Por MICHEL GOULART DA SILVA*
O contexto de preparação do processo revolucionário se confunde com a própria obra de Karl Marx e Friedrich Engels
Não são raras as interpretações que apontam para uma natureza teleológica do marxismo, afirmando que, para essa corrente de pensamento, a revolução seria um processo que levaria inevitavelmente para o socialismo ou mesmo para o comunismo. O Manifesto Comunista seria um dos principais exemplos que expressam essa teleologia marxista, afinal nela Karl Marx e Friedrich Engels teriam previsto que o capitalismo logo entraria em colapso.
Contudo, essa é uma interpretação equivocada da obra. Nesse texto, de forma geral, a “iminência” da revolução que derrubaria o poder da burguesia é perceptível apenas ao final do texto, quando se afirma: “É sobretudo para a Alemanha que se volta a atenção dos comunistas, porque a Alemanha se encontra às vésperas de uma revolução burguesa e porque realizará essa revolução nas condições mais avançadas da civilização europeia e com o proletariado infinitamente mais desenvolvido que o da Inglaterra no século XVII e o da França no século XVIII; e por que a revolução burguesa alemã só poderá ser, portanto, o prelúdio imediato de uma revolução proletária”.[1]
Como se percebe, trata-se de uma análise da conjuntura alemã, que de fato de se confirmou, diante do processo revolucionário continental de 1848. Naquele contexto, os trabalhadores de diferentes países se mobilizaram na luta por mudanças sociais. O processo levou, por um lado, a um avanço na organização dos trabalhadores e, por outro, à consolidação do poder da burguesia.
Karl Marx escreveu posteriormente, fazendo o balanço da situação da França: “A Revolução de Fevereiro foi ganha pela luta dos trabalhadores com o apoio passivo da burguesia. Os proletários se consideraram com razão os vitoriosos do mês de fevereiro e fizeram reivindicações altivas de quem obteve a vitória. Eles precisavam ser vencidos nas ruas; era preciso mostra-lhes que seriam derrotados assim que deixassem de lutar com a burguesia e passassem a lutar contra a burguesia”.[2]
O contexto de preparação do processo revolucionário se confunde com a própria obra de Karl Marx e Friedrich Engels. Um de seus principais méritos foi explicar os fundamentos econômicos e políticos e as contradições que permeavam a sociedade capitalista. Nos primeiros capítulos do Manifesto Comunista, além de levar ao público pela primeira vez de forma sistemática conceitos centrais do materialismo histórico, Karl Marx e Friedrich Engels demonstraram a existência de um antagonismo de classes na sociedade capitalista. Traçando comparações entre as formas de exploração do trabalho em momentos históricos anteriores, como no sistema escravista da Antiguidade ou o feudalismo medieval, Marx e Engels apontam as lutas de classes como o fundamento da “história de todas as sociedades até hoje existentes”.[3]
Em sua análise específica do capitalismo, os autores mostram o antagonismo entre a exploração capitalista e a luta do proletariado, que tem como pano de fundo as contradições das relações de exploração capitalistas estruturais ao próprio sistema. Segundo os criadores do materialismo histórico, “[…] as forças produtivas de que dispõe não mais favorecem o desenvolvimento das relações burguesas de propriedade; pelo contrário, tornaram-se poderosas demais para estas condições, passam a ser tolhidas por elas; e assim que se libertam desses entraves, lançam na desordem a sociedade inteira e ameaçam a existência da propriedade burguesa”.[4]
Karl Marx e Friedrich Engels apontam que essas contradições não são eternas, ou seja, haveria um momento em que o proletariado poderia derrubar o poder da burguesia e construiria um Estado proletário. Como os autores mostram no Manifesto Comunista, a dinâmica própria do capitalismo permitiria encontrar formas de superar suas crises cíclicas, optando-se, “de um lado, pela destruição violenta de grande quantidade de forças produtivas; de outro, pela conquista de novos mercados e pela exploração mais intensa dos antigos”.[5]
Karl Marx e Friedrich Engels também apontam que a derrubada do capitalismo não seria um produto natural do antagonismo de classes entre burguesia e proletariado, mas resultado da ação política organizada dos explorados. Essa ação política organizada teria um partido à sua frente. Os autores do Manifesto Comunista afirmavam que “os comunistas constituem a fração mais resoluta dos partidos operários de cada país, a fração que impulsiona as demais”.[6]
O caráter estratégico demonstrado pela necessidade da construção do partido evidencia a principal tarefa do Manifesto comunista, ou seja, apresentar uma síntese das elaborações teóricas e políticas da Liga dos Comunistas, da qual Marx e Engels eram membros, enquanto possível direção política que poderia levar o proletariado à vitória na revolução.
