Nápoles, 1943

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Por MARIAROSARIA FABRIS*

Considerações sobre o filme “Paisà”, dirigido por Roberto Rossellini

“1944 – Os efeitos dos bombardeios na zona de Piazza Mercato”, Arquivo Fotográfico Carbone

Um menino e um homem percorrem vários lugares da cidade de Nápoles, em seu imediato pós-guerra.[1] São um pequeno órfão local e um soldado negro norte-americano, integrante da Military Police. O cenário pelo qual perambulam é de destruição física e moral, onde o que conta é a sobrevivência. Pascà (Pasquale) e Joe pertencem a culturas diferentes, falam línguas diferentes, portanto a possibilidade de comunicação verbal entre os dois é quase nula. Haverá momentos, no entanto, em que o entendimento se dará em outro nível, o dos sentidos, pois ambos são seres marginalizados, não pelas circunstâncias, mas por sua história de vida.

Esse seria um resumo possível, não factual, do segundo episódio de Paisà (Paisá), obra que Roberto Rossellini rodou entre meados de janeiro e fins de junho de 1946, além de algumas filmagens complementares no mês de agosto, conforme Adriano Aprà. O projeto surgiu a partir de um roteiro de Klaus Mann, filho do escritor Thomas Mann, ex-combatente do exército norte-americano e colaborador do jornal militar The stars and stripes. Escrito em setembro de 1945, o roteiro intitulava-se Seven from the U.S., em inglês, ou Sette americani, em italiano, o que não deixa dúvidas sobre quais seriam os protagonistas do filme.[2]

Antes das filmagens, o projeto começou a sofrer uma série de modificações: os episódios foram reduzidos a seis e foi eliminado o prólogo, no qual, graças a rápidos flashes, todos os personagens seriam apresentados ao público. Ademais, cada episódio deveria concluir-se com a morte de um herói de guerra e com a imagem de “uma cruz branca num cemitério militar” como forma de prestar uma “homenagem respeitosa e afetuosa à memória daqueles americanos que perderam a vida pela Libertação da Itália” e de lançar uma “mensagem à sua nação”, segundo Stefania Parigi no texto “In viaggio con Paisà”.

As mudanças tornaram-se mais profundas a partir do momento em que Rossellini resolveu recrutar colaboradores italianos para reescrever o argumento, o roteiro e os diálogos [3], e principalmente durante as filmagens, quando o contato direto com a realidade a ser retratada e a presença física dos intérpretes (atores profissionais ou não) levaram a alterar o andamento dos episódios e a transformar a realização de Paisà num work in progress. A centralidade da ação deslocou-se da focalização dos militares norte-americanos e os personagens italianos deixaram de ser meros coadjuvantes.

Dessa forma, a obrigatoriedade de celebrar os Aliados como libertadores, em virtude do financiamento norte-americano (como registrou Luisa Rivi), relativizava-se e o filme acabou expressando antes, nos dizeres de Fabio Rinaudo, “a dor, a virtude, a altivez, a bondade, os anseios de liberdade, a simplicidade” do povo italiano. Para Stefano Roncoroni, a “dimensão ideológica” de Paisà pode ser alcançada “não por uma simples análise dos conteúdos, mas do estilo. Rossellini acentua seu egoísmo artístico, procura ser ele mesmo, realiza-se nos filmes, procura filmar seus estados d’alma e serve-se das ideologias, do poder, dos dólares, da religião, mas ninguém pode dizer que ele lhe pertence: seu resgate se dá no nível da obra”.

Se era a partir da realidade que se estruturava a narração do filme, no entanto, essa realidade, filtrada pela subjetividade do diretor, oferecia-se aos olhos dos espectadores mais como um convite a refletir sobre as consequências da passagem da história na vida dos homens do que como um mero retrato objetivo. Era antes o registro antropológico do que o histórico o que interessava a Rossellini: “o esforço que eu fazia […] era o de tomar consciência dos acontecimentos nos quais havia ficado imerso, pelos quais havia sido arrastado. Era a exploração não apenas de fatos históricos, mas, precisamente, de atitudes, de comportamentos que aquele certo clima e aquela certa situação histórica determinavam. […] partir do fenômeno e explorá-lo, fazendo brotar dele, livremente, todas as consequências, mesmo políticas; nunca parti das consequências e nunca quis demonstrar algo, quis apenas observar, olhar, objetivamente, moralmente, para a realidade e tentar explorá-la de modo que dela brotassem muitos dados dos quais, em seguida, se podiam tirar certas consequências”.

