Negociações em Istambul

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Por GILBERTO LOPES*

Entre tréguas recusadas e negociações fracassadas a guerra na Ucrânia expõe a hipocrisia ocidental e a falência da ordem internacional, enquanto Gaza queima sob o mesmo silêncio cúmplice

Na sexta-feira, 16 de maio, as delegações russa e ucraniana reuniram-se finalmente em Istambul. Uma proposta que o presidente russo Vladimir Putin tinha feito uma semana antes, num discurso na noite de sábado, 10 de maio, no qual propunha retomar, sem pré-condições, o contato entre os dois países, perdido desde 2022. Entre um encontro e outro, desenrolou-se uma guerra, expressão aguda de uma ordem internacional em ruptura.

Não houve trégua

“A Ucrânia exige um cessar-fogo da Rússia para negociar. Vladimir Putin quer negociar um cessar-fogo”, afirmou a jornalista Veronika Dorman, do jornal francês Libération.

No próprio sábado, dia 10, os aliados mais próximos da Ucrânia – Macron, Stamer, Merz e Tusk – deslocaram-se a Kiev e, após uma longa reunião com Zelensky, anunciaram que tinham conseguido o apoio de Donald Trump para sua exigência de uma trégua de 30 dias, imediata e incondicional.

Um “dia histórico”, segundo Veronika Dorman, em que os aliados europeus de Volodymyr Zelensky apresentaram seu ultimato à Rússia. Uma trégua que a Rússia já tinha rejeitado, alegando que só daria tempo à Ucrânia, tanto para renovar seu arsenal como para reorganizar seu exército e fortalecer suas posições no terreno. Assim, mais do que a negociação de um acordo de paz – impossível no momento, dada a situação no terreno e a distância entre as demandas das partes –, a reunião de Istambul transformou-se numa confusa manobra europeia para conquistar o apoio de Washington.

Por agora, ninguém desistiu da iniciativa militar. Volodymyr Zelenski conta com o apoio de uma Europa empenhada em intensificar seus esforços para impor uma derrota à Rússia. Sabendo que, sem os Estados Unidos, isso seria muito difícil, conceberam uma estratégia para se aproximarem de Donald Trump e convencê-lo de que é Vladimir Putin quem rejeita as iniciativas de paz do presidente norte-americano.

Da parte da Ucrânia e de seus aliados, a exigência era a aceitação de uma trégua incondicional, acompanhada de ameaças de novas sanções caso não fosse acolhida até à meia-noite de segunda-feira, 12 de maio. A Rússia respondeu dizendo que não se dirige ao país nesse tom, nem através de um ultimato.

Entre as novas sanções, indicava-se a frota com a qual a Rússia continua negociando seu petróleo. Para isso, contam com uma oferta do senador norte-americano Lindsay Graham – o mesmo que disse que o financiamento do exército ucraniano é um bom negócio para os Estados Unidos – para impor tarifas de até 500% aos que utilizam estes navios para abastecer-se de petróleo russo.

Diante desta realidade, a Ucrânia anunciou a viagem de Volodymyr Zelenski a Ancara, a capital turca, onde se reuniria com o presidente Tayip Erdogan para pressionar por um encontro com Vladimir Putin.

Reunidos na Turquia na quinta-feira, dia 15, os ministros das relações exteriores da OTAN repetiram o mesmo argumento, um após o outro. “O presidente Volodymyr Zelenski está aqui pronto para falar de paz, enquanto Vladimir Putin enviou uma delegação de baixo nível, apenas para ganhar tempo”, para o ministro das relações exteriores polonês, Radoslaw Sikorski, enquanto o ministro das relações exteriores francês, Jean-Noël Barrot, insistiu na necessidade de impor “sanções massivas”, prontas para obrigar Vladimir Putin a aceitar a trégua.

Haverá também um novo fornecimento de material bélico à Ucrânia, incluindo possivelmente mísseis alemães de longo alcance, sem que se possa descartar, eventualmente, novo armamento norte-ameiricano.

A Rússia não tinha respondido a estas pressões até que, na quarta-feira 14, anunciou a formação de sua delegação, chefiada por Vladimir Medinsky, um assessor presidencial que já tinha sido chefe da delegação russa nas negociações de 2022, das quais a Ucrânia se retirou.

Tudo parecia confuso e improvisado. “As conversações de paz entre Rússia e Ucrânia começam entre a dúvida e o caos”, dizia o New York Times, quando ambas as delegações já estavam em Istambul.

A imprensa europeia não poupou críticas à delegação, chefiada por “uma figura de pouco peso político, inclusive na Rússia”, segundo o jornal espanhol El País, reiterando seu discurso: a recusa de Vladimir Putin em reunir-se com Volodymyr Zelenski (que não tinha sido marcada com antecedência) “era a prova de sua falta de compromisso com a paz”. Quando, na verdade, a Rússia já tinha explicado por que não podia aceitar o cessar-fogo incondicional exigido pela Europa, nem era claro como isso levaria ao fim da guerra, sem satisfazer nenhuma das exigências russas.

