nos USA, que defendia -e promovera- a defesa armada da comunidade negra no Sul. O BBB propunha, também, a formação de um “grande exército pan-africano” para a libertação da África Negra. Cyril Briggs [1888-1966] confluiria, em 1921, no Partido Comunista dos Estados Unidos, por apoiar a política bolchevique das nacionalidades na URSS. 

         O Partido Comunista dos Estados Unidos, nos primeiros tempos, sem se confrontar com a UNIA, apoiava a  proposta da expulsão dos imperialistas da África, de defesa da autodeterminação dos povos africanos, incentivando a luta dos povos negros nos Estados Unidos e em todo mundo por seus direitos. [BRIGGS, 1921; TÉTÉ-ADJALOGO, 1995, p.75; The Liberator, outubro de 1924.]      

IV.  Black  Star Line: o Titanic de Marcus Garvey  

         Em 1919, para preparar a pátria africana, Marcus Garvey propôs a fundação de uma “Corporação Negra Industrial”, que consolidaria múltiplas iniciativas de “capitalismo negro”, com destaque para lojas de alimentos; lavanderias; hotéis; restaurantes; sorveterias; salas de diversão, editoras,  manufaturas, etc. Os recursos foram obtidos vendendo ações aos militantes e simpatizantes da UNIA, no valor de cinco dólares cada, ou seja, uns 120 dólares atuais. A venda das ações foi amplamente publicizada no semanário “O Mundo Negro”. [BENJAMIM, 2013, p. 40.]

         A “Corporação Negra Industrial” não era uma ação pioneira de “empreendedorismo negro”. Desde o século anterior, haviam surgido e se consolidado milhares de negócios, pequenos, médios e mesmo de grande porte, de todos os tipos, de propriedade de afro-estadunidenses, sobretudo nas grandes cidades do Norte. A UNIA almejava consolidar um núcleo corporativo comercial-industrial negro, no seio da ordem capitalista estadunidense, tendo como mercado a população negra.

         Para além de sua retórica nacionalista e racista negra e a fantasia de fundar uma nação poderosa na África, era o caráter nitidamente  burguês-capitalista que organizava o programa de Marcus Garvey. Ele declararia que o “capitalismo é  necessário  para  o  progresso  deste  mundo  e  aqueles  que  são  insensatos e só desejam se opor ou lutar contra ele são inimigos do  avanço  humano”.  Garvey sempre se desdobrou para reprimir na UNIA deslizes sindicalistas ou socialistas. [RABELO, 2013, p.505.]

Muito fumo, pouca lenha

         O sucesso da Corporação negra da UNIA foi pífio, apesar de alavancado pelas doações, a fundo perdido, de militantes e admiradores do movimento. As iniciativas se restringiram à fundação e administração de alguns super-mercados, restaurantes, barbearias, uma editora, etc., comumente deficitários.  

         Marcus Garvey esperava que a repatriação do negro estadunidense fosse financiada pela população branca e pelo Estado racistas. Também em 1919, como vimos, anunciou a fundação de uma companhia de navegação, a Black  Star  Line  Incorporation. Segundo ele, ela facilitaria a migração em direção da Libéria e estabeleceria trocas econômicas e sociais entre os negros de todo o mundo. As poucas viagens dos navios da Black Star partiram sobretudo dos Estados Unidos em direção ao Caribe,  para a alegria dos seus apoiadores daquelas regiões.

         O lançamento da Black Star Line e, sobretudo, a compra do primeiro navio “deixaram seus críticos e oponentes sem fôlego”. “O anúncio foi eletrizante mesmo para quem não acreditava em Garvey”, nas palavras de Du Bois, que certamente não acreditava em Garvey. [DU BOIS, 1923.] A operação desmedida e voluntarista, foi um verdadeiro Titanic para Marcus Garvey e a UNIA. 

Afundação geral

         A compra de navios velhos e superfaturado, uma gestão inepta, esbanjamento de recursos e falcatruas de assessores negros e brancos, mergulhou a companhia em uma sequência de fracassos estrondosos e de perdas milionárias, que deprimiu o prestígio de Marcus Garvey e facilitou o ataque do FBI a ele e à UNIA. 

         Em 27 de junho de 1919, a Black  Star  Line  foi incorporada, no estado de Delaware, com um capital inicial de quinhentos mil dólares, dividido em cem mil ações de cinco dólares cada. O baixo valor unitário das ações permitia que os militantes e simpatizantes da comunidade negra pobre comprassem os papéis, para apoiar a iniciativa e não como investimento.  Marcus Garvey assumiu a presidência remunerada da companhia. [GARVEY, 2017, p. 6.] 

         Em setembro de 1919, os administradores da Black Star Line compravam por 165 mil dólares um velho carvoeiro, SS Yarmouth (1887), que se pretendeu rebatizar como SS Frederick Douglas. Ele não valeria um quarto do valor pago, sendo o seu comandante negro responsabilizado a seguir pela falcatrua. Após três viagens, em três anos, para o Caribe, semi-inutilizável, foi vendido em leilão, em 1921, por US$ 1.625! Em fevereiro de 1920, o capital da Black Star Line foi elevado a dez milhões de dólares, a ser integralizado com a venda de novas ações. [JOHNSON, 2019, p.75.]

Excursões fluviais

         Em abril de 1920, foi comprado, por 65 mil dólares, um pequeno e velho iate a vapor, SS Kanawha (1899), construído para um magnata, utilizado durante a guerra mundial, também  superfaturado. Ele exigiu quase o valor de compra para poder navegar.  Batizado de SS Antonio Maceo, o herói mulato cubano da luta pela independência, o iate a vapor partiu finalmente, em junho de 1920, para o alto-mar. Em fevereiro de 1922, ficou para sempre imobilizado. 

         Com o dinheiro já curto, optou-se pela compra de uma chata fluvial, SS Shadyside, por 35 mil dólares,  para utilização, durante o verão, em viagem recreativas no rio Hudson. Ela também naufragou e foi abandonada, em março de 1921. Até esse momento, a Black Star Line contabilizava uma perda milionária! [JOHNSON, 2019, p.78.]

         Em 1921, a Black Star Line avançara 25.500 dólares pela aquisição do navio a vapor Orion, por US$ 250 mil dólares. O depósito inicial foi perdido, ao não ser completado o pagamento. Em dezembro de1921, The Black Star Line suspendeu as atividades comerciais, entrando em estado falimentar, com uma perda, em valores atualizados, de uns dez milhões de dólares. [FOHLEN, 1973, p. 54-57; DU BOIS, 1923.] 