Mesmo sem visar a uma sistematização histórica, ao longo de seus episódios, Paisà acompanhava cronologicamente o avanço do Exército Aliado pela península itálica – da praia de Gela à planície do Pó, passando por Nápoles, Roma, Florença e um convento nos Apeninos da Romanha –, desde o desembarque das tropas anglo-americanas na Sicília (10 de julho de 1943) até os dias que antecederam o fim da guerra na Itália (25 de abril de 1945). A voz over de um locutor, como se se tratasse de um cinejornal, ia costurando os seis fragmentos. Embora seus comentários fossem em italiano, essa locução poderia ser identificada com a voz do outro, uma vez que ela contava uma versão oficial – norte-americana – da história. No início do segundo episódio, essa voz explicava:

“A guerra passou rapidamente pelas regiões do Sul da Itália. Em 8 de setembro, os canhões da frota aliada estavam apontados para Nápoles. Quebrada a resistência alemã em Salerno, os anglo-americanos desembarcaram na costa amalfitana e, algumas semanas depois, Nápoles era libertada. O porto dessa cidade tornava-se o mais importante centro logístico da guerra na Itália”.

A informação sobre a libertação de Nápoles corresponde mais aos boletins oficiais das Forças Aliadas[4] do que à realidade vivida pela cidade, que se livrou sozinha do jugo dos nazifascistas numa insurreição, ferrenha e sem trégua, que envolveu todos os seus habitantes, entre os dias 27 e 30 de setembro de 1943, e que ficou conhecida como “le quattro giornate di Napoli” (os quatro dias de Nápoles).[5] Como toda luta popular, esta também teve seus heróis: foram os scugnizzi, que se sacrificaram para libertar a cidade.[6]

Um mito alimentado por correspondentes de guerra,[7] como o fotógrafo Robert Capa, o qual, impressionado com o velório de garotos mortos em combate, ao encontrar dois moleques maltrapilhos na rua, encostados em dois velhos fuzis e fumando um cigarro, pediu-lhes para fazer uma pose, retratando-os como combatentes. Na manhã de 1º de outubro, portanto, quando a Quinta Armada havia entrado em Nápoles, disposta a enfrentar uma árdua batalha contra os nazistas pela conquista da cidade, havia encontrado a acolhê-la uma população festiva, apesar da fome, da sujeira e da destruição reinantes. Capa, em suas memórias de correspondente de guerra, corroborou essa versão: “o ataque final a Nápoles estava marcado para a manhã seguinte. […] Não encontramos resistência no caminho e paramos apenas para perguntar se a estrada adiante era segura, para tomar um gole de vinho ou talvez beijar uma garota. Em Pompeia, um dos soldados começou a delirar com as pinturas eróticas nas paredes das ruínas antigas. […] Demos uma gorjeta aos guias e continuamos a caminho de Nápoles. As novas ruínas de Nápoles tinham pinturas bem diferentes das anteriores. […] Fazer fotografias de vitória é como tirar fotos de um casamento na igreja dez minutos depois que os recém-casados foram embora. A cerimônia em Nápoles tinha sido muito breve. Um pouco de confete ainda brilhava em meio ao chão sujo, mas os festeiros de barriga vazia tinham se dispersado depressa […]. Com minhas câmeras penduradas no pescoço, caminhei pelas ruas desertas […]”.

Em Paisà, à versão oficial, contada pelo outro, contrapõe-se a veracidade das imagens, não necessariamente as de arquivo, que abriam cada parte do filme e que ainda poderiam guardar resquícios dessa narração alheia, mas as da própria reconstituição dos acontecimentos, como no caso do episódio em tela. Fatos acontecidos em 1943 foram recriados em 1946, quando o cenário daqueles eventos ainda não se havia modificado muito, pois as consequências dos bombardeios que a cidade sofreu,[8] além da destruição sistemática levada a cabo pelos alemães antes de baterem em retirada,[9] não poderiam ser superadas rapidamente. Uma paisagem que, em parte, permaneceu intocada na década seguinte, quando a percorri em minha infância, pois vários trechos da cidade ainda estavam em ruínas. São esses fragmentos da realidade não elaborada captados pela câmera que, para mim, dão a Paisà seu verdadeiro caráter de testemunho, ou antes, que me devolvem enquanto espectadora a “imagem real” de uma época, como diria Marc Ferro.

