Por JUAREZ GUIMARÃES*
Para a linguagem política do neoliberalismo, interessada em atualizar, e não apenas restaurar, um liberalismo desconfiado e avesso à democracia
O neoliberalismo foi, desde sempre, uma resposta regressiva à crise da tradição liberal e da hegemonia do Estado norte-americano. Neste sentido histórico largo, é um contrassenso falar em um “neoliberalismo progressista”.
Está em A era dos extremos: o breve século XX, de Eric Hobsbawn, o diagnóstico agudo de que, às vésperas da Segunda Guerra Mundial, o liberalismo, enquanto tradição, encontrava-se isolado em suas cidadelas inglesa e norte-americana. Seria necessário precisar este diagnóstico: mesmo ali, nestes dois países, a tradição liberal enfrentava impasses políticos profundos e estava em franca defensiva em relação a seus postulados clássicos.
Estes impasses eram, decerto, orgânicos ao capitalismo enquanto civilização dominante na Modernidade. A guerra mundial de 1914, com seu repertório de barbárie, havia colocado para sempre em questão uma noção unilinear de progresso, típica do utilitarismo liberal. A revolução russa de 1917, um forte abalo sísmico na ordem capitalista cujos desdobramentos internacionais ainda não cessaram, indicava um caminho alternativo de ruptura e emancipação.
A crise de 1929 punha em xeque toda a ciência econômica clássica liberal e sua noção de um equilíbrio autorregulado do sistema capitalista. Mais do que nunca, a noção de planejamento estatal, antes acionado em economias de guerra, ganhava legitimidade. Por fim, a ascensão do fascismo e do nazismo colocava em questão a própria democracia liberal, assediada por movimentos de reforma e revolução.
Esta problemática – a crise do liberalismo enquanto tradição – é o grande desafio que dá origem e unifica os pensamentos cosmopolitas – da Áustria, da Alemanha, dos EUA, da Inglaterra, da Suíça e da França – que vão convergir para a fundação do neoliberalismo. A produção de um campo plural de respostas a esta crise do liberalismo, como nos mostra T. Briebrichter em A teoria política do neoliberalismo, é um modo histórico e conceitual de contar a sua história.
Inimigo interno
O sinal fundamental de identidade que forma o sentido da resposta histórica do neoliberalismo à crise da tradição liberal é a noção central de que há um inimigo interno. Isto é, que o chamado liberalismo social ou liberalismo keynesiano seria uma corrente dissolvente da própria identidade clássica do liberalismo, uma resposta defensiva à maré montante dos movimentos operários e trabalhistas, que articulavam a conquista de direitos políticos à luta por justiça social. Mais do que isto, este liberalismo social, impulsionador de novos campos de atuação e regulação do Estado, levaria, como os regimes do comunismo e do nazismo, ao totalitarismo.
Talvez a primeira formulação desta tese de combate, verdadeiro grito de guerra dentro da própria tradição liberal, esteja em Uma investigação sobre os princípios da boa sociedade (1937), de Walter Lippmann, o principal intelectual crítico do New Deal nos EUA. Na obra, Lippmann afirma que ” em uma sociedade livre, o Estado não administra os negócios dos homens. Ele administra a justiça entre eles, os quais conduzem os seus próprios negócios”. Segundo o autor, a política então conduzida pelo Partido Democrata levaria gradualmente a um coletivismo; via o liberalismo clássico em um rápido declínio e exortava a um esforço para resgatá-lo e retomá-lo. Foi este livro que deu origem ao Seminário Walter Lippmann em 1938, em Paris, considerado pelos autores da história intelectual do neoliberalismo como sua primeira plataforma, interrompida, porém, pela Segunda Guerra Mundial.
Mas é na obra de Friedrich Hayek que um pensamento sistemático sobre a crise histórica do liberalismo vai se constituir. Acolhido na London School of Economics, acompanhando de perto a crise do liberalismo inglês, ele vai produzir uma narrativa de longa duração desta crise.