O processo de elaboração do manifesta está relacionado ao contexto político, conforme esclarece Engels: “No Congresso da Liga, realizado em Londres em novembro de 1847, Marx e Engels foram incumbidos de escrever para fins de publicação um completo programa, teórico e prático do partido. Redigido em alemão, em janeiro de 1848, o manuscrito foi enviado ao editor de Londres poucas semanas antes da revolução francesa de 24 de fevereiro. Uma tradução francesa apareceu em Paris pouco antes da insurreição de junho de 1848”.[7]
O Manifesto comunista foi escrito para uma conjuntura política específica, quando a Europa se via agitada pelo fantasma da revolução: “[…] um cataclismo econômico europeu coincidiu com a visível corrosão dos antigos regimes. Um camponês que se insurgia na Galícia, a eleição de um papa ‘liberal’ no mesmo ano, uma guerra civil entre radicais e católicos na Suíça no fim de 1847, vencida pelos radicais, uma das perenes insurreições autônomas da Sicília, em Palermo, no início de 1848, foram não só a indicação prévia do que estava para acontecer, mas se constituíam em verdadeiras comoções prévias do grande tufão”.[8]
Não eram apenas os socialistas – que se dividiam nas mais variadas correntes, como é mostrado em um do capítulo específico do Manifesto comunista – ou os comunistas que falavam em “revolução”. Todas as classes sociais, cada qual com seus próprios partidos, tinham uma compreensão do processo em marcha e vislumbravam uma época de transformações políticas. Pode-se dizer que “raras vezes a revolução foi prevista com tamanha certeza, embora não fosse prevista em relação aos países certos ou às datas certas. Todo um continente esperava, já agora pronto a espalhar a notícia da revolução através do telégrafo elétrico”. [9]
O Manifesto Comunista tornou públicas as posições de um desses partidos, o dos comunistas, que, em seu programa, procurava expressar o projeto político do proletariado e em suas ações organizar os trabalhadores na luta contra a exploração capitalista. Pouco tempo depois da publicação do Manifesto comunista, embora não diretamente sob sua influência, foram travadas as grandes jornadas de lutas na Europa: “[…] a revolução que eclodiu nos primeiros meses de 1848 não foi uma revolução social simplesmente no sentido de que envolveu e mobilizou todas as classes. Foi, no sentido literal, o insurgimento dos trabalhadores pobres nas cidades – especialmente nas capitais – da Europa ocidental e central. Foi unicamente a sua força que fez cair os antigos regimes desde Palermo até as fronteiras da Rússia”.[10]
Em sua forma aparente, o processo revolucionário colocava-se contra os resquícios do Antigo Regime, ou seja, na defesa do aprofundamento das revoluções sob direção da burguesia ocorridas nos séculos XVII e XVIII. Contudo, em 1848, esses resquícios acabaram tendo como aliada a própria burguesia, que buscava com esses acordos estabilizar os regimes políticos e, dessa forma, controlar o poder do Estado.
Portanto, ainda que pudesse se colocar como parte das mobilizações, a burguesia era também um inimigo a ser derrotado por uma revolução encabeçada pelos trabalhadores. Karl Marx e Friedrich Engels escreveram sobre o tema em outro texto, redigido em 1850, analisando a dinâmica dos embates entre as classes sociais, tendo como objeto a situação da Alemanha: “De fato foram os burgueses que, após o movimento de março de 1848, imediatamente se apossaram do governo e usaram esse poder para fazer os trabalhadores, seus aliados na luta, retrocederem à sua anterior condição de oprimidos. Mesmo que a burguesia não tenha conseguido fazer isso sem se coligar com o partido feudal derrotado em março, chegando, no final, a ceder novamente o governo a esse partido absolutista feudal, ela garantiu para si as condições que com o tempo, em virtude das dificuldades financeiras do governo, acabariam por colocar o poder em suas mãos e assegurariam todos os seus interesses, caso fosse possível ao movimento revolucionário ter uma assim chamada evolução pacífica já nesse momento”.[11]
O cenário da França também foi analisado posteriormente pelos marxistas, como se pode ver nesse texto de Engels: “A derrota da insurreição parisiense de junho de 1848 – a primeira grande batalha entre o proletariado e a burguesia – colocou novamente em um segundo plano as aspirações sociais e políticas do operariado europeu. A partir de então, a luta pela supremacia voltou a ser, com o fora antes da revolução de fevereiro, simplesmente uma luta entre diferentes camadas da classe proprietária; a classe operária foi levada a limitar-se a uma luta pela conquista de espaço político, assumindo posições da ala extrema dos radicais da classe média”.[12]
Na continuidade desse processo, a própria burguesia poderia vir a ser derrubada, diante da organização dos trabalhadores. Na medida em que a burguesia abandonasse seu próprio programa, os trabalhadores poderiam levar adiante essa luta e o processo revolucionário, superando não apenas os resquícios feudais, mas inclusive os limites do programa proposta pelas classes dominantes.