Vistas à distância, essas lembranças adquirem quase um andamento cinematográfico. Defronto-me com minha visão do alto de Porta Capuana, com a praça e seus arredores, pela qual tantas vezes passei com minha mãe, a mesma povoada no início do episódio por pessoas tentando sobreviver de pequenos expedientes, como o de negociar soldados negros bêbados para roubar seus pertences, numa clara inversão de papéis entre dominador e dominado. Dentre essas pessoas, destacam-se Pascà e outros meninos, típicos scugnizzi. Como descreverá, no romance La pelle (A pele, 1949), Curzio Malaparte: “O sonho de todos os napolitanos pobres, especialmente dos scugnizzi, dos meninos, era poder comprar um black, mesmo por poucas horas. […] Quando um scugnizzo conseguia agarrar um negro pela manga do casaco e arrastá-lo atrás de si […], de todas as janelas, de todas as soleiras, de todas as esquinas, cem bocas, cem olhos, cem mãos gritavam-lhe: ‘Vende-me o teu black! Dou-te vinte dólares! Trinta dólares! Cinquenta dólares!’. Era o que se chamava the flying market, ‘o mercado volante’. Cinquenta dólares era o preço mais elevado que se pagava para comprar um negro por um dia, quer dizer, por poucas horas: o tempo necessário para o embriagar, despojá-lo de tudo o que trazia consigo, da boina às botas, e depois, caída a noite, abandoná-lo nu no lajedo duma ruela. O negro não suspeitava de nada. Não se apercebia de que era comprado e revendido em cada quarto de hora, e caminhava inocente e feliz, todo orgulhoso dos seus sapatos dourados e luzidios, da sua farda bem talhada, das suas luvas amarelas, dos seus anéis, dos seus dentes de ouro, dos seus grandes olhos brancos […]. O negro não percebia que o menino que o segurava pela mão, que lhe acariciava o pulso, falando-lhe docemente e fitando-o com olhos mansos, mudava de quando em quando. […] O preço de um negro no ‘mercado volante’ era calculado pela sua largueza e facilidade em fazer despesas, pela voracidade no beber e no comer, pelo modo de sorrir, de acender um cigarro, de olhar para uma mulher. […] Enquanto vagabundeava de bar em bar, de hospedaria em hospedaria, de bordel em bordel, enquanto sorria, bebia, comia, enquanto acariciava os braços de uma moça [10], o negro não suspeitava de que se havia tornado uma mercadoria para transação, não suspeitava sequer de que era comprado e vendido como um escravo.

Certamente que não era digno, para os soldados negros do Exército americano, so kind, so black, so respectable, terem vencido a guerra, terem desembarcado em Nápoles como vencedores e encontraram-se na situação de ser vendidos e comprados como pobres escravos”.

Como num sequestro-relâmpago, Pascà que conseguiu ficar com Joe, espalhando a falsa notícia da chegada da poliss (corruptela de police, em napolitano), tenta auferir o maior lucro possível num brevíssimo período de tempo, arrastando sua presa pelas ruas de Nápoles. Seguindo com eles, vislumbro, em plano geral, Piazza Cavour em sua antiga conformação, enquanto o menino e o soldado cruzam os trilhos do bonde para entrarem num teatro de marionetes.

Lá, ao assistir ao combate entre um paladino e um sarraceno, Joe, ao contrário dos demais espectadores, identificando-se com o mouro, invade o palco, desencadeando uma briga em que o elemento estranho é atacado pelos outros, em mais uma demonstração do conturbado convívio entre o povo italiano e seus libertadores – agora aliados, mas inimigos outrora. Um dos problemas era constituído pelo fato de os anglo-americanos verem em cada italiano um seguidor de Mussolini – “Tu italiano, tu fascista”, repetiam constantemente, como anotou Gian Franco Venè e como relatava meu pai. Enrique Seknadje-Askenazi sublinhou que: “Essa relação não se reduz à de duas entidades aliadas que lutam por um mesmo objetivo, se entendem e se respeitam de repente, mas comporta uma parcela de desconfiança, inimizade, violência e mal-entendidos, de frustrações e decepções, e baseia-se em interesses divergentes”.