 Ressaca

         Em meados de 1922, ocorreu, como veremos, uma paradoxal reunião de Marcus Garvey com a direção máxima da Ku Klux Klan, em Atlanta, que repercutiu pessimamente entre a população negra e na própria direção da UNIA. O reverendo James Eason,  da direção máxima do movimento, com o título de “Líder dos negros americanos”, criticou internamente aquela aproximação, tendo Garvey iniciado campanha de descrédito contra ele, acusando-o, entre outros pecados, de alcoolismo e de assédio sexual. 

         Em agosto de 1922, pouco mais de um mês do encontro de Atlanta, na “Terceira Convenção”, James Eason denunciou Garvey pela reunião, com a Klan por incompetência administrativa e por promover o ódio racial. Garvey obteve a demissão de Eason, forçando a renúncia de toda a direção. Obteve, assim, o direito de designar os dirigentes da UNIA, antes eleitos. Alguns meses mais tarde, Eason foi assassinado, em uma igreja, denunciando, antes de morrer, os atacantes como garveystas. Acredita-se que pretendesse  denunciar irregularidades de Garvey à Justiça. [JOHNSON, 2019, p.78.]

         Na mesma “Convenção”, Marcus Garvey  obteve, igualmente, o apoio para a fundação de uma nova empresa marítima, a “Companhia Marítima e Comercial da Cruz Negra”.  Em janeiro de 1925, o quinto navio, rebatizado como SS Booker T. Washington, partiu para  uma primeira viagem comercial em direção às Antilhas. Com o novo navio, esperava-se enterrar o literal naufrágio da companheira e dos navios anteriores.

Fracasso total 

         O SS B.T. Washington lançou-se ao mar, mas a viagem não se concluiu, ao ser o navio sequestrado pela Justiça para pagar dívidas da nova empresa. As razões do fracasso da Black Star Line foram diversas. Marcus Garvey, presidente da companhia, não tinha a experiência comercial e se servia da companhia como instrumento de propaganda. O lançamento da empresa não se deu a partir de um planejamento sério.  Os administradores das companhias, assim como o presidente,  todos remunerados, eram inábeis e, comumente, corruptos. A gestão do negócio continuava até que o valor obtido com as vendas das ações terminava. Marcus Garvey não teve pruridos em mentir aos acionistas sobre a situação da empresa. [JOHNSON, 2019, p.78.] 

         Em 1923, Marcus Garvey escreveu que, com a Black Star Line, seu nome passou a ser conhecido nos “quatro continentes”, e a UNIA, a contar com quatro milhões de associados. A primeira afirmação era verídica, a segunda, fantasiosa. [GARVEY, 2017, p. 6.] As empresas marítimas obtiveram um sucesso publicitário, para a UNIA e Garvey, além das expectativas.  Porém, o tamanho do fracasso das companhias revelou, no mínimo, a inabilidade administrativa de Marcus Garvey e dos diretores da operação por ele escolhidos. A depressão tornou-se maior com o naufrágio concomitante da operação “Back to Liberia”, como veremos a seguir. 

         Mas, o que já é ruim, pode sempre piorar. Em 1923, Garvey e três outros membros da direção da Black Star foram acusados de fraude postal, ao distribuir, através do correio estadunidense, propaganda mentirosa, para arrecadar fundos, vendendo ações da Black Cross Navigation. A publicidade era ilustrada por um navio que não pertencia à Companhia e não alertava aos eventuais compradores a situação semi-falimentar da empresa. Punha-se em marcha a máquina judiciária que enviaria para a prisão e expulsaria Marcus Garvey para sempre dos Estados Unidos. Toda a operação foi comandada pelo futuro FBI.

V. Back to Africa: Marcus Garvey, o Moisés Negro

         O nacionalismo negro era uma pulsão antiga entre a população afro-estadunidense. A grosso modo, a principal bandeira da UNIA era a união mundial da diáspora negra e, sobretudo, de seu retorno à África, onde se fundaria uma poderosa nação negra. Um folheto de 1929 propunha: “A culminação de todos os esforços da UNIA deve finalizar em uma nação negra independente no continente africano.” O “objetivo final” era  “uma nação poderosa para a raça negra. O nacionalismo negro é necessário. Significam o poder e o controle político.” [BENJAMIM, 2013, p. 35.] Para dar algum conteúdo a sua pregação, Marcus Garvey propôs a consigna central de  “Retorno à África” [“Back to Africa”]. A conquista de território africano para fundar o poderoso Estado negro seria realizado, como vimos, pelos corpos militares da UNIA.        

         Um retorno à África era proposta discutida pela população livre afro-estadunidense, desde inícios do século 19, se não antes, sendo por ela pouco acolhida, ao saberem que a África lhe reservava condições de vida inferiores às que gozavam nos USA.  Devido a essa certeza, Garvey propôs que, primeiro, partissem como pioneiros homens e mulheres instruídos e capazes de preparar, na África, comodidades mesmo limitadas para a população negra dos Estados Unidos.  Por facilidade e tradição, a Libéria foi o país escolhido para fundar a poderosa nação negra.

         Em inícios do século 19, entre os destinos pensados por escravistas e abolicionistas racistas para livrarem-se da população negra livre, vista como naturalmente inferior e fonte de agitação social, estavam sobretudo a Serra Leoa, e a seguir a Libéria, onde eram despejados os africanos de tumbeiros capturados pela Marinha Real inglesa, quando da repressão do tráfico transatlântico no século 19.  Também foram propostos, como territórios-despejos, as Antilhas, o Haiti, o México, o Canadá e as terras selvagens do oeste estadunidense. 

         Mesmo após a fundação da colônia da Libéria, uma parcela muito minoritária  da comunidade negra livre estadunidense optou, como eventual terra de liberação, pelo Haiti, pela América Central, e, sobretudo, pelo Canadá.  Após o fim da Guerra Civil, em 1865, negros livres migraram para o Kansas e Oklahoma, fugindo da discriminação racial, que muito logo os alcançou. [TÉTÉ-ADJALOGO, 1995, p.145 et seq.]

Fundação da Libéria

         A Libéria foi iniciativa da “Sociedade norte-americana para  enviar o povo livre de cor dos Estados Unidos colonizar terras no exterior”. A sociedade foi pensada, em 1816, e fundada em 1818, nas dependências do Congresso, em Washington D.C., apoiada e financiada por ricos escravistas sulinos. [U.S. Federal Census for Truro Parish, Fairfax County Virginia p. 15.; CLEMENTI, 1974, p. 24.]

         Em inícios do século 19, 250 mil negros livres viviam nos USA. Temia-se que eles liderassem a enorme massa de escravizados. O sonho de alguns escravistas ideológicos era que, após uma vida na escravidão, os negros livres partissem de volta para a África, transformando gradativamente os Estados Unidos em uma nação exclusiva dos anglo-saxões protestantes. Uma colônia afro-americana permitiria também  bons negócios. [American Colonization, s.d.] 