Essa é a fórmula simplificada da chamada “revolução permanente”, assim esboçada por Karl Marx e Friedrich Engels: “As reivindicações da democracia pequeno-burguesa aqui resumidas não são defendidas ao mesmo tempo por todas as frações e pouquíssimas são as pessoas que as têm presentes em seu conjunto como um alvo bem determinado a atingir. Quanto mais os indivíduos ou as frações que compõem a democracia avançarem, tanto mais assumirão como suas essas reivindicações e os poucos que reconhecem no que foi compilado acima o seu próprio programa julgariam que desse modo teriam proposto o máximo que se pode esperar da revolução. Porém essas reivindicações de modo algum podem bastar ao partido do proletariado. Ao passo que os pequeno-burgueses democráticos querem levar a revolução a cabo da maneira mais célere possível e mediante a realização, quando muito, das demandas acima mencionadas, é de nosso interesse e é nossa tarefa tornar a revolução permanente até que todas as classes proprietárias em maior ou menor grau tenham disso alijadas do poder, o poder estatal tenha sido conquistado pelo proletariado e a associação dos proletários tenha avançado, não só em um país, mas em todos os países dominantes no mundo inteiro, a tal ponto que a concorrência entre os proletários tenha cessado nesses países e que ao menos as forças produtivas decisivas estejam concentradas nas mãos do proletariado”.[13]
Enquanto os reformistas se limitassem a comemorar as eventuais vitórias parciais, os revolucionários não poderiam se contentar com essas medidas passíveis de aplicação dentro na ordem burguesa. Os revolucionários deveriam “exacerbar as propostas dos democratas, que de qualquer modo não agirão de modo revolucionário, mas meramente reformista, e transformá-las em ataques diretos à propriedade privada”.[14]
Embora a exposição acerca do processo da revolução iminente feita no Manifesto comunista não tenha se mostrado exata, essa parte conjuntural do documento não supera em importância o conjunto das discussões apresentadas e, principalmente, a primeira exposição da dinâmica da exploração capitalista. Os autores perceberam antecipadamente a complexidade social e política dos acontecimentos que se desenrolariam naquela conjuntura, ao analisar as contradições do sistema capitalista.
Mesmo que Karl Marx e Friedrich Engels não tenham conseguido prever a dinâmica exata do processo revolucionário em curso na conjuntura de 1848, vinham desenvolvendo a única forma possível de não apenas explicar aquele processo e sua dinâmica econômica e política, como também de perceber como essa conjuntura de encaixa no próprio desenvolvimento histórico do capitalismo. Na análise conjuntural, Marx e Engels parecem ter subestimado a capacidade que tinha o capitalismo em superar crises e superestimado as possibilidades do proletariado europeu, incorporando essas lições nas análises que desenvolveram posteriormente sobre tática e estratégica.
O proletariado não subiu ao poder depois dos processos revolucionários da conjuntura de 1848. Um dos produtos dessa revolução que atravessou o continente europeu foi a consolidação de governos “republicanos”, paulatinamente pondo fim aos resquícios do Antigo Regime. Engels aponta que “[…] os acontecimentos e as vicissitudes da luta contra o capital, as derrotas maiores que as vitórias, poderiam apenas mostrar aos combatentes a insuficiência de todas as panaceias em que acreditavam, fazendo-os compreender melhores as verdadeiras condições de emancipação da classe operária”.[15]
Karl Marx e Friedrich Engels fizeram importantes balanços daquelas revoluções, intervindo por meio da Liga dos Comunistas e de outas organizações operárias. Eles deixaram como legado não apenas um rigoroso método de análise para entender as contradições e dinâmicas do capitalismo, mas também referências fundamentais para as ações táticas e estratégicas das gerações posteriores de revolucionários.
*Michel Goulart da Silva é doutor em história pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e técnico-administrativo no Instituto Federal Catarinense (IFC).
Notas
[1] MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto comunista. São Paulo: Boitempo, 2005, p. 69.
[2] MARX, Karl. As lutas de classes na França de 1848 a 1850. São Paulo: Boitempo, 2012, p. 61.
[3] MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto comunista. São Paulo: Boitempo, 2005, p. 40.
[4] MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto comunista. São Paulo: Boitempo, 2005, p. 45.
[5] MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto comunista. São Paulo: Boitempo, 2005, p. 45.
[6] MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto comunista. São Paulo: Boitempo, 2005, p. 51.
[7] ENGELS, Friedrich. Prefácio à edição inglesa de 1888. In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto comunista. São Paulo: Boitempo, 2005, p. 74-5.
[8] HOBSBAWM, Eric. A era das revoluções: Europa 1789-1848. 32ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014, p. 471
[9] HOBSBAWM, Eric. A era das revoluções: Europa 1789-1848. 32ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014, p. 471
[10] HOBSBAWM, Eric. A era das revoluções: Europa 1789-1848. 32ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014, p. 467.
[11] MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. Mensagem do comitê central à Liga dos Comunistas [1850]. In: Luta de classes na Alemanha. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 59.
[12] ENGELS, Friedrich. Prefácio à edição inglesa de 1888. In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto comunista. São Paulo: Boitempo, 2005, p. 75.
[13] MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. Mensagem do comitê central à Liga dos Comunistas [1850]. In: Luta de classes na Alemanha. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 63-4.
[14] MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. Mensagem do comitê central à Liga dos Comunistas [1850]. In: Luta de classes na Alemanha. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 74.
[15] ENGELS, Friedrich. Prefácio à edição inglesa de 1888. In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto comunista. São Paulo: Boitempo, 2005, p. 76.
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