Acompanhando as andanças dos dois protagonistas, meu olhar, em zum, torna a aproximar-se dos destroços de Piazza Mercato, ainda presentes na minha infância e que revi numa foto de 1944 do Arquivo Fotográfico Carbone, destroços tão semelhantes às ruínas sobre as quais os dois personagens descansam, num momento de intensa comunhão e de constatação da exclusão social de ambos. Joe, “perseguindo seus fantasmas interiores” (nas palavras de Leonardo De Franceschi), dá início a um longo solilóquio, interrompido aqui e acolá pelas exclamações de Pascà, que tenta participar e parece compreender a dor e a alegria que se alternam naquele relato. Ainda sob o efeito da embriaguez, o soldado, depois de entoar o início do gospel “Nobody knows the troubles I’ve seen”, descreve uma tempestade em alto mar e um avião que voando, num céu de brigadeiro, o leva até Nova York, onde é acolhido festivamente por seus feitos, sem dar-se conta, em seu devaneio, de que “teria sido inconcebível para o herói de tal aventura ser negro”, como salientou Siobhan S. Craig.

A euforia começa a ceder lugar ao cansaço, quando o apito de um trem torna a animá-lo e o leva a imaginar seu regresso ao lar. No início de sua fala, Joe, entusiasmado, imita o ritmo do trem que o levará de volta, mas logo constata que não quer regressar. Desolado, adormece, para desespero de Pascà, que assim se vê obrigado a roubar-lhe os sapatos. Apesar da aparente falta de comunicação, os dois não deixaram de entender-se, pois, no fundo, pertencem a um mesmo universo de marginalizados: se para o pequeno napolitano a chave de uma casa que não existe mais se torna inútil, para o negro norte-americano o fim da guerra significará voltar à sua condição de morador de “um velho casebre com pedaços de lata na porta”.

Esse momento de equalização entre as duas vidas é logo substituído por um ato de afirmação do soldado. Diante dessas novas imagens, vejo meus olhos seguirem o travelling que me proporcionava o bonde ao correr pelos trilhos de Via Marina, ao longo do porto, a mesma rua em que Joe surpreende Pascà roubando caixas de mercadoria dos caminhões do Exército Aliado. O norte-americano dá uma lição de moral e esboça uma luta com o menino, mas se arrepende de seu comportamento até descobrir que ele é o pivete que lhe havia roubado os sapatos três dias antes. Agora, sóbrio e sentindo-se superior, Joe cumpre seu papel de defensor da ordem, alheio ao que acontece ao seu redor. Embora o episódio não mostre (e nem poderia) todas as circunstâncias, os anglo-americanos, ao ocuparem a cidade, junto com cigarros, chicletes, chocolate, sopa de ervilha [11] e meias de náilon, trouxeram a corrupção [12] e a prostituição.

Como tantas vezes me relataram meus pais e como reencontrei em La pelle, Nápoles transformou-se num bordel a céu aberto, onde contrabando e mercado negro reinavam, enquanto os valores morais desmoronavam [13]. Em suma, vivia uma “breve degenerada vitalidade”, como observou o escritor Raffaele La Capria: “Nápoles era uma cidade animadíssima, explosiva, percorrida por uma carga de vitalidade tão febril que quase parecia querer recuperar em poucos meses todos os anos de torpor e de ruínas, que tinham acabado de passar. Era uma vitalidade maravilhosa, era como se os napolitanos vivessem seguindo o ritmo frenético dos boogie-woogies, que as segnorine[14] dos bairros populares sabiam dançar com uma variedade de evoluções e com uma energia superior à de qualquer soldado americano”.

A essa fictícia Nápoles festiva, solar, contrapunha-se uma Nápoles sombria, a que ainda não se havia recuperado dos desastres da guerra, como a das grutas de Mergellina, para onde Pascà leva Joe quando este exige a devolução de seus sapatos. Não guardo uma lembrança visual dessas grutas, porque nunca estive lá, mas faz parte da história da cidade o relato sobre pessoas que, durante o conflito bélico (e mesmo depois), por medo dos bombardeios ou por terem perdido suas casas, fizeram daquele e de outros lugares subterrâneos sua moradia. As condições de vida não eram muito diferentes das enfrentadas, mesmo em tempos de paz, pelas famílias pobres de Nápoles, acostumadas a se amontoarem em locais ao rés-do-chão dos edifícios (chamados bassi), constituídos de um único cômodo que se abria em geral para um pátio interno ou um beco, pouco ventilados e frequentemente úmidos. Uma miséria atávica que surpreende Joe, ao constatar que “os napolitanos estão em pior situação do que os negros americanos. Ele foge apavorado de uma ignomínia que o garoto vem enfrentando e aceitando há tempos. Desse modo, a história sobre um americano se transformou numa história sobre a Itália”, como concluiu Tag Gallagher.

