Meu coco

Dalton Paula, Barreira do som, 2013
image_pdf

Por MARCIO SALGADO*

Comentário sobre o álbum recém-lançado de Caetano Veloso

O anjo da poesia não podia ser como os outros, tinha que ser torto, como escreveu Carlos Drummond de Andrade no “Poema de Sete Faces”: “Quando nasci, um anjo torto/ desses que  vivem na sombra/ disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.”

Ele tem inspirado outros anjos literários e agora ressurgiu na composição “Anjos Tronchos”, de Caetano Veloso, que trata da influência da internet e das mídias sociais no mundo contemporâneo, transformando – para o bem ou para o mal – a vida das pessoas. Os versos do compositor dizem: “Uns anjos tronchos do Vale do Silício/ Desses que vivem no escuro em plena luz/ Disseram vai ser virtuoso no vício/ Das telas azuis mais que azuis.”

Em ambos os poemas, não é um anjo qualquer que contempla os seus autores, mas “desses que vivem na sombra”, ou “desses que vivem no escuro…” O de Drummond traz uma capa de subjetividade, já o de Caetano, de realidade virtual.

O primeiro é moderno, mostra uma posição crítica diante do mundo: o termo gauche (do francês, esquerdo) sugere essa escolha do poeta no enfrentamento da vida, e certa ironia que vai acompanhá-lo, discretamente, como uma marca literária. O segundo abordou uma questão atual, da pós-modernidade, onde as redes sociais publicizam os desejos e os dramas humanos.

O compositor anotou o seguinte em uma rede social: “Embora eu não conheça muito a questão da tecnologia e das suas consequências, eu fiz uma canção que parece mexer em questões muito maiores do que seu autor é capaz de dominar”.

Embora o domínio dessas questões seja difícil, Caetano intuiu as mudanças, os prazeres e as agruras desses novos tempos: “Agora a minha história é um denso algoritmo.” Isso provoca mudanças psíquicas, não é de estranhar que o compositor conclua: “Neurônios meus ganharam novo outro ritmo.” Toda essa poética musical, à primeira audição, estranha, vem arranjada em mais estranheza que se distende e captura o ouvinte no decorrer da música.

Na composição “Ciclâmen do Líbano”, uma das mais belas do álbum, outros anjos retornam em versos que remetem, sutilmente, a Vênus, deusa do amor, dos desejos carnais e da fertilidade. “Que as almas se chamem/ E os corpos se amem.” Ao final da canção, os versos musicais: “Que os anjos reclamem/ E os céus proclamem” rimam com “Ciclâmen do Líbano”, verso repetido, que ganha densidade com o arranjo orquestral de Jacques Morelenbaum ao fundo. A música cujo título refere-se à flor vermelha remete ainda aos sons do Oriente Médio.

No fado “Você-Você”, cantado por Caetano com sotaque lusitano – ou não seria um fado! – tem a participação da cantora Carminho, que pertence à nova geração de fadistas portugueses, e já é conhecida do público brasileiro em participações em shows ou discos do próprio compositor baiano, de Chico Buarque e outros artistas.

O primeiro verso do fado de Caetano “Depois que nós nos perdemos” introduz a história que vai ser contada à meia luz, sem o grande apelo emotivo que caracteriza o fado, gênero musical expressivo que fala dos amores perdidos, das saudades que tocam no fundo da alma portuguesa, da vida do povo e outros temas afins. Neste fado, o bandolim de Hamilton de Holanda substitui a guitarra portuguesa.

A faixa “Cobre” começa com a evocação dos cânticos em louvor: “Vibra o bronze de Santana”. Em seguida funde-se com uma toada inspirada na cor da pele da amada no mar ao sol. “Ó mulher de tez nobre, toma tudo e me tem/ Sobre o teu bronze-cobre…” É uma canção romântica que expressa uma sensualidade contida.

Na música de múltiplos sons “Meu Coco”, o compositor fala da miscigenação do país: “Somos mulatos, híbridos e mamelucos/ E muito mais cafuzos…” Trata-se de uma visão de Brasil que ele defende há muito tempo, inclusive na música “Sugar Cane Fields Forever”, de “Araçá Azul” (1973), inspirada em poema de Sousândrade, definiu-se como “Mulato democrático do litoral.”

No texto de próprio punho que acompanha o lançamento do álbum Meu Coco (Sony Music, 2021), Caetano Veloso fala sobre seu processo criativo e, em particular, de algumas canções. “Muitas vezes sinto que já fiz canções demais. Falta de rigor? Mas acontece que desde a infância amo as canções populares inclusive por sua fácil proliferação.” O trabalho traz 12 composições inéditas, e, segundo o músico, cada uma delas “tem vida própria e intensa”.