Como sabemos, não houve trégua na segunda-feira, 12 de maio, mas um acordo para uma reunião em Istambul na quinta-feira, 15 de maio, realizada conforme a proposta do Kremlin: conversações sem condições prévias. No dia seguinte, depois de concluída a reunião entre as duas delegações, Alexandra Sharp escreveu no Foreign Policy: “os especialistas sugerem que a própria realização da reunião representou um triunfo tático para Moscou, que conseguiu iniciar o diálogo sem antes aceitar uma trégua, algo que a Ucrânia e seus aliados tinham insistido amplamente como condição prévia para as conversações”. Pouco diálogo, nenhum progresso”, foi a conclusão de Sharp.

Destruição de toda a ordem política europeia

Longe de avançar para negociações de paz, a Europa aposta na guerra, mas a Rússia não tem ilusão sobre um acordo de paz rápido. Seu objetivo de conquistar o território ainda nas mãos da Ucrânia nas quatro regiões incorporadas à Rússia está em pleno andamento, enquanto Volodymyr Zelensky reiterou em Ancara que não reconhecerá qualquer concessão territorial aos russos.

Para a Europa, a questão tem outros contornos. Como indicou o novo chanceler alemão, da direita social-cristã, “esta guerra não ameaça apenas a integridade territorial da Ucrânia. Seu objetivo é destruir toda a ordem política europeia. É por isso que apoiamos a Ucrânia. Com todos apostando num eventual triunfo militar, não há, por enquanto, espaço para uma solução negociada.

Como Vitaly Ryumshin, jornalista e analista político russo, assinalou num artigo publicado na semana passada na RT, as negociações estavam destinadas a fracassar desde o início. “As condições reais para a paz simplesmente não existem”, afirmou, destacando que a situação militar na Ucrânia é “precária”. Ele lembrou ainda do fracasso das negociações anteriores, que foram conduzidas no meio de expectativas “pouco realistas”.

Gaza e Ucrânia – as duas caras do Ocidente

A chave para compreender a evolução do conflito – e justificar a enorme quantidade de recursos investidos pelo Ocidente nesta guerra – é a frase do novo chanceler alemão, Friedrich Merz, para quem o objetivo da Rússia é “destruir toda a ordem política europeia”.

Discípulo do já falecido ex-ministro das finanças alemão Wolfgang Schäuble – o mesmo que, juntamente com o atual secretário-geral da OTAN, Mark Rutte, então primeiro-ministro holandês, impôs à Grécia os drásticos ajustes econômicos para salvar os bancos alemães e franceses –, é difícil acreditar que exista algo à direita dos social-cristãos alemães, na qual milita também a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen.

Desde os anos 90 do século passado, no final da Guerra Fria, a Europa não parou de ampliar as linhas da OTAN para o leste, em direção às fronteiras da Rússia. Todas as advertências, incluindo as de ilustres diplomatas norte-americanos, sobre a inconveniência deste avanço não foram ouvidas, até que a Rússia reagiu militarmente em sua fronteira com a Ucrânia.

Mas há outra guerra, na qual o Ocidente apoia objetivos muito diferentes dos que são perseguidos pela Ucrânia, em que a inviolabilidade das fronteiras é o principal argumento. É a agressão israelense em Gaza e na Cisjordânia, cujos níveis de crueldade pareciam inimagináveis desde o fim da Segunda Guerra Mundial.

Pelo menos 125 pessoas foram mortas, incluindo muitas crianças, em consequência dos ataques aéreos israelenses a Gaza no domingo, 18 de maio. Estes ataques precederam uma vasta invasão terrestre, vinda do norte e do sul, com a intenção anunciada de se apropriar do território palestino.

Não há ajuda europeia para a população palestina, vítima de um verdadeiro genocídio, que o governo israelense submete agora a uma situação de fome, impondo restrições ao abastecimento alimentar de uma população civil indefesa.

O número de palestinos mortos desde o início da campanha israelense já se aproxima dos 100.000, sem que o “Ocidente” se oponha a este genocídio, enquanto gasta mais de 400 bilhões de dólares para armar a Ucrânia, onde considera que a “ordem política europeia” está ameaçada.

Que ordem é essa? Não se sabe ao certo. Também não está claro o destino das negociações iniciadas na semana passada em Istambul. A Europa já se comprometeu a renovar as sanções contra a Rússia, sem que se saiba se será acompanhada por Washington nestas medidas, enquanto se aguarda o resultado das anunciadas conversas telefônicas de Donald Trump com Vladimir Putin e Volodymyr Zelenski.

Qualquer trégua deve ser a base para uma paz duradoura, eliminando as causas profundas do conflito na Ucrânia, disse Vladimir Putin no domingo, 18 de maio. Um cessar-fogo que não faça parte de um acordo a longo prazo não será satisfatório para a Rússia, disse ele. Por enquanto, é o que se sabe.

*Gilberto Lopes é jornalista, doutor em Estudos da Sociedade e da Cultura pela Universidad de Costa Rica (UCR). Autor, entre outros livros, de The end of democracy: a dialogue between Tocqueville and Marx (Editora Dialética) [https://amzn.to/3YcRv8E]

Tradução: Fernando Lima das Neves.


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