Embora esta tenha sido uma leitura recorrente do desfecho do episódio napolitano, a meu ver, por causa do espelhamento que se constrói entre os dois protagonistas ao longo de sua jornada, Joe, além de entender a estupidez de sua arrogância e exigência, não foge apenas da realidade de Pascà, mas também do que o aguarda ao regressar para casa. A miséria com a qual se defronta nas grutas de Nápoles remete-o a outra miséria que permanecia imutável também em seu país, a uma condição que parece intrínseca a uma parcela da humanidade.

Com sua fuga precipitada, tenta romper o espelhamento e deixa abandonado mais uma vez o pivete, que, em seu convívio com ele, de alguma forma havia preenchido seu vazio afetivo. Nesse fragmento final, mais do que as palavras, o que conta é a orquestração de gestos e olhares. Como ressaltou Leonardo De Franceschi, “Rossellini consegue fazer os corpos falarem, dando expressão […] a uma busca de contato que não alcança êxito (a de Pascà) e a uma busca de verdade que produz um saber insustentável (a de Joe)”.

Depois da apresentação do filme no primeiro Festival de Veneza do pós-guerra, num artigo reproduzido por Stefania Parigi em “Un’idea di Lino Micciché”, Gino Visentini, correspondente de Il corriere della sera (19 set. 1946), escreveu: “Paisà é um álbum de recordações, no qual todos nós estamos; dentro de alguns anos, poderá parecer um dos documentos mais inteligentes e precisos em relação àqueles tempos cheios de ímpeto e esperanças, mas infelizmente já longínquos”.[15] De fato, para mim, “folhear” o segundo episódio de Paisà é como folhear um álbum de família, ordenar cronologicamente histórias simples e esparsas que me foram contadas quase como fábulas, ao sabor da memória. Isso não só porque Rossellini soube recriar, pela força bruta de suas imagens, aqueles tempos tão cruéis, mas sobretudo porque, junto com esse mergulho na realidade, o diretor, graças à sua sensibilidade, soube devolver, a quem como eu não os presenciou, quais foram os sentimentos (medos, paixões e até mesmo esperanças) que percorreram minha cidade natal naquele longínquo e fatídico ano de 1943. Uma história da qual não participei, mas que, ao evocá-la, não posso deixar de sentir como minha,[16] profundamente minha.

*Mariarosaria Fabris é professora aposentada do Departamento de Letras Modernas da FFLCH-USP. Autora, dentre outros livros, de O neo-realismo cinematográfico italiano: uma leitura (Edusp).

Versão revista de “Nápoles, 1943: rememorações”, publicado em Anais do VII Seminário Nacional do Centro de Memória – UNICAMP, 2012.

 

Referências


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APRÀ, Adriano. “Le due versioni di Paisà”. In: PARIGI, Stefania (org.). Paisà: analisi del film. Veneza: Marsilio, 2005, p. 151-161.

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GALLAGHER, Tag. The adventures of Roberto Rossellini. New York: Da Capo Press, 1998.

MALAPARTE, Curzio. A pele. São Paulo: Abril Cultural, 1972.

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PARIGI, Stefania. “In viaggio con Paisà”. In: PARIGI, op. cit., p. 13-39.

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ROSSELLINI, Roberto. “L’intelligenza del presente”. In: ROSSELLINI, op. cit., p. 11-15.

SEKNADJE-ASKENAZI, Enrique. Roberto Rossellini et la Seconde Guerre Mondiale: un cinéaste entre propagande et réalisme. Paris: L’Harmattan, 2000.

VENÈ, Gian Franco. Vola colomba – vita quotidiana degli italiani negli anni del dopoguerra: 1945-1960. Milão: Mondadori, 1990.

 

Notas


[1] À medida que as Forças Aliadas iam subindo a península itálica, o país começava a reconstruir-se. A reconstrução deu-se entre 1943-44 e 1953, graças a subsídios norte-americanos, principalmente os provenientes do plano Marshall (1947-1952).

[2] O título Paisà provavelmente surgiu durante as filmagens do segundo episódio, no qual Joe, várias vezes, se dirige a Pascà empregando o termo paisan. Paesano (em italiano) ou paisà (nos dialetos do Sul) designa quem nasce ou mora num paese (= “país”, “aldeia”). Paisà é empregado como vocativo entre conterrâneos e foi com ele que as Forças Aliadas se dirigiram à população civil da Itália.

[3] Cf. créditos do filme, onde está registrado que o argumento é de Sergio Amidei (com a colaboração de Klaus Mann, Federico Fellini, Marcello Pagliero, Alfred Hayes e Roberto Rossellini) e o roteiro e os diálogos são de Amidei, Fellini e Rossellini.

[4] Em 1º de outubro, dois diários redigidos em Salerno, segundo as normas do Psychological Warfare Branch, falavam da “libertação” (Giornale di Napoli) e da “queda” (Corriere di Salerno) da cidade, enquanto a manchete do jornal napolitano Roma anunciava: “As vanguardas anglo-americanas entraram em Nápoles em tanques cobertos de flores”, segundo Giacomo Antonellis.

[5] No dia 16 de outubro, numa carta endereçada a minha mãe, que se refugiara na aldeia de origem de seus familiares, meu pai, que continuava em Nápoles, registrou os momentos finais da guerra na cidade: “E então vieram os dias mais terríveis que todos nós, em Nápoles, tivemos que suportar, os do domínio alemão. Muitos soldados, como verdadeiros patriotas, obedecendo às ordens de Badoglio, atacaram imediatamente os alemães para libertar a cidade […]. Os sapadores alemães, obedecendo às ordens de seu infame chefe, destruíam com dinamite o pouco que havia sobrado das fábricas. Toda a cidade estava sob o pesadelo do terror, explosões por todos os lados, tremores de terra, que pareciam um terremoto […]. Entrementes, os alemães haviam começado a caça ao homem […]. Saiu a ordem de serviço de trabalho obrigatório, falso pretexto para deportar todos os jovens para a Alemanha. Dos 30 mil que no primeiro dia tinham que se apresentar à chamada, somente 150 se apresentaram. A raiva alemã não conheceu limites, começou a razia dos homens […]. À tarde, nem as casas são mais respeitadas, os alemães entram, levando embora os homens, as ruas estão bloqueadas […]. À noite, as notícias não são nada boas, prometem-nos que vão nos massacrar […]. Rádio Londres não nos consola. Estamos no dia seguinte, 28 de setembro, agora não há mais nada a fazer, Praça Carlos III é o lugar onde temos que nos reunir. […] escondemo-nos num prédio onde as notícias nos são trazidas por garotos e por mulheres, vemos muitos que vão se apresentar, o tempo passa e nenhum alemão à vista. Um senhor do prédio nos dá as boas novas, os americanos romperam o front, os alemães estão fugindo, procurem se esconder, é questão de dias […]. À tarde, como num passe de mágica, todos os homens estão armados, não é mais a caça ao italiano, é a caça ao alemão e aos fascistas, seus cúmplices. Os jovens e os pivetes de Nápoles lutam bem, e não têm descanso, nenhum alemão ou fascista sai de Nápoles […]. Finalmente, sexta-feira, 1º de outubro, chegaram os Aliados, o pesadelo acabou”. No filme Achtung! Banditi! (Achtung! Bandidos!, 1951), Carlo Lizzani retratou o rastro de destruição que os alemães estavam deixando em sua retirada da Itália, ao focalizar a luta de um grupo de operários, que, sob as ordens de um engenheiro e com a ajuda dos partisans, procurou evitar que os nazistas transferissem para a Alemanha as máquinas da fábrica em que trabalhava.

[6] O scugnizzo era o típico pivete napolitano, vivo na memória da cidade como havia sido retratado no século XIX: esfomeado, sujo, desgrenhado, descalço, maltrapilho, mas alegre, atrevido, espertíssimo, que sobrevivia de bicos e pequenos furtos e, frequentemente, dormia ao relento, por ser órfão, ter sido abandonado ou ter fugido de casa. Quando eu era criança, dizia-se que os scugnizzi tiveram o mesmo papel dos cachorros na Rússia, os quais iam ao encontro dos tanques alemães com bombas molotov amarradas no corpo. Verdade ou mito, em todo caso, os únicos quatro condecorados com medalhas de ouro foram jovens de 18, 17, 13 e 12 anos, que morreram em combate. O menor deles, Gennaro Capuozzo, vulgo Gennarino, tornou-se o símbolo dos scugnizzi.