Assim, para Friedrich Hayek, a crise do liberalismo dataria, na verdade, de meados do século XIX e já estaria expressa na tentativa utilitarista de Jeremy Bentham e, principalmente, de John Stuart Mill, de reconciliar liberdade e algum sentido reformista e igualitário.
Com a extensão do sufrágio eleitoral na Inglaterra, a perda de bases do Partido Liberal (Whig), a ascensão do Partido Trabalhista e sua polarização com o Partido Conservador, as teorias liberais típicas da época da hegemonia inglesa estavam passando por um processo de mutação e adaptação, cujas expressões intelectuais mais salientes seriam Hobhause e T.H. Green. Este novo liberalismo, em fusão com os reformismos trabalhistas, de fato significava um momento de descentramento da tradição clássica liberal.
Polarização e regressão
Já a crítica ao chamado liberalismo social é, na verdade, um chamamento ao combate a um verdadeiro inimigo interno. O neoliberalismo produziu uma segunda ” guerra fria” no interior da ” Guerra Fria” que opôs, no século XX, o liberalismo e o socialismo.
Com a crise do liberalismo inglês instalada já no final do século XIX, seria a tradição norte-americana constitucional de autolimitação da democracia que representaria a nova sede da tradição liberal. Friedrich Hayek, contra a tradição republicana de Thomas Jefferson, estimaria sobretudo a teoria de James Madson, principal teórico da Constituição norte-americana, que prevê uma série de mecanismos contramajoritários no sentido de neutralizar o pleno princípio da soberania popular. É esta tradição liberal da democracia contramajoritária que Hayek, como Lippmann, vê ameaçada de morte pela ascensão da época de Roosevelt.
No exame autocrítico sobre a evolução da tradição liberal, no sentido de exorcizar as raízes internas de sua crise, os neoliberais vão, ao mesmo tempo, criticar as teorias do laissez faire, da autorregulação do mercado, e as teorias do liberalismo social emergentes e que seriam dominantes no pós-guerra até o fim dos anos setenta do século passado. O mercado capitalista, concebido como o reino da liberdade, necessitaria de uma ordem estatal forte, capaz de criar as condições permanentes de sua reprodução.
Quando Donald Trump acusa os membros ou simpatizantes do Partido Democrata, ou mesmo quando Jair Bolsonaro e seus adeptos acusam até o PSDB de estarem a serviço do socialismo, eles não estão propriamente formulando um diagnóstico fora da linguagem neoliberal. O neoliberalismo produz, de fato, uma linguagem radical de polarização política e social. Faz parte de sua “guerra fria” atacar os liberais “traidores” ou que conciliam com o socialismo.
Neste sentido histórico largo, não há porque caracterizar o fenômeno da chamada Terceira Via, de Tony Blair, Bill Clinton e Fernando Henrique Cardoso, de “neoliberalismo progressista”. Na medida em que se inscrevem na contrarrevolução democrática que é o neoliberalismo, o que há de agenda topicamente ou simbolicamente progressista é tragado pela voragem antipopular, colonialista e antidemocrática do neoliberalismo. Se é certo e necessário distinguir correntes mais ou menos conservadoras, regressivas ou antidemocráticas no interior da grande convergência histórica do neoliberalismo, parece um paradoxo chamar de ” progressivo” um programa histórico tão profundamente regressivo.
Para a linguagem política do neoliberalismo, interessada em atualizar, e não apenas restaurar, um liberalismo desconfiado e avesso à democracia, todas as conquistas e a própria noção de universalização dos direitos humanos estão em questão. O neoliberalismo é, neste sentido histórico largo, uma proposta forte de regressão civilizatória.
*Juarez Guimarães é professor de ciência política na UFMG. Autor, entre outros livros, de Democracia e marxismo: Crítica à razão liberal (Xamã).
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