Os arranjos são dos maestros Jacques Morelenbaum, Thiago Amud e Letieres Leite. A produção musical é do próprio Caetano com o compositor e instrumentista Lucas Nunes. Participam ainda os músicos Moreno Veloso, Marcio Victor, Vinicius Cantuária, dentre outros; além das cantoras Carminho e Dora Morelenbaum.

*Marcio Salgado é jornalista e escritor. Autor, entre outros livros, do romance O filósofo do deserto (Ed. Multifoco).

 

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
O segundo choque global da China
06 Dec 2025 Por RENILDO SOUZA: Quando a fábrica do mundo também se torna seu laboratório mais avançado, uma nova hierarquia global começa a se desenhar, deixando nações inteiras diante de um futuro colonial repaginado
2
Simulacros de universidade
09 Dec 2025 Por ALIPIO DESOUSA FILHO: A falsa dicotomia que assola o ensino superior: de um lado, a transformação em empresa; de outro, a descolonização que vira culto à ignorância seletiva
3
A guerra da Ucrânia em seu epílogo
11 Dec 2025 Por RICARDO CAVALCANTI-SCHIEL: A arrogância ocidental, que acreditou poder derrotar a Rússia, esbarra agora na realidade geopolítica: a OTAN assiste ao colapso cumulativo da frente ucraniana
4
Uma nova revista marxista
11 Dec 2025 Por MICHAE LÖWY: A “Inprecor” chega ao Brasil como herdeira da Quarta Internacional de Trotsky, trazendo uma voz marxista internacionalista em meio a um cenário de revistas acadêmicas
5
Raymond Williams & educação
10 Dec 2025 Por DÉBORA MAZZA: Comentário sobre o livro recém-lançado de Alexandro Henrique Paixão
6
A riqueza como tempo do bem viver
15 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: Da acumulação material de Aristóteles e Marx às capacidades humanas de Sen, a riqueza culmina em um novo paradigma: o tempo livre e qualificado para o bem viver, desafio que redireciona o desenvolvimento e a missão do IBGE no século XXI
7
A crise do combate ao trabalho análogo à escravidão
13 Dec 2025 Por CARLOS BAUER: A criação de uma terceira instância política para reverter autuações consolidadas, como nos casos Apaeb, JBS e Santa Colomba, esvazia a "Lista Suja", intimida auditores e abre um perigoso canal de impunidade, ameaçando décadas de avanços em direitos humanos
8
Norbert Elias comentado por Sergio Miceli
14 Dec 2025 Por SÉRGIO MICELI: Republicamos duas resenhas, em homenagem ao sociólogo falecido na última sexta-feira
9
Asad Haider
08 Dec 2025 Por ALEXANDRE LINARES: A militância de Asad Haider estava no gesto que entrelaça a dor do corpo racializado com a análise implacável das estruturas
10
A armadilha da austeridade permanente
10 Dec 2025 Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Enquanto o Brasil se debate nos limites do arcabouço fiscal, a rivalidade sino-americana abre uma janela histórica para a reindustrialização – que não poderemos atravessar sem reformar as amarras da austeridade
11
Ken Loach: o cinema como espelho da devastação neoliberal
12 Dec 2025 Por RICARDO ANTUNES: Se em "Eu, Daniel Blake" a máquina burocrática mata, em "Você Não Estava Aqui" é o algoritmo que destrói a família: eis o retrato implacável do capitalismo contemporâneo
12
A anomalia brasileira
10 Dec 2025 Por VALERIO ARCARY: Entre o samba e a superexploração, a nação mais injusta do mundo segue buscando uma resposta para o seu abismo social — e a chave pode estar nas lutas históricas de sua imensa classe trabalhadora
13
Impactos sociais da pílula anticoncepcional
08 Dec 2025 Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: A pílula anticoncepcional não foi apenas um medicamento, mas a chave que redefiniu a demografia, a economia e o próprio lugar da mulher na sociedade brasileira
14
Benjamim
13 Dec 2025 Por HOMERO VIZEU ARAÚJO: Comentário sobre o livro de Chico Buarque publicado em 1995
15
Violência de gênero: além do binarismo e das narrativas gastas
14 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Feminicídio e LGBTfobia não se explicam apenas por “machismo” ou “misoginia”: é preciso compreender como a ideia de normalidade e a metafísica médica alimentam a agressão
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES