Por VALERIO ARCARY*
Nos 205 anos de nascimento de Karl Marx o capitalismo ainda resta a ser derrotado
“Uma revolução ‘just in time’, sem riscos ou surpresas, seria um evento sem evento, uma espécie de revolução sem revolução. Realizar uma revolução possível é, em essência, intempestivo e, em certa medida, sempre prematuro. Uma imprudência criativa (…) Tomar o lado dos oprimidos quando as condições objetivas para sua libertação não estão maduras trairia uma visão teleológica? Os combates “anacrônicos” de Spartacus, de Münzer, de Winstantley, de Babeuf, tomaria então uma data desesperada na vida de um fim anunciado. A interpretação oposta parece mais de acordo com o pensamento de Marx: nenhum sentido pré-estabelecido da história, nenhuma predestinação justifica a resignação à opressão. Intempestivas (…) as revoluções não se enquadram nos padrões pré-estabelecidos (…) Elas nascem no chão, do sofrimento e da humilhação. Temos sempre razão em revoltar-nos” (Daniel Bensaïd, Marx L’intempestif, p. 69-70).
Hoje é o dia em que celebramos o nascimento de Karl Marx em 1818. Discutir a atualidade do marxismo é verificar se a ideia mais poderosa de sua obra passou a prova da história: a aposta de que o capitalismos seria, como os modos de produção que o antecederam, historicamente, transitório. O desafio colocado seria socialismo ou barbárie.
A inescapável pergunta, no início da terceira década do século XXI, é saber se o capitalismo ainda oferece algum horizonte para a vida civilizada. Mas, também, reconhecer que o perigo de regressão histórica nunca foi tão grande desde a derrota do nazifascismo na Segunda Guerra Mundial. A extrema-direita, e até movimentos neofascistas, cresce em escala mundial, nos países centrais, mas, também, nos periféricos. Seu projeto é a destruição dos direitos sociais conquistados no pós-guerra, e não pode ser subestimado.
O tema das regressões históricas não pode ser, portanto, negligenciado. A pulsação dos ritmos históricos foi, nas longas durações, em grande medida irregular, pleno de descontinuidades, e muito acidentado por verdadeiras fraturas de tempo, ou perigosos abismos em que o processo evolutivo mergulhou, bloqueando prometedoras possibilidades que estavam latentes, mas foram dramaticamente abortadas. A história nunca foi nem linear, nem circular. O relógio da história, às vezes, anda para trás.
A romantização da história como sinônimo de progresso é uma ilusão. As forças produtivas podem ou não crescer. A psicologia social das classes em luta importa. É muito conhecido, o exemplo histórico do Império Romano, que, embora tivesse disponível, um imenso volume de conhecimentos, em função da abundância de mão de obra escrava disponível, desprezou boa parte das aplicações tecnológicas, que representariam um importante aumento de produtividade. Ou seja, existem na história, contrafatores (sociais e políticos), que podem anular a tendência ao crescimento das forças produtivas e, por isso, este impulso de progresso não é linear, é muito irregular.
Um exemplo interessante, de como Marx estava atento às não linearidades do processo histórico, encontramos nesta passagem sobre as regressões históricas. O tema merece atenção, em uma situação como a que vivemos, em que processos de regressão se extendem em insólita velocidade, gerando na América Latina uma recolonização que tem sido descrita pelo jornalismo mais crítico, como as “décadas perdidas”.
Para conferir Marx, vejamos este fragmento: “O exemplo dos Fenícios mostra-nos até que ponto, as forças produtivas desenvolvidas mesmo com um comércio relativamente pouco vasto, são susceptíveis de uma destruição total, pois as suas invenções desapareceram na sua maior parte, pelo fato de a nação ser eliminada do comércio e conquistada por Alexandre, o que provocou a sua decadência… a duração das forças produtivas adquiridas só é assegurada quando o comércio adquire uma extensão mundial que tem por base a grande indústria e quando todas as nações são arrastadas para a luta da concorrência”.[i]
Não é incomum que análises históricas, se esqueçam do ABC do marxismo, que explica, que, em última análise, é porque agem, na maioria das circunstâncias, apesar dos seus interesses, ou até, contra os seus interesses, que as classes subalternas suportam, ou toleram, as condições brutais de exploração a que estão submetidas, sem se rebelar, ou adiando a rebelião.
Não o fazem, é claro, somente porque ignorem quais são os seus interesses, mas porque duvidam se suas próprias forças. E, no entanto, uma das definições mais simples de uma situação revolucionária, é que ela se abre, quando a maioria dominada começa a fazer a transição de uma situação de “classes em si”, para “classe para si”. A tendência “intrínseca” ao desenvolvimento das forças produtivas deve ser considerada à luz deste enfoque, com muitas mediações: ela também pode ser anulada por inúmeros fatores.