         Em 1821, a “Sociedade Americana” comprou, de chefes africanos, por um punhado de dólares,  porção de terra na costa ocidental africana, onde surgiu a cidade de Monróvia, capital da colônia da Libéria. A região insalubre, de clima equatorial, conhecia chuvas torrenciais na costa, seguida de estação seca e ventosa. No interior, dominavam densas florestas equatoriais. A população nativa muito logo se opôs, como pode, à iniciativa.

É melhor o Haiti e o Canadá

         Apenas uns doze mil negros livres partiram para a Libéria, de 1821 a 1867 – em média, poucos mais de duzentos por ano, com muitos retornos ao país. A “Sociedade Americana” promoveu algumas poucas viagens coletivas e sobretudo pagou passagens para quem para lá quisesse ir. A proposta foi duramente combatida por lideranças negras.

         Em janeiro de 1817, uma reunião pioneira de três mil negros livres na Filadélfia, cidade nortista de forte população afro-estadunidense, se pronunciou cabalmente contra o retorno à África e se organizou para combater qualquer iniciativa para “desterrar” a população negra dos Estados Unidos. [DRAPER, 1969: 26.] Entretanto, considerou-se que o Haiti e, sobretudo, o Canadá, fossem destinos possíveis, ainda que não aconselháveis. Alguns poucos milhares de negro-estadunidenses livres partiram para aqueles dois países. Durante a escravidão, o Canadá foi também refúgio de cativos escapados.

         Os poucos colonos negros estadunidenses estabelecidos na Libéria conformaram uma oligarquia que se perpetuou no poder, desprezando e explorando os nativos. Africanos foram escravizados em  algumas plantações comerciais que organizaram. A República Livre da Libéria, formalmente independente em 1847, manteve-se sob o domínio econômico ianque,  da Europa e da “Sociedade Americana”, dirigida por capitalistas brancos. Ela foi dissolvida apenas em 1964.  [FOHLEN, 1973, p. 54.]

A UNIA vai à África

         Marcus Garvey enviou, em 1920, 1923 e 1924, delegações da UNIA para a Libéria  a fim de explorar a possibilidade da operação e de negociar, com Charles D.B. King (1920-1930), presidente do país africano.  Foram prometidos o estabelecimento de relações comerciais, o envio de levas de colonizadores, a fundação de fábricas.  A iniciativa contava com o apoio do governo estadunidense racista interessado na expatriação voluntária de estadunidenses negros.[BENJAMIM, 2013, p. 41.]

         Em 1920, um primeiro emissário, Elie Garcia, estabeleceu relações promissoras com as autoridades da Libéria e produziu um relatório público, extremamente positivo, e outro,  secreto, para Marcus Garvey e dirigentes da UNIA. No segundo documento, propunha que as  autoridades governamentais liberianas eram ineptas e preguiçosas. Recomendava, portanto, que, após se consolidar no país, negros estadunidenses, sob a direção da UNIA, deviam comandar a fundação da nova nação na Libéria. [JOHNSON, 2019, p.65-8.]

         Em 1923, a UNIA abriu uma embaixada simbólica em Monróvia, capital da Libéria. Garvey lançou coleta, de grande sucesso, de três milhões de dólares da época, para subsidiar a operação “Back to Liberia”. O governo liberiano e os representantes da UNIA escolheram Cap Palmas para os imigrantes estadunidenses se estabelecerem e um terreno de duzentos hectares foi doado para que a UNIA iniciasse a operação.

Águas abaixo

         O apoio que a operação recebera no Senado  e motivou a oposição de lideranças negras estadunidenses e de governos coloniais europeus, assustados com a grandiloquência de Marcus Garvey, e temendo que os Estados Unidos estivessem por detrás da operação. Garvey primava pela falta de tato diplomático.  Pensava e verbalizava as intenções fantasiosas da UNIA de servir-se da Libéria como uma cunha na conquista da África Negra. 

         A UNIA começou a enviar alguns técnicos, máquinas, nomear funcionários. Prometeu transferir, em janeiro de 1922, sua sede central para a Libéria. O plano de conquista do continente registrava, por um lado, fantasia desvairada sobre as reais forças da UNIA e, por outro, desconhecimento  sobre a dimensão e complexidade do Continente Negro. Entretanto, as divagações de Marcus Garvey sobre a conquista da África inebriavam seus seguidores.

         Os governos coloniais teriam inquirido o governo da Libéria sobre os planos da UNIA e, certamente, facilitado que o  relatório  secreto de 1920 chegasse às mãos do presidente liberiano. Em 26 de outubro de 1924, os dirigentes da Libéria declararam a oposição ao projeto da UNIA. Além do relatório secreto sobre o país, teria contribuído para a ruptura da parceria o interesse dos membros do governo liberiano em obter vantagens da UNIA e de dirigentes dessa organização em realizar bons negócios particulares na Libéria, entre eles, Marcus Garvey que buscou comprar terras no país africano. [JOHNSON, 2019, p.70.]

Fim da festa

         Em fins de 1924, a UNIA vivia em plena ressaca, noticiada pelos grandes jornais e pela imprensa negra. Naquele momento, a “Black Star Line”, a grande iniciativa da  UNIA, encontrava-se em situação falimentar e Marcus Garvey, recorria em liberdade de uma condenação de cinco anos de prisão. O governo liberiano retirou a concessão do terreno cedido a UNIA, se apoderou das máquinas e materiais enviados para construir o alojamento para a primeira leva de emigrantes. 

         Com a ruptura das relações entre a UNIA e o governo liberiano, a operação “Back to Africa” naufragou, como os navios da Black Star Line. Boa parte dos anteriores seguidores  abandonaram descrentes a Marcus Garvey. [BENJAMIM, 2013, p. 40.] O “Back to Africa” era uma proposta e um objetivo escapistas, mágico-fantasiosos, que seduzia sobretudo a imaginação de uma  população negra urbana, radicada no Norte, proveniente das Antilhas ou separada recentemente de suas raízes culturais, familiares, históricas natais, no Sul.            

         A profunda dissociação do negro-estadunidense com as instituições do Estado e da Nação, facilitava uma adesão meramente simbólica ao convite de reconstruir uma vida em uma terra livre, não racista, nesse caso, na África Negra, em geral, e na Libéria, em especial, região sobre a qual não se conhecia quase nada. A população negra tinha, entretanto, raízes entranhadas em suas regiões natais e nas comunidades em que haviam nascido e vivido, nos Estados Unidos.     

VI. Dormindo com o Inimigo: Marcus Garvey e a Ku Klux Klan

         Marcus Garvey apoiava sua proposta de desterro voluntário do negro estadunidense na concepção de que a comunidade afro-descendente não tinha relação de pertencimento com sua terra natal. Seria, ao contrário, parte de uma coletividade negra internacional imaginada com raízes nacionais na África Negra, vista como um todo uniforme. Portanto, ela não deveria participar de partidos  estadunidenses e reivindicar direitos cidadãos em uma nação que não seria  sua, mas preocupar-se com sua transferência para o Continente Negro.

         Uma política, por um lado, atacada por lideranças negras que lutavam pelos direitos civis e sociais e, por outro, valorizada pelos gestores do Apartheid, no Sul, e pelos racistas, do Norte. Os racistas denominavam os membros da comunidade negra de “africanos”, um povo e uma raça em tudo estranhos a um país criado e pertencente aos anglo-saxônicos. Uma nação que, para além das elucubrações supremacistas, sobretudo quanto ao Sul, fora literalmente construída pelos trabalhadores africanos e afro-descendentes escravizados e livres. Por esses tempos, a comunidade negra oposta à emigração, começou a abandonar a designação de africanos autodesignando-se de “negros”, também para registrar o pertencimento à terra natal estadunidense. 

         Em 25 de junho de 1922, Marcus Garvey levou ao extremo sua proposta de estranhamento da comunidade negra ao país em que nascera, encontrando-se com Edward Young Clarke, da Ku Klux Klan, no escritório daquela organização em Atlanta. A reunião amigável com o dirigente máximo da mais conhecida sociedade racista estadunidense, foi amplamente  divulgada, não apenas pela mídia negra. Mesmo que a  Klan jamais apresentou relato sobre as negociações, acredita-se que se discutiu a abertura do Sul, pela KKK, para a Marcus Garvey, em troca do combate da NAACP, a maior inimiga do Apartheid, pela UNIA. [JOHNSON, 2017,  p. 94-103.]

Explicando o inexplicável

         Em 9 de julho de 1922, dias após se reunir com o chefe máximo da Klan, Marcus Garvey empreendeu ensaio de explicação para seu público, no Liberty Hall, em New York. No dia 15, a intervenção oral foi publicada no “The Negro World”, principal publicação da UNIA. A justificativa da esdrúxula reunião, para não dizer mais, é pobre, circular e se apoia em uma rústica e consciente distorção da realidade. Ela é, porém, informativa sobre a visão de mundo e objetivos de Marcus Garvey. [GARVEY, 2017, p. 74.]

         Foi proposto que Marcus Garvey e a UNIA, em dificuldades econômicas, olhavam gulosos para o Sul, onde se encontrava a esmagadora maioria da população negra estadunidense, fortemente analfabeta e semi-analfabeta. Com o contubérnio midiatizado entre os chefes da UNIA e da Klan, Marcus Garvey procurara deixar clara a enorme concordância entre os dois movimentos. 

         Sobretudo, Marcus Garvey apontava para a importante colaboração e legitimação que  a doutrina da UNIA podia prestar ao Apartheid e às classes dominantes sulinas. Ele esperava, assim, o apoio da Klan para o financiamento da Black Star Line, em dificuldades econômicas. Ao igual de B.T. Washington, que se movia entre os supremacistas brancos do Sul como um peixe na água, Marcus Garvey queria e pedia licença para nadar na piscina racista sulina. Entretanto, a coisa não era tão simples, como veremos.

Em busca do Paraíso na Terra

         A implantação no Sul era econômica e politicamente imprescindível, para a consolidação da UNIA. Marcus Garvey propunha no artigo citado: “O maior número de negros nos Estados Unidos da América vive abaixo da Linha Mason e Dixon […]” – linha que demarcava o sul escravista do norte livre. Três em cada quatro afro-estadunidenses viviam nos estados sulinos sob o tacão do racismo institucionalizado, mantidos na mais profunda exploração, incultura e opressão. Era ali onde penetrara mais fundo a vontade de buscar em outra região melhores condições de existência.      [GARVEY, 2017, p. 74.]

         Em torno de 1916, quando Marcus Garvey desembarcou em Nova Iorque, se processava a Grande Imigração da comunidade negra sulina em busca de trabalho no Norte.  Como vimos, boa parte dos seguidores de Garvey havia chegado do Sul à procura de trabalho.  Entretanto, mesmo sofrendo o racismo institucional não sempre soft e pogrons terríveis que se sucederam nas cidades industriais do Norte, a comunidade negra criava raízes, aproveitava-se de todas as oportunidades que se abriam ou que abriam, sonhando e exigindo o que lhe era devido, nos Estados Unidos, e não em alguma região miserável da África Negra. Queria progredir, e não regredir. A notícia da reunião entre a UNIA e a Klan causou um escândalo nacional. Correu o boato malévolo que Marcus Garvey era membro da Klan. [GARVEY, 2017, p. 8.] 

         Não se tratava de um mero debate político e ideológico. A Klan teria nascido, imediatamente após a derrota da Confederação, em 1865, na Georgia, fundada por ex-combatentes sulistas, não para expulsar os cativos apenas libertado do Sul, mas, ao contrário, para mantê-los ali na submissão e no trabalho mal pago. Ela era responsável pelo linchamento e massacre de multidões de negro-americanos e, em menor número, de judeus, de chineses, de nativos e de brancos não racistas ou com laços afetivos inter-raciais.

Distorção da realidade

         A aproximação à Klan começara alguns meses antes, com a imprensa da UNIA tentando explicar as ações e razões da organização supremacista branca, já sob o espanto e forte críticas de lideranças e da comunidade negra.  A entrevista foi a conclusão dessa aproximação e, certamente, de negociações sobre as quais sabemos pouco. As razões apresentadas por Marcus Garvey da entrevista indecente seriam simples. Segundo ele, a Klan representava praticamente a totalidade da população branca dos Estados Unidos, sendo tão forte no Norte como no Sul.  Ela seria o “governo invisível do país”. Duas afirmações falsas.

         E Marcus Garvey seguiu, em sua explicação, construindo realidades fantasiosas segundo suas crenças, desejos e necessidades. Para ele, a Klan nada teria contra o negro, em especial. Buscava apenas proteger os interesses da raça branca nos Estados Unidos. Mobilizavam-se para que a “América” fosse  um “país do homem branco”. No que teriam razão, explicava Marcus Garvey, já que a UNIA queria fazer da “África um país totalmente do homem negro”! [GARVEY, 2017, p. 74.]

         O problema era que o pretenso desejo de construir uma nação de habitantes exclusivamente brancos violentava, com atos criminosos, os direitos da população negra estadunidense. A Klan era um movimento organizado para impor o terror ao negro através da prática da violência. E, justificar essa realidade, porque Marcus Garvey delirava sobre uma África pertencente aos negros de todo o mundo, sem consultar os africanos, era trocar uma galinha gorda, na mão, por um amontoado de nuvens, que, para Marcus Garvey, era uma revoada de pássaros.