[7] E pela população local: em 1978, Eugenio Bennato escreveu “Canto allo scugnizzo”, muito aplaudido nos espetáculos de seu conjunto Musicanova. O cinema e a literatura também os exaltaram em obras que focalizaram os confrontos bélicos na cidade, como ‘O sole mio (1946), de Giacomo Gentilomo, e Le quattro giornate di Napoli (1962), de Nanny Loy, a peça Morso di luna nuova: racconto per voci in tre stanze (2005), de Erri De Luca, e I ragazzi di Via Tribunali (2011), de Giacomo Migliore.

[8] Foram mais de cem bombardeios por parte de ingleses (novembro de 1940-novembro de 1941), norte-americanos (entre 4 de dezembro de 1942 e 8 de setembro de 1943, os mais constantes) e alemães (depois de terem sido expulsos da cidade, como o da noite entre 14 e 15 de março de 1944, poucos dias antes da erupção do Vesúvio). Os bombardeios norte-americanos vitimaram muitos civis. Um dos mais terríveis foi o de 4 de dezembro de 1942, do qual tantas vezes minha mãe me falou e que reencontrei nas páginas de La dama di piazza (1961), de Michele Prisco, que atingiu o prédio do correio central, quando os corpos de muitos mortos foram recolhidos com pás, de tão estraçalhados que estavam. Lembro ainda de Clark Gable, que serviu na Aeronáutica, ficar receoso com a reação da população napolitana quando das filmagens de It started in Naples (Aconteceu em Nápoles, 1960), de Melville Shavelson. Para mim, foi muito emocionante ver em Napoli, Napoli, Napoli (Nápoles, Nápoles, Nápoles, 2009), de Abel Ferrara, trechos de um documentário que mostram um bombardeiro Liberator, depois vários outros, soltando sua carga mortal sobre a cidade; ruínas, distribuição de comida e a população feliz a receber os militares estrangeiros, ao som de uma suave melodia, que canta os encantos de Nápoles.

[9] Na noite de 12 de setembro de 1943, o coronel Walter Scholl tomou posse de Nápoles e de seus arredores. Adolf Hitler queria ver reduzida a lama e cinzas a cidade que se havia engalanado para recebê-lo em 1938 (como me contou um tio materno e como constatei num instantâneo do Arquivo Fotográfico Carbone tirado na época). Assim, nos dias seguintes, Scholl, obedecendo às ordens do Führer, deu início ao programa de deportação em massa de homens para a Alemanha. Os deportados destinavam-se aos campos de concentração ou às fábricas de material bélico. Meu pai estava entre esses prisioneiros, mas um oficial austríaco deixou que ele fugisse. Era um amigo de infância, nascido como ele em Gorizia (no Friul, Nordeste da Itália), quando a cidade ainda pertencia ao império austro-húngaro.

[10] O conturbado relacionamento entre soldados negros e mulheres italianas, abordado por Rossellini no terceiro episódio de Paisà e por Alberto Lattuada, em Senza pietà (Sem piedade, 1948), deu origem à canção Tammurriata nera (1944), em que E. A. Mario e Edoardo Nicolardi colocavam o dedo numa das chagas da cidade naquele período: o nascimento de crianças negras, os chamados “filhos da vergonha”, que o governo norte-americano mandará arrancar à força das mães napolitanas, que não os haviam renegado, e levar para orfanatos especiais nos Estados Unidos. Algumas crianças escaparam deste destino, como o saxofonista James Senese, que John Turturro entrevista em Passione (Passione, 2010), filme que dedicou a Nápoles.

[11] Sintomaticamente, o estudo mais completo sobre a presença das Forças Aliadas em Nápoles intitula-se Polvere di piselli, de autoria de Paolo De Marco. Minha mãe falava também do ovo em pó, acrescentando que, passados os dias da fome mais negra, os napolitanos, que não apreciaram muito as novidades gastronômicas, passaram a utilizá-las para pintar os cômodos das casas de verde ou de amarelo, como registrou também Eduardo De Filippo em “‘A pòver’ ‘e pesielle”: “‘Salvatore, / nepòtemo, ha fatto na penzata: / ce l’ha vennuta tutta a nu pittore; // ‘o quale l’ha vulluta, l’ha mpastata / e ha pittat’ ‘a cucina ‘e nu signore… / ma dice ch’è venuta na pupata’” (Tradução: “‘Salvador, / meu sobrinho pensou [numa solução]: / a vendeu todinha a um pintor; // o qual a ferveu, a misturou / e pintou a cozinha de um ricaço… / mas diz que ficou daqui ó’”). Esta é uma das poesias que compõem a série “Industrie di guerra”, escritas entre 1945 e 1948, em que o dramaturgo napolitano arrolou algumas das novidades trazidas pelos norte-americanos: ao novo cardápio de seus conterrâneos dedicou também “‘A pòvera d’uovo”; falou do inseticida com que a população era desinfetada em “‘O D.D.T.”; e, em “‘E ccascie ‘e muorte”, estranhou os sacos de cadáveres que substituíam os caixões no translado dos restos mortais dos combatentes.