Entre os processos mais inverossímeis da história se destaca o efêmero reino dos Vândalos em Cartago. Depois de vagarem pelo sul da Europa durante alguns anos dedicados ao saque e à rapina, como outras tribos germânicas, os Vândalos cruzaram o estreito de Gibraltar e fixaram-se no norte de África onde impuseram o seu domínio feroz, escravizando impiedosamente os conquistados. Foram processos como esse, que levaram a maioria dos historiadores marxistas a considerarem que as revoltas de escravos não eram portadoras de qualquer projeto de reorganização da produção econômico-social que fosse muito diferente dos limites históricos do escravismo no Mediterrâneo.
O tema das grandes transições históricas, como se sabe, sempre atraiu a atenção dos historiadores marxistas. Na sua maioria concentraram o seu foco de pesquisa na passagem do feudalismo ao capitalismo, mas alguns se interessaram, também, com a mesma paixão, pelo colapso do mundo antigo. Buscavam compreender as condições objetivas desses momentos únicos da história que são as mudanças dos modos de produção. Entre os inúmeros estudos sobre a questão, merecem destaque os dois trabalhos de Perry Anderson, Passagens da Antiguidade ao Feudalismo e Linhagens do Estado Absolutista, pela original articulação das análises das lutas de classes com as outras causalidades, aplicando a esses períodos os recursos de uma compreensão da história como um desenvolvimento desigual e combinado.
Na aurora do capitalismo, a formação do mercado mundial, a elevação das forças produtivas das formas artesanais para a manufatura, o aumento na circulação das mercadorias e do dinheiro, vieram a encontrar na estrutura feudal um entrave que precisava ser deslocado, sob pena de bloquear a dinâmica de desenvolvimento das forças produtivas: era necessário eliminar as fronteiras internas; garantir a livre circulação de mercadorias e força de trabalho; erradicar a beligerância endêmica da nobreza. Essas tarefas exigiam deslocar os privilégios sociais e políticos da aristocracia.
Depois de séculos de um processo desigual, que assumiu ritmos e formas muito diferentes em cada região da Europa, não foi mais possível adiar a necessidade de destruir o Estado absolutista aonde ele tinha sido historicamente mais poderoso, na França. Quando se produz esse choque entre o impulso das forças produtivas, e as forças de inércia das relações sociais, a sociedade entra em uma época revolucionária, ou seja, uma época em que as lutas de classes assumem o lugar de força de força motriz determinante, um período que pode se estender por uma longa duração, uma época de grandes convulsões e lutas, mais ou menos conscientes, no qual as classes ascendentes lutam contra a velha ordem social.
Na história, existiram, no entanto, como sabemos, tanto transições de tipo revolucionário, quanto transições de tipo catastrófico: as segundas foram, para o fundamental, quase uma regra, até a transição do feudalismo ao capitalismo na Europa.
Mais raramente, ocorreram passagens de tipo reformista (transições negociadas ou controladas, em que predominam os acordos, as concessões mútuas, as acomodações de interesses, diante de um perigo maior), quase sempre, como uma consequência de passagens revolucionárias prévias. Mas as transições revolucionárias exigiram, além da caducidade das relações sociais de produção (inerente a qualquer processo de transição histórica), a emergência de um sujeito social.
Assim, no Mediterrâneo, por exemplo, apesar da longa decadência do império romano, não ocorreu uma transição revolucionária impulsionada pelo protagonismo da massa de escravos. E o império veio finalmente a sucumbir sob a pressão das grandes migrações germânicas. O escravismo freou o desenvolvimento das forças produtivas, mas as relações sociais não foram revolucionadas, porque inexistia uma classe capaz de assumir um projeto superior à organização econômica do mundo antigo.
Por séculos, as forças produtivas decaíram, estagnaram, retrocederam, ou seja, a sociedade de conjunto regrediu para, somente, sob as ruínas do desmoronamento da velha civilização, e após um longo intervalo de barbárie, poder encontrar um caminho de progresso social.
Esses eram, para Marx, os fatores que, com regularidade histórica, definiam a abertura de uma época revolucionária: a maturidade das forças produtivas, para uma reorganização da vida econômico-social, impulsionada por relações de produção superiores, e a existência de um sujeito social explorado que tenha interesses incompatíveis com a preservação da ordem.