Nada de branco com negra, de negra com branco

         Segundo Marcus Garvey, o paralelismo na luta das duas organizações era mais profundo, estrutural. “[…] a UNIA está realizando exatamente o que a Ku Klux  Klan está realizando – [perseguir] a pureza da raça branca no Sul”. E a UNIA ia mais fundo que a Klan, ao propor a “pureza da raça negra não apenas no Sul, mas  em todo o mundo.” Portanto, nada de negro de namorisco com branca, de branca de namorisco com negro, no Sul, no Norte, no Mundo. Para a felicidade de todos, e a pureza racial, cada macaco em seu galho! [GARVEY, 2017, p. 74.]

         As razões apresentadas da aproximação entre a UNIA e a organização racista eram patéticas e falsas. A Klan e os fundamentalistas propagavam a pureza racial do homem branco, pisoteando sobre milhões de negros estadunidenses, que desejavam que ficassem trabalhando no Sul, super-explorados. Marcus Garvey defendia a pureza racial negra, ferindo apenas a inteligência dos que o escutavam e ofendendo, é certo, mulatos e mestiços, o que fazia habitualmente. E, mais ainda, corroborava a propaganda dos fundamentalistas brancos, para cair nas suas boas graças.

         O negro-estadunidense não podia ficar nos Estados Unidos, segundo Marcus Garvey. Ele propunha que a Klan lhe fizera “entender que a atitude deles se baseia na suposição de que este país foi descoberto pelo homem branco; este país foi primeiro povoado e colonizado por homens brancos” e que  a Klan faria o possível para que assim continuasse. E Garvey não retrucou a esse argumento furado, calando, mais por oportunismo do que por ignorância, que a  participação do africano e do afro-descendente na construção dos Estados Unidos, em graus diversos, se dera desde a chegada dos primeiros colonizadores. 

De Braços com o Inimigo

         Sendo minoria, e, sobretudo, visitante na terra em que havia nascido, o negro-estadunidense devia, portanto, fazer as malas e partir, defendia Marcus Garvey. Não havia que centrar forças no combate à Klan e ao racismo, ou reivindicar os direitos cidadãos negados. Devia se centrar no “Retorno para a África”, preparado pela UNIA. Esta consigna apoiava, nos fatos, a da  “América para os brancos” dos supremacistas. Marcus Garvey alienava o que não era seu, pelo direito de ir pescar no Sul. [GARVEY, 2017, p. 74.]

         Para avançar seus interesses, Garvey falsificava a realidade,  pisoteando os interesses da comunidade negra. A Klan sequer representava a maioria da população do Sul e, menos ainda, do Norte. E, como já lembrado, as classes dominantes sulinas, certamente favoráveis à “pureza racial”, eram decididamente contra o abandono do Sul pela comunidade negra. Haviam lutado e perdido uma guerra em defesa dos seus negros, aos quais se agarravam com unhas e dentes. A organização sinistra nascera para manter eternamente no Sul o trabalhador negro, submetido e explorado.

         Em sua autobiografia, Malcolm X lembra que a Klan rodeou sua casa, em Omaha, Nebraska,  ameaçando sua mãe por que seu pai, um homem de 1m96cm, “muito negro”, pregador itinerante, garveynista e militante da UNIA, seduzia os “negros bons”, com as propostas de abandonar o Sul pela África. Mais tarde, em 1929, em East Lansing, Michigan, uma “Legião Negra”, supremacista, seguiu perseguindo seu pai, incendiou sua casa e, terminou por assassiná-lo, pela mesma razão, deixando a família em enormes dificuldades. Três tios paternos de Malcolm X haviam sido mortos por homens brancos e um quarto, linchado. [MALCOLM X, 2019, p. 11-12.]

         A       Não se tratava de um diálogo diplomático entre as direções máximas do povo branco e do povo negro, como Garvey propunha. A Klan e a UNIA representavam apenas parcelas diminutas dos  brancos e dos e negros, não possuindo direito em falar em nome da totalidade daquelas comunidades. Entretanto, o estrago fora feito. A UNIA era, não importando o que defendesse, uma organização de destaque da população negra do Norte. Seu principal dirigente fora ao Sul se abraçar,  defender e se solidarizar com uma associação terrorista a serviço do Apartheid.

Desde o início     

         Garvey propunha que todo branco era um racista visceral, desejando e militando pela partida do negro estadunidense para fora dos USA. Que o negro era uma minoria sempre à espera de ser ejetada do país em que nascera, mas que não lhe pertencia. Que a única solução era o retorno do negro estadunidense à África, terra dos africanos, que já fracassara rotundamente com a ruptura com o governo da Libéria. Mas quando e por quê, realmente, nascera a proposta da UNIA de  “Back to Africa”?  

         A transferência de Marcus Garvey, em 1916, aos Estados Unidos, talvez deva também ser compreendida pela necessidade de encontrar um país que melhor se adaptasse, do que a Jamaica, às suas propostas de retorno à África e de separação racial radical de brancos e negros. Na sua terra natal, após a Fundação da UNIA, em 1914, essa equação não funcionou. Ali, propor a partida dos negros para a África era uma sandice, já que a imensa maioria da população da ilha era negra, sem mestiçagem. 

         Na grande ilha, Marcus Garvey deveria, seguindo sua visão racista de mundo, propor a expulsão dos pequenos magotes de brancos e dos mulatos e mestiços, apenas mais numerosos, seguindo o exemplo do Haiti. O que ensejaria transformações sociais profundas, já que a propriedade das riquezas era semi-monopólio dos ingleses, dos europeus e de mulatos e mestiços ricos. 

         A defesa da pureza racial era desnecessária entre uma população de camponeses majoritariamente afro-descendentes. E a própria luta anti-racistas exigia mediações, em um país em que ele vivera, até os quatorze anos, sem conhecer o que era o racismo. Como proposto, na Jamaica, sua defesa de linha divisória rígida entre negros e brancos a não prosperou entre os mulatos e os mestiços, encontrando sobretudo a apoio e compreensão entre ingleses e europeus  racistas.

Garvey Must Go

         Após a reunião com a Klan, foi enorme a reação contra Marcus Garvey. Lideranças negras organizaram-se em comitê, lançando a consigna “Garvey Must Go” [“Garvey deve partir”], quando se realizava o terceiro congresso internacional da UNIA. Exigia-se que deixasse o país, para onde quisesse!  A NAACP, em 1919, com quase 4.500 seções, integrou-se àquele grupo de pressão. Garvey defendeu-se acusando a NAACP de elitista e que tentava silenciá-lo por perder milhares de militantes para a UNIA. 

         Mais tarde, em 1927, a NAACP e importantes lideranças negras apoiaram a ordem judicial de expulsão de Marcus Garvey dos Estados Unidos, após seu encarceramento. Em sentido contrário, lideranças do supremacismo branco e da Klan o visitavam na prisão e fizeram campanha contra sua deportação e, a seguir, por seu retorno aos Estados Unidos. Não queriam perder o valioso aliado.