[12] Segundo Francesco Durante, em 1943, Nápoles perdeu sua identidade, passando por uma “mudança antropológica” em virtude da chegada dos norte-americanos, que promoveram uma liquidação da cidade: “os americanos a salvaram dos alemães, da guerra e da fome, mas em Nápoles, até então, o limite entre o lícito e o ilícito, embora vago, era claro: de um lado, havia o ladrão; do outro, o homem honesto e qualquer um podia entender quem era uma coisa e quem era outra. Havia um princípio. Depois aconteceu algo que parecia a multiplicação dos pães e dos peixes, e com aquela abundância toda trazida pelos americanos, ser ladrão virou uma vantagem, e o novo mote foi ‘ccà nisciuno è fesso’ [aqui ninguém é trouxa]”. De fato, como foi lembrado em Napoli, Napoli, Napoli, a ação da camorra (máfia local), que havia sido contida pelo Fascismo, tornou a alastrar-se com a presença dos anglo-americanos na cidade. A questão havia sido abordada anteriormente por Francesco Rosi em Lucky Luciano (Lucky Luciano, o imperador da máfia, 1973).

[13] Fatos marcantes, que deram origem à peça Napoli milionaria!, que Eduardo De Filippo levava para os palcos da cidade já em março de 1945, focalizando os tempos bélicos, mas principalmente o pós-guerra, quando uma típica família do povo está prestes a desfazer-se, pois a mãe só pensa em enriquecer no mercado negro, o filho se tornou um ladrão e a filha está grávida de um soldado norte-americano. A doença da caçulinha, a qual deverá superar uma noite de febre para sobreviver, tornou-se a metáfora da longa noite escura da qual a cidade deverá sair se quiser se livrar de sua miséria moral. Em 1950, o próprio autor levou para as telas Napoli milionaria, mas o filme, descambando em parte para a comédia, não esteve à altura da peça.

[14] O termo segnorina, corruptela de signorina (= senhorita), era empregado para designar as mulheres que tinham relações sexuais com militares estrangeiros. Minha mãe contava que os soldados norte-americanos confundiam qualquer garota com uma segnorina e a Military Police, ao realizar batidas para conter o “ardor” de seus compatriotas, acabava prendendo até mulheres que não estavam se prostituindo.

[15] O comentário de Visentini traz em seu bojo mais duas questões interessantes: o rápido distanciamento emocional e o sentimento positivo em relação aos anos de guerra, apesar de todas as atribulações enfrentadas. Já em 16 de novembro de 1945, ao escrever sobre Roma, città aperta: (Roma, cidade aberta, 1944-45) na Gazzetta di Parma, Attilio Bertolucci havia falado “daquele tempo que já parece tão distante”. Mesmo em Nápoles, as pessoas que haviam lutado para libertá-la, não quiseram mais falar daqueles dias, como anotou Antonellis reproduzindo um texto do jornalista Vittorio Ricciuti escrito em 1963, quando foi lançado o filme de Nanny Loy: “Durante minhas pesquisas, consegui identificar alguns desses patriotas, que nem querem ouvir falar daquele período. Afirmam que não lembram o que aconteceu e como aconteceu cronologicamente. No fundo, aqueles quatro memoráveis dias se tornaram lenda no exato momento em que seus protagonistas os viviam: e bem se sabe que a lenda, com o passar dos anos, sempre tem contornos vagos e confusos. Chovia. Todos concordam com isso”.

[16] Outro episódio de Paisà que me toca de perto é o último, o dos partisans. Durante minha infância, passava as férias em Piedimonte del Calvario (distrito de Gorizia), onde, à noite, ao redor da mesa da cozinha da casa de minha tia, ouvia os relatos da luta partisan, na qual pereceu o irmão mais velho de meu pai. A Resistência foi e continua sendo o grande mito das esquerdas na Itália e a ela foram dedicados inúmeros romances de autores consagrados, poesias, músicas, bem como uma vasta produção de memórias, além de ter sido um dos grandes temas do cinema italiano, do neorrealismo em diante.

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