Por RAFAEL PADIAL*
Trotskista desde a juventude, professor, pesquisador e marxista, Benoit jamais se afastou da luta política
Além do reconhecido trabalho teórico sobre Platão e Marx, o professor Hector Benoit tem uma importante trajetória dentro do movimento socialista como militante revolucionário.[1]
Hector Benoit começou sua militância com cerca de 16 anos, entre 1968 e 1969, na Rua Maria Antônia, no centro da cidade de São Paulo, onde se localizava a Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo. Ele era estudante secundarista, mas em sua escola não havia ativismo político. Por isso, frequentava assembleias e passeatas dos estudantes universitários.
Contou-nos Hector Benoit diversas vezes como o impressionaram, à época, os discursos de José Dirceu, Luis Travassos e Vladimir Palmeira, graças à verve e à radicalidade daquele movimento estudantil, em tudo superior ao atual. Luis Travassos, por exemplo, subia nos automóveis para discursar e, ao final, jogava seu microfone no chão. O movimento da Rua Maria Antônia em 1968 não era só um fenômeno político, mas também estético, com uma simbologia de negação do capitalismo que atraía a juventude.
Era a época de conflito com o Comando de Caça aos Comunistas (CCC), que tinha uma base no colégio Mackenzie. Contou-nos Hector Benoit sobre a morte do estudante secundarista José Guimarães, assassinado pelos bandos do CCC, e sobre a passeata em protesto dirigida pelas lideranças estudantis, com a camisa do jovem, ensanguentada, em suas mãos. Na ocasião, os manifestantes percorreram a Avenida São João, a Avenida Ipiranga e todo o centro de São Paulo, travando batalhas com as forças da repressão. Amoníaco era usado para afugentar os cães policiais. Perto da Rua Barão de Itapetininga, jovens jogavam bolinhas de gude para derrubar a cavalaria.
Hector Benoit tinha grande interesse por cinema. Todos esses acontecimentos políticos, todavia, fizeram com que optasse por estudar na Faculdade de Filosofia da USP, na qual ingressou em 1971 (e se graduou em 1974). Nesse período a faculdade era, diz ele, “território morto”: parte politizada dos seus professores estava cassada, como Florestan Fernandes, Bento Prado Júnior, Fernando Henrique Cardoso e outros; ou estava presa, foi torturada e depois solta, como o professor Luiz Roberto Salinas (que, aliás, morreu posteriormente de enfarto, por volta dos 50 anos, graças aos traumas que as torturas lhe causaram). A situação era deprimente.
Ao final de 1973, com o início das suas investigações sobre Platão, Benoit iniciou também estudos sobre Marx. A princípio, intentava estudar Platão como forma de esconder seus estudos políticos sobre Marx, devido à perseguição política da Ditadura Militar. Assim poderia desenvolver pesquisas no campo do pensamento dialético. Entretanto, aos poucos, Hector Benoit se surpreendeu cada vez mais com a radicalidade da dialética platônica, o que o levou, inclusive, futuramente, a ressignificar sua leitura de Karl Marx.
Com o golpe de Estado na Argentina, em março de 1976, diversos militantes políticos desse país se refugiaram no Brasil. Alguns se esconderam no pequeno apartamento de Hector Benoit, na Rua Martim Francisco, no centro de São Paulo, com os quais seguiu diariamente estudos sobre o O capital. Os militantes argentinos desse período representavam a elite intelectual do marxismo da América Latina.
Na graduação da Faculdade de Filosofia, Benoit não participava organicamente de nenhum grupo político do movimento estudantil, pois, disse ele, os alunos do Centro Acadêmico eram muito fechados, muito desconfiados; na prática, impediam o processo de participação dos estudantes. Todavia, Hector Benoit participou das assembleias e passeatas, sobretudo após 1975.
Na segunda metade da década de 1970, Benoit, já trotskista, era amigo próximo de membros da Organização Socialista Internacionalista (OSI), conhecida no meio estudantil por Liberdade e Luta, ou simplesmente Libelu. A Organização Socialista Internacionalista era, na época, vinculada à corrente internacional chamada “lambertista” da Quarta Internacional, pois dirigida pela seção francesa comandada por Pierre Lambert. Hector Benoit não participava da Organização Socialista Internacionalista pois, segundo ele, considerava baixo o nível teórico dos seus quadros.
Foi somente em 1979, pouco antes de se mudar para Ribeirão Preto (para lecionar na FFCLRP-USP), que Benoit resolveu ingressar na Organização Socialista Internacionalista. Um dos motivos que pesaram na decisão e tornaram-na resoluta foi a vinda ao Brasil do intelectual e historiador trotskista francês Pierre Broué, vinculado internacionalmente à Organização Socialista Internacionalista. Pierre Broué era já o principal historiador do trotskismo em todo o mundo e o primeiro pesquisador a ter acesso aos arquivos Leon Trotsky.
Pierre Broué defendeu que os trotskistas brasileiros da Organização Socialista Internacionalista estavam corretos ao serem contra a entrada no novo partido político que estava sendo gestado, o Partido dos Trabalhadores (PT). Argumentava Pierre Broué que os militantes da Convergência Socialista (grupo trotskista brasileiro, vinculado ao argentino Nahuel Moreno) estavam errados ao defender a criação do PT; que não se poderia construir um partido de tipo social-democrata no século XX; que era preciso construir um partido revolucionário próprio, pois o ascenso do movimento operário poderia desembocar na abertura da dualidade de poder nas fábricas e mesmo em conselhos populares. Hector Benoit aderiu a essas teses de Pierre Broué.