         A oposição a Marcus Garvey contou com a adesão W.E.B. Du Bois, célebre intelectual e militante afro-estadunidense, de orientação socialista e pan-africanista, que quebrara lanças com B.T. Washington, em boa parte pelas mesmas razões. Marcus Garvey definiu o seu crítico como um “mulato infeliz que lamenta cada gota de sangue negro nas veias. Entretanto, Du Bois não participou da campanha Garvey Must Go” e se declarou contra seu banimento perpétuo. [RABELO, 2013, p. 506; TÉTÉ-ADJALOGO, 1995, p. 228 et passim; DU BOIS, 1923.]

Racista científico

         Marcus Garvey seguiu mantendo públicas e sólidas relações com os supremacistas brancos que, no Sul, apoiados pela lei, atacavam e reprimiam qualquer ensaio de relações afetivas e matrimoniais inter-raciais, em prol da manutenção de uma população branca racialmente pura,  política por ele defendida. A seguir, foi comum o intercâmbio de oradores racistas brancos e garveynistas nas reuniões, assembleias e meeting das respectivas organizações.       

         Marcus Garvey abraçou o racismo científico explicitamente. Defendia a necessidade da   “pureza de ambas as raças”, branca e negra, atacando o matrimônio inter-racial. Propôs, em 1923, que defender a igualdade das raças,  “como fazem certos líderes de cor, para que negros e brancos se unam”, é “doutrina perversa e perigosa” que destruiria a “pureza racial” das raças negras e brancas. [GARVEY, 2017, p. 8.] 

         Marcus Garvey anatematizava a miscigenação racial, desqualificando o  mestiço e o mulato. Entretanto, B.T. Washington e Frederick Douglas, para ele personagens referenciais, eram mulatos. E ele, que se orgulhava de ser  um negro puro, casou-se, em segundas núpcias, com uma mulata. Nos USA, a pregação racista da UNIA era bem recebida entre os camponeses emigrantes da Jamaica, onde eram discriminados pelos brancos e mulatos. Na terra dos Pais Fundadores,  não havia a abertura jamaicana para mulatos, por parte de uma população branca majoritária.

Sob crescente pressão

         Concomitante com o encontro com o dirigente da Klan, em 27 de julho de 1922,  Garvey separou-se de sua esposa e co-fundadora da UNIA, Amy Ashwood [1997-1969], em um divórcio tenso e midiatizado, devido à relação que mantinha com sua secretária e, a seguir, sua segunda esposa, Amy Jacques [1895-1973], jamaicana, mulata, nascida em família de classe média, futura mãe de seus dois filhos. 

         Durante o divórcio, voaram acusações não apenas de adultério, lançadas pelos ex-esposos. Segundo parece, Marcus Garvey não era muito amigo da fidelidade matrimonial. [GARVEY, 2017, p. 8.] Seu primeiro casamento, com Amy Ashwood fora o acontecimento social do ano no Harlem, celebrado por cinco ministros e com a presença de três mil convidados.  O segundo casamento deu-se discretamente.

         Seus desmandos político-ideológicos, o desastre econômico das iniciativas empresariais, seu atormentado divórcio, a acusação de mandante da morte do reverendo James Eason contribuíram para a corrosão do apoio a ele e a UNIA. Sob pressão, Marcus Garvey teria passado a servir-se de seus guarda-costas e do serviço de informação da UNIA para dirimir questões internas e externas. [JOHNSON, 2019, p.70; TÉTÉ-ADJALOGO, 1995, p.280.]

VII. A Estrutura da UNIA

         A UNIA possuía bandeira vermelha, negra, verde e assumiu um caráter aparentemente paramilitar, o que deve ter preocupado as autoridades estadunidenses, fortemente racistas. Seus núcleos locais reuniam-se em sedes alugadas ou em casa de algum membro, em geral, aos domingos à noite. Os núcleos deviam se autofinanciar e enviar uma colaboração para a sede central, sediada no Liberty Hall, em Nova Iorque. Os grupos novos deviam ser reconhecidos pelo centro. “As atividades incluíam debates; conversações com marinheiros, mercadores, profissionais, estudantes, reuniões itinerantes; campanhas de recrutamento; aulas de costura; bailes e concertos.” [BENJAMIM, 2013, p. 37.]

         A UNIA possuía diversas organizações. Na principal, a “Legião Universal Africana”, os integrantes recebiam instrução militar sumária como futuros soldados da libertação africana. Nos Estados Unidos, o treinamento era feito com armas de fogo. Havia um corpo de guarda-costas, com um uniforme uma calça com listas vermelha e verde, que realizava a segurança de Marcus Garvey e dos atos da UNIA. Foi constituído serviço secreto de informação, ligado diretamente ao dirigente máximo do movimento.

         Mulheres jovens e adultas, integrantes do “Corpo Motorizado Pan-africano”, reuniam-se para treinamento militar e para aprender a dirigir. Elas conduziriam os “carros, táxis e ambulâncias” quando das previstas guerras de “libertação na África Negra”. A “Black Cross Nurses” [Enfermeiras  da  Cruz  Negra], foi criada e dirigida pela primeira esposa de Garvey.  Ela ministrava cursos de “primeiros socorros e cuidados médicos”. Durante a I Guerra Mundial, a Cruz Vermelha não aceitara enfermeiras negras.

Águia sem asas

         Foi criado um “Corpo Juvenil” e um “Corpo Voador da Águia Negra“ [“Black Eagle Flying Corps”], que não se materializou por falta de aviões e pilotos. Para todos esses corpos foram designados oficiais, com os respectivos uniformes supercoloridos, condecorados habitualmente, o que fortalecia a adesão à UNIA e, sobretudo, a Marcus Garvey. [BENJAMIM,  2013, p. 38; RABELO, 2013, p. 515;  TÉTÉ-ADJALOGO, 1995, p. 318.]      

         A UNIA organizava-se para regular as mais diversas esferas da vida pessoal e doméstica dos militantes, dando-lhes um forte sentimento de pertencimento. Ela incentivava o casamento entre os membros da organização e seus filhos, apenas nascidos, recebiam certidão de nascimento do movimento. Eles eram chamados de “filhos da UNIA” e de “filhos de Garvey”.   As crianças e pré-adolescentes deviam decorar um poema de Garvey por semana,  e escutavam histórias edificantes do grande chefe e de personalidades negras tidas como destaques. 

         Os pais ralhavam com os filhos desobedientes, dizendo: “Garvey não gosta que faças isso!” A Cabana do Pai Thomás, de Harriet Beecher Stower, era leitura obrigatória. As crianças deviam decorar o decálogo dos princípios da UNIA e  as meninas recebiam para brincar bonecas negras, difusão de tal prática atribuída à UNIA.   [BENJAMIM, 2013, p. 39.]