A crise se antecipa necessariamente à formação de uma consciência da crise. Neste processo de construção da teoria, todavia, o conceito de época revolucionária, se refere, tanto à esfera da longa duração e, portanto, da transição histórica, à escala do mercado mundial constituído, como à esfera da curta duração e, portanto, da precipitação de uma onda de crises revolucionárias nos países mais desenvolvidos da Europa Ocidental.
No Manifesto Comunista não pareceria existir uma diferenciação conceitual. Muito possivelmente, Marx e Engels pensavam, ainda nas vésperas de 1848, que a hipótese mais provável, seria que a aceleração dos tempos históricos que o colossal crescimento das forças produtivas tinha conhecido, sob o impulso da revolução industrial, e a acelerada formação do proletariado moderno (as premissas objetivas assinaladas em A Ideologia Alemã), abreviassem o intervalo histórico da transição pós-capitalista. Após as derrotas de 1848, pareceria existir uma reavaliação teórico-política dos tempos, prazos e perspectivas.[ii]
Mas este tortuoso, multifacetado, irregular, e, sobretudo, desigual processo de desenvolvimento histórico não anula a conclusão de que, na longa duração, o desenvolvimento das forças produtivas tem na ciência e na tecnologia, o mais importante fator de impulso histórico. Este impulso, nunca foi, e não é, ainda hoje, exterior ao processo da luta de classes: a usura, a ganância e a cobiça, ou seja, tudo aquilo que faz a vulgaridade e a mesquinhez do capitalismo, definem o “espírito” de uma época, e são parte inseparável das suas convulsões internas e dos seus limites.
Este parece ser o ângulo de observação de Marx. E dele decorreria uma primeira classificação: as transições históricas pré-capitalistas, antiguidade clássica e pré-clássica, teriam sido predominantemente de tipo catastrófico, ou “inconscientes” (aquelas em que os fatores exógenos prevalecem, choques de civilizações, “volkerwanderung”, migrações de povos, invasões) em oposição às transições de tipo revolucionárias , ou transições “conscientes” (aquelas que têm como fator de impulso as lutas de classes, um sujeito social com um projeto de sociedade, portanto, os fatores endógenos) .
Essa “tendência intrínseca” e a “relativa inflexibilidade” das relações sociais e suas expressões superestruturais seria, portanto, a chave de compreensão da abertura de uma época revolucionária. Se o sujeito social está ou não consciente de quais são os seus interesses, se tem ou não confiança em suas próprias forças, se foi capaz ou não de se organizar para lutar por um programa que traduz a sua visão de como a sociedade deve ser transformada, ou seja, se o sujeito social está politicamente maduro para o desafio subjetivo do projeto revolucionário, em uma palavra, os fatores históricos subjetivos, seria, neste nível de abstração, irrelevante para a definição da natureza da época.
Mas, na mesma medida, os fatores subjetivos seriam crescentemente decisivos e determinantes na escala das situações e conjunturas, ou, em outras palavras, na medida em que análise se desloca tanto para um cenário geograficamente mais definido, quanto para prazos mais delimitados (a escala das décadas, ou mesmo dos anos, e meses). Em outras palavras, a definição de época revolucionária foi feita por Marx em uma escala histórica de longa duração, porque se apoiava no exemplo histórico da transição secular do feudalismo ao capitalismo. Cento e cinquenta anos depois sabemos que é muito difícil derrotar o capitalismo.
Mas ainda é possível, porque permanece necessário.
*Valério Arcary é professor aposentado do IFSP. Autor, entre outros livros, de Ninguém disse que seria fácil (Boitempo).
Notas
[i] MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. Trad. Conceição Jardim e Eduardo Lúcio Nogueira. Porto, Presença, 1974. p 66.
[ii]. A teoria da revolução em Marx e Engels, às vésperas de 1848, ainda estava inspirada na dinâmica interna revelada pela revolução francesa entre 1789/93. Sobre este tema, Marx em 1848, o interessante trabalho de Henri Lefebvre, Para compreender o pensamento de Karl Marx, comenta quando os ventos da revolução já se faziam sentir: “Foi a bela época da sua vida, a época feliz. Era (ou julgava ser) dono do seu pensamento e da sua doutrina. Os primeiros sintomas do movimento revolucionário tornavam-se visíveis ao seu olhar atento. Marx, segundo parece, julgava ainda possível passar sem interrupção da revolução democrática européia ao socialismo e ao comunismo, por uma “revolução permanente”. Abriam-se perspectivas sem limites. Tinha então 30 anos e encontrava-se em pleno vigor da juventude, do genio, do amor feliz”. (LEFEBVRE, Henri. Para Compreender o Pensamento de Karl Marx. Trad. Laurentino Capela. Lisboa. Edições 70. 1981).
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