Massacre em Gaza

Imagem: Lukas Hartmann
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Por FELIPE A. P. L. COSTA*

Com mais de quatro mil crianças mortas em Gaza, a emissora do “Criança Esperança” defende ataques a ambulâncias

O sionismo é uma ideologia inerentemente racista e beligerante. E cínica, profundamente cínica.[1] Razão pela qual há quem diga, após 75 anos de pilhagens e beligerância,[2] que o sionismo tem vaga assegurada na lista de atrocidades promovidas pelos Estados modernos ao longo dos últimos cinco séculos.

Veja o que se passa na Faixa de Gaza. Considere seriamente o que o Estado de Israel está a fazer neste momento contra a população palestina. Nas últimas quatro semanas, os achaques, as torturas e os assassinatos corriqueiros ganharam escala industrial.[3] Os crimes, claro, são autorizados pelo governo. Os soldados são obedientes e a barbárie está a varrer a Faixa de Gaza. Os civis não têm para onde fugir; não têm onde se esconder, a não ser, talvez, no subsolo, ao lado de Dostoiévski.[4]

A julgar apenas pelo discurso do governo israelense, o que está em curso seria tão somente o direito de defesa – leia-se: uma resposta legítima aos ataques promovidos pelo Hamas, em 7 de outubro.[5] Na prática, porém, a história não é bem essa. A rigor, o Hamas não parece ser o alvo. Para ficar apenas no plano material, basta ver que os ataques estão a destruir toda a infraestrutura de Gaza, incluindo os hospitais.[6] Neste último caso, aliás, a justificativa dada é uma lorota velha e das mais cínicas: os hospitais bombardeados estavam a ser usados como abrigo por grupos terroristas.

Um parêntesis. Mesmo se houvesse interesse, a grande imprensa brasileira não tem cacife suficiente para cobrir de perto e de modo independente o que se passa em qualquer conflito militar mundo afora. Razão pela qual os apresentadores dos noticiários se veem com frequência em uma saia justa: ler textos fantasiosos, criados a partir de informes vindos de longe, notadamente o material de propaganda que é rotineiramente distribuído pelas forças militares envolvidas em combates. Assim, no que diz respeito ao noticiário de guerra, em vez de notícias sérias e fidedignas, a imprensa brasileira costuma reproduzir tão somente fantasias e propaganda.

No caso da ‘Guerra da Ucrânia’, por exemplo, o tipo de informe reproduzido nos programas noticiosos (Jornal Nacional e congêneres) visava, sobretudo, lustrar o país invadido e embaçar o país invasor. Já no caso da ‘Guerra de Gaza’, o tom se inverteu. O propósito agora é lustrar o país invasor e detratar o lugar invadido.

Foi um giro de 180 graus, quase que do dia para a noite. Mas nada que leve à perda de audiência. Afinal, os profissionais que gerenciam os departamentos de jornalismo estão bastante familiarizados com as técnicas mais modernas de propaganda e marketing. Manipular e controlar são especialidades desse pessoal. Resultado: em dois ou três dias, boa parte da audiência é convencida de que os habitantes de Gaza não são humanos. As convenções de Genebra, portanto, não se aplicam a essa gentalha.

 “Vamos acabar logo com esses animais” – frases desse tipo, ditas à luz do dia por integrantes ou ex-integrantes do governo israelense, ecoam na nossa imprensa. Em vez de crítica e repulsa, no entanto, toda e qualquer declaração oriunda de autoridades israelenses, por mais absurda que seja (e quase todas são absurdas), tem sido acolhida, inclusive por parte de profissionais da imprensa.

Dias atrás, por exemplo, um veterano jornalista da Rede Globo cometeu um crime no ar (ver aqui). E não parece que tenha sido repreendido ou sequer advertido pelos colegas. (Alguém talvez o repreendesse se ele tivesse dito alguma trivialidade sobre gênero ou cor de pele.) Reincidente em falas criminosas, o sujeito dessa vez defendeu que Israel poderia bombardear até mesmo as ambulâncias palestinas. Para tanto, evocou o direito (sagrado?) de defesa do Estado sionista. Isso sim é esgoto a céu aberto.

Antes de encerrar, gostaria de ilustrar o grau de cinismo da nossa mídia com dois casos bem curiosos.

Primeiro. Em 2017, por uma fala bem menos grave (dita em off), o jornalista William Waack (CNN), então no comando do Jornal da Globo, foi mandado embora da emissora (ver aqui).

Segundo. A empresa de comunicação que ora defende a tese racista e criminosa de que Israel tem todo o direito de bombardear palestinos, mesmo quando os palestinos estão no interior de ambulâncias, é a mesma que promove anualmente a campanha Criança Esperança.[7]

Tem alguma coisa errada aí: a campanha, a emissora ou as falas que defendem a morte, inclusive de crianças.

*Felipe A. P. L. Costa é biólogo e escritor. Autor, entre outros livros de O que é darwinismo.

Notas


[1] Sionismo, semitismo e antissemitismo são coisas muito diferentes – para uma caracterização, ver o artigo anterior.

[2] Lembrando que o estado de Israel foi estabelecido em 1948.

[3] O xis da questão aqui é: Quantos palestinos já foram mortos pelo exército israelense desde o dia 7 de outubro? Vejamos algumas estatísticas. Em 23/10, 16 dias após o início dos ataques de Israel, o número de cidadãos palestinos mortos já era superior aos cinco mil (5.087, para ser mais preciso). 62% dessas vítimas eram mulheres ou crianças pequenas (ver aqui). Ontem, 5/11, o número de palestinos mortos pelo exército israelense já estava em 9.770, 4.008 dos quais (41% do total) eram crianças pequenas (meninos e meninas) (ver aqui). As notícias de hoje, 6/11, dão conta de que o número de palestinos mortos pelo exército israelense é superior a 9 mil (aqui) e talvez já tenha ultrapassado a barreira dos 10 mil (aqui).

[4] Estou a pensar no escritor russo Fiódor Dostoiévski (1821-1881), autor de Memórias do subsolo (1864).

[5] Os ataques de militantes do Hamas em território israelense teriam resultado em ~1.350 israelenses mortos (ver aqui), incluindo militares, colonos armados e civis desarmados.

[6] As convenções (I-IV) de Genebra (1949) são tratados internacionais que visam limitar as barbáries da guerra. Os termos desses acordos protegem, entre outras coisas, quem não participa (civis e equipes de saúde) ou quem deixou de participar (feridos e prisioneiros) dos embates (ver aqui). Ataques a instalações hospitalares, por exemplo, são classificados como crimes de guerra.

[7] A lista de crimes tolerados ou promovidos pela empresa parece não ter fim: tortura, assassinatos, jogo do bicho, tráfico de cocaína, prostituição, plágio, assédio (moral, sexual), sonegação, evasão fiscal, ocupação de APP, desflorestamento, golpe de estado etc. Sobre a campanha Criança Esperança. Dizem as boas línguas que a Unicef interrompeu a parceira com a Rede Globo (1986-2003) por conta do mau cheiro. Desde 2004, a parceira é com a Unesco (ver aqui).


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