         A UNIA jamais se autofinanciou com a rentabilização de seus investimentos. Ela dependia da cotização de membros, da venda de produtos [publicações, ações, etc.] e, sobretudo, de doações quando das reuniões semanais, conferências, campanhas de fundos. Seus custos de manutenção eram elevados, já que funcionava como uma empresa, remunerando os administradores, publicações, personalidades de destaque que se uniam à UNIA. [JOHNSON, 2019, p.70.] Para Garvey e os dirigentes do movimento, a UNIA era também um negócio.

Igreja Ortodoxa Africana

         A religião era esfera da vida demasiadamente importante para ser deixada à margem do controle da UNIA. Em 1918, Marcus Garvey impulsionou a fundação de uma  Igreja Ortodoxa Africana [“African  Orthodox  Church”], em função ainda hoje, sem muito brilho, nos Estados Unidos e na África Negra. Naquele ano, o reverendo antilhano George Alexander McGuire [1866-1934] foi nomeado capelão-mor da UNIA e promoveu a confluência de igrejas protestantes negras dispersas dos Estados Unidos, Canadá e Cuba na Igreja Ortodoxa Africana, fundada em 2 de setembro de 1921. 

         George Alexander McGuire foi consagrado bispo pela  Igreja  Ortodoxa  Grega e, mais tarde, arcebispo e, finalmente, patriarca, com o título de Alexandre I. Apesar da referência à ortodoxia, a pregação era essencialmente anglo-protestante.  A Igreja garveynista, sob o controle negro, dirigia-se prioritariamente à população negra e africana, mas não rejeitava fiéis de outras cores. 

         Na nova Igreja, e no interessante catecismo universal que produziu, deus pai, Jesus, a Virgem Maria e os anjos eram  negros e o demônio, logicamente, branco, em repetição do proposto por Chimpa-Vita, jovem profeta e nacionalista do Reino do Kongo, queimada viva pelos portugueses, em 1º de julho de 1706. [MAESTRI, 2022, p. 125.] A Igreja Ortodoxa Africana fundou um periódico, “The Negro Churchman”, que funcionou como ligação entre as igrejas dos Estados Unidos e no exterior.     Ela fundou um seminário teológico. 

         Antes da fundação a Igreja garveynista, havia enorme variedade de igrejas negro-estadunidenses protestantes, o que teria entravado o seu desenvolvimento, que jamais teria superado os trinta mil fiéis. Não ter abraçado culto de matriz africana e privilegiado  credo cristão em negativo, é outro registro de que Marcus Garvey via a marcha em direção da África Negra  também como um movimento pela sua civilização ocidental. [RABELO, 2013, p. 521.]

Jornais e Revistas

         O destino conspirou em favor de Marcus Garvey quando, aos quatorze anos, ele foi enviado como aprendiz de tipógrafo, formação profissional que lhe permitiu participar da produção de todo tipo de impressos. Sem jamais ter sido um escritor de elevado talento, ele se distinguiu como editor de jornais e revistas, que permitiram levar muito longe suas propostas políticas e ideológicas. 

         Marcus Garvey declarou pretender fundar rede de publicações que, em dez anos, abarcaria as “principais cidades dos Estados Unidos, Europa, África Ocidental e do Sul e em todas as Ilhas mais importantes das Índias Ocidentais”. Esse foi o seu sonho que alcançou uma maior realização. [BENJAMIM, 2013, p.46.]

         Em 17 de agosto de 1918, Marcus Garvey fundou o semanário “O Mundo Negro” principal veículo de divulgação da UNIA, publicado em inglês, mas com artigos em francês e espanhol, se propondo expressar “unicamente os interesses da raça negra”. Com de dez a dezesseis páginas, tinha uma editoria internacional e uma feminina, responsabilidade das esposas de Garvey. [FOHLEN, 1973, p. 55.] A publicação possuía uma discreta distribuição em alguns países da África.

         Ao ser fundado, “O Mundo Negro” não aceitava publicidade de produtos para alisar o cabelo e clarear a pele, como a maioria das publicações negras.  Posição abandonada devido a problemas de caixa. Marcus Garvey pediu inutilmente que Du Bois escrevesse para o jornal, que abordava questões referentes à África, à diáspora negra e aos Estados Unidos. Na primeira página, publicava-se um editorial de Garvey.

O grande salto para adiante

         O semanário participava ativamente das campanhas de venda de ações das empresas da UNIA e da divulgações dos encontros internacionais. Distribuindo inicialmente alguns milhares de exemplares, sua divulgação cresceu fortemente em 1920. A proposta de uma tiragem de 200 mil exemplares é possivelmente outro exagero. O alcance da revista era superior à sua distribuição, já que passava de mão em mão.

         Devido à proposta de  “A África para os Africanos”, a  circulação de “O Mundo Negro” teria sido proibida nas colônias francesas, italianas, portuguesas e belgas da África, escapando da interdição apenas em algumas colônias inglesas. “O Mundo Negro” deixou de aparecer em  1933, após quinze anos de existência.

         No Harlem, em 1922, Marcus Garvey publicou o “Daily Negro Times”, diário afiliado a agência de notícias United Press, de breve vida. Na Jamaica, de 1929 a 1931, lançou o diário “Blackman”, que apoiava o Partido Político do Povo, fundado por ele, que, de volta à Jamaica, abandonou a interdição de participação política que pregara nos USA, tendo chegado a ser eleito como vereador da capital. 

         Em 1929, “Blackman” publicava 15 mil exemplares. Em 1930, se transformou em semanário e, em fevereiro de 1931, endividado, interrompeu a circulação.  Em 1932-1933, Marcus Garvey dirigiu o “New Jamaican”, e, em dezembro de 1933, a revista “Black Man”, que o acompanhou quando se transferiu para a Inglaterra, onde se manteve até 1939. A revista tinha leitores nas Américas e na África Ocidental e do Sul. [BENJAMIM, 2013. p. 47.]

Pan-africanismo ao sabor estadunidense

         Em inícios do século 20, os fortes sentimentos pan-africanistas influenciaram Marcus Garvey, que os absorveu de múltiplas fontes.  Entre elas, Edward  Blyden [1832-1912], célebre intelectual afro-descendente nascido nas Índias Orientais Dinamarquesas, de pais livres, que imigrou, em 1850, para a Libéria, casando-se com uma mulher das classes dominantes locais, descendente de afro-estadunidenses. 

         Na Libéria, Edward  Blyden tornou-se jornalista, político e diplomata.  Sua principal consigna era a  “África para os Africanos”, retomada por Marcus Garvey. Embora pastor presbiteriano, propôs ser o islamismo uma religião mais africana que o cristianismo e, assim, mais própria para os negros nos Estados Unidos e fora dele. Seu principal livro foi Cristianismo, islamismo e a raça negra, publicado, em Londres, em 1887. [RABELO, 2013, p. 503.]

         Entre tantas outras influências pan-africanista de Marcus Garvey estava S. A. G. Cox. Em 1º de julho de 1911, ele escreveu na última edição do jornal do Clube Nacional: “Os negros e mestiços na Jamaica somente podem ter esperança de melhorar suas condições quando se unirem aos negros e mestiços dos Estados Unidos e com […] todos os negros do mundo.” Proposta retomada por Garvey, que excluiu os mestiços do pacto internacional proposto. [LEWIS, apud RABELO, 2013.] 

A agonia do Moisés afro-estadunidense

         Na mira de J.E. Hoover, chefe da repressão federal interna estadunidense, Garvey e três outros seus prepostos foram julgados em 1923, por fraude postal, por enviarem, por correio, publicidade mentirosa para a venda de ações. A acusação não era grave, mas teria sido agravada pela megalomania e inabilidade de Marcus Garvey, que realizou, ele mesmo, sua defesa diante do tribunal, pretendendo transformar o julgamento em plataforma de divulgação de sua liderança e ação. Desconhecendo os ritos e a lei, avançou de tropeço em tropeço, facilitando e agravando sua condenação.                                                    

         Marcus Garvey foi condenado e seus três assessores absolvidos. Quando, após o retorno dos jurados, o juiz anunciou que ele era o único culpado, Garvey teria proferido  insultos ao tribunal, chamando o juiz, o promotor distrital e jurados de “judeus sujos”, o que teria aumentado sua pena – cinco anos de prisão e multa de mil dólares. Posto em liberdade, sob fiança, por primeira vez, Marcus Garvey abandonou o apoliticismo e apresentou candidatos da UNIA, em geral, em oposição a candidatos sustentados pela NAACP, o que interessava igualmente à Klan. Seus candidatos não obtiveram maiores resultados. 

         Em 2 de fevereiro de 1925, a pena foi confirmada e ele foi encarcerado, em fins de março, em prisão de baixa segurança, em Atlanta, onde foi visitado por racistas brancos de extrema-direita e da Klan, seus amigos fiéis. Na prisão, Garvey entregou a direção da UNIA para sua segunda esposa e escreveu poema épico sobre as maldades do homem branco, que circunscreve sua rústica visão da história e seus limitados dotes poéticos. [GARVEY, 2020.] 

De volta ao passado

         Movimento por sua libertação, da parte dos militantes da UNIA, apoiado pela direção da Klan, que jamais alcançou a se massificar, levou a um perdão presidencial, quando já cumprira boa parte da pena, sob a condição de abandonar o país para sempre, o que desejava o governo estadunidense.

         Em 18 de novembro de 1927,  Marcus Garvey partiu para a Jamaica. Retornava ao ponto de partida, onde iniciara a construção do mais importante movimento negro estadunidense organizado conhecido até hoje, em  derrota da qual jamais se recuperaria.  [TÉTÉ-ADJALOGO, 1995, p. 279-285.] 

         Marcus Garvey e sua esposa se estabeleceram em um bairro nobre da capital da Jamaica, onde compraram  moradia de prestígio, com a ajuda que receberam dos USA, de onde chegaram seus objetos de arte e uns 18 mil livros de sua biblioteca. Na sua terra natal, fundou um partido e publicações. Sem conseguir relançar seu movimento em recuo acelerado, transferiu-se para a Inglaterra.  

         Em Londres, Marcus Garvey, separado da esposa e dos filhos, seguiu dirigindo a UNIA e organizando convenções internacionais, com decrescente repercussão. Após a sua morte, em 10 de junho de 1940, a UNIA, sofreu sucessivas crises e dissidências, se mantendo apenas apoiada no sucesso que tivera no passado. 

*Mário Maestri é historiador. Autor, entre outros livros, de O despertar do dragão: nascimento e consolidação do imperialismo chinês (1949-2021) (FCM Editora).

Referências


ALI, Dusa Mohamed. [1866-1945], In the Lands of Pharoah: a short history of Egypt from the fall of Ismail to the assassination of Boutros Pasha. Londres: Stanley Paul,  de 191. 1https://archive.org/details/inlandofpharaohs00duserich/page/n23/mode/2up

American Colonization Society abolitionist organization. Britanica. https://www.britannica.com/topic/American-Colonization-Society]

BRIGGS, Cyril. The Negro Convention. Published in The Toiler [New York], v. 4, whole no. 190 (Oct. 1, 1921), pp. 13-14. 

BENJAMIM, Sistah Luísa. Markus Mosiha Garvey: A Estrela Preta. Agosto de 2013. Projeto Omega Nyahbingh. 

DOMINGUES, Petrônio. O “Moisés dos pretos”: Marcus Garvey no Brasil, Novos Estudos, . Cebrap, São Paulo, V. 36.03 p.129-150, novembro 2017  

DU BOIS,  W.E.B. Back to Africa. Century Magazine 150 no. 4:539-548,  February,  1923.

GARVEY, Marcus. The tragedy of White injustice. USA: BN Publishing, 2020.

GARVEY, Marcus. Selected writings and speches of Marcus Garvey. Dover, 2017.

GARVEY, Marcus.Philosophy and opinions of Marcus Garvey. Africa for the africans. New York: Open Road, s.d.

HAAS, Ben. Ku Klux Klan. São Paulo: Dinal,1966.

HISTORYDRAFT, Marcus Garvey e a Visão da África – Parte um. https://historydraft.com/story/marcus-garvey/the-watchman/623/12298

JOHNSON, Stephen. Marcus Garvey: A Biography. USA: Independent Published, 2019.

LAWLER, Mary. Marcus Garvey: black nationalist leader. Los Angeles: Melrose, 1990.

MAESTRI, Mário. Booker T. Washington, A Terra é Redonda, 13.07.2024, https://aterraeredonda.com.br/booker-t-washington/

MAESTRI, Mário. História da África Negra Pré-Colonial. Porto Alegre: FCM Editora, 2022.

MALCOLM X. Autobiografía contada por Alex Haley. Madrid: Capitán Swing, 2019. PARQUE, R.M, Toskegee international conference on de negro. The Journal of Race Development, Vol. 3,. 1 (julho, 1912), pp. 117-120.

RABELO, Danilo. Um balanço historiográfico sobre  o Garveyismo às vésperas do centenário da UNIA. Revista Brasileira do Caribe, São Luis-MA, Brasil, Vol. XIII, nº26, Jan-Jun 2013, p. 495-541. https://periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/rbrascaribe/article/view/2062

TÉTÉ-ADJALOGO, T. Goldwin. Marcus Garvey: Père de l´Unité africaine des peuples. I. Sa via, sa pense, ser réalisations. Paris: L´Harmattan, 1995.


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