Qual não foi a sua surpresa quando, no início do ano de 1980, recebeu em reunião de célula partidária a informação de que sua direção política orientava a entrada no Partido dos Trabalhadores. A própria Organização Socialista Internacionalista, até 1979, na revista teórica de seu Comitê Central – chamada A luta de classe –, se manifestava contra a proposta de construção do PT e argumentava que esse partido seria controlado por um “sindicalismo similar ao dos gângsteres peronistas”. Hector Benoit protestou desde o início contra a nova orientação, desenvolvida no primeiro semestre de 1980, de entrada no PT.[2] Segundo Hector Benoit, a entrada no PT apenas bloquearia a construção de uma organização revolucionária no Brasil.
A proposta de entrismo no PT surgiu por influência de Luis Favre e anuência do secretário-geral da organização, G. A. (codinome “Xuxu”). Luis Favre, trotskista argentino (irmão do conhecido trotskista Jorge Altamira), agia em nome de Pierre Lambert, dirigente máximo da organização internacional. A liderança de Pierre Lambert passava, nesse período, por um processo de degeneração e adaptação política. Na França, ele dirigia há alguns anos um entrismo no Partido Socialista, que estava prestes a eleger o presidente François Mitterrand.
A tática de Pierre Lambert – que depois muito o caracterizou – consistia em entrar secretamente em organizações políticas e sindicais e buscar influenciar seu corpo dirigente. Curiosamente, graças à generalização dessa “tática” (tornando-a quase uma estratégia), posteriormente a organização de Pierre Lambert adaptou-se às burocracias partidárias e sindicais francesas, fornecendo grandes quadros ao próprio governo burguês francês, como Lionel Jospin, que se tornou Primeiro Ministro entre 1997 e 2002. Deu-se o mesmo no Brasil, onde Luis Favre, dirigido por Pierre Lambert, aplicava a “tática”, o suposto atalho para a construção partidária.
Luis Favre e o secretário-geral da Organização Socialista Internacionalista argumentavam que dentro do PT ela chegaria rapidamente a dois mil militantes. Na época, a organização tinha cerca de mil militantes, mas graças à sua forte corrente estudantil, a Libelu, crescia quase 100 pessoas por mês. Como se sabe, após entrar no PT a Organização Socialista Internacionalista liquidou-se em poucos anos e seus principais dirigentes tornaram-se importantes quadros da entourage lulista (como Antonio Palocci, Clara Ant, Glauco Arbix, Luiz Gushiken e outros).
Curiosamente (e talvez tragicamente), os responsáveis principais pela construção do corpo militante/partidário do PT, na base, os que mantiveram os diversos núcleos pelo país, foram sobretudo militantes trotskistas da Organização Socialista Internacionalista, da Convergência Socialista e da Democracia Socialista. Estes, entretanto, nunca conquistaram a direção do PT, sempre nas mãos do grupo de Lula; jamais conseguiram imprimir ao partido uma linha política revolucionária.
Em julho de 1980 ocorreu o congresso da Organização Socialista Internacionalista para aprovar a entrada no PT. Hector Benoit, dirigindo outros camaradas, escreveu, durante quatro dias, praticamente sem dormir, uma tese política de 45 páginas, na qual retomou as posições de Pierre Broué; defendeu contra a entrada no PT; afirmou que o PT, na melhor das hipóteses, seria um partido centrista que bloquearia a construção de um partido revolucionário trotskista no Brasil; que o PT tenderia a se tornar um pilar da dominação burguesa e poderia até dar base a um processo autoritário (bonapartista); defendeu a criação de um partido revolucionário com programa e organização próprios, bem delimitados em relação ao PT; defendeu a retomada do Programa de Transição de Trotsky, o programa de fundação da IV Internacional; defendeu a caracterização de que o Brasil não seria um país atrasado, colonial ou semi-colonial, e estaria pronto para uma estratégia puramente socialista.
Tal texto pode ser encontrado, quase na íntegra, na revista Maisvalia número 2, publicada em 2008. A tese de seu grupo foi sabotada pela direção da Organização Socialista Internacionalista e não circulou entre a organização. Com argumentos burocráticos – acusada de violar a segurança partidária ao enviar uma carta por correio –, a tendência política de Hector Benoit, chamada Oposição de Esquerda, foi expulsa pouco antes do congresso.
Graças à sabotagem da discussão política pela direção, poucos militantes saíram da Organização Socialista Internacionalista com a expulsão do grupo de Hector Benoit. Todavia, estes conseguiram agregar militantes dissidentes da Organização Socialista Internacionalista e formaram, após seis meses, um grupo político com cerca de 100 pessoas, chamado Transição, focado sobretudo em São Paulo, Ribeirão Preto, Campinas e Uberlândia.
O novo grupo foi formado em geral por gente nova e inexperiente; carecia de quadros para a sua direção e centralização; e ainda tinha fragilidade na aplicação da teoria leninista de partido. Hector Benoit lembra que era obrigado a viajar com frequência entre as várias cidades e mesmo estados onde se localizam os militantes. Toda essa fragilidade levou ele e seus camaradas a fecharem o grupo em pouco tempo. Na verdade, realizaram uma aparente extinção: o grupo foi restringido a cerca de 20 pessoas e se manteve apenas como organização clandestina, voltada a realizar um trabalho de proletarização e inserção de militantes em fábricas. Nos anos que se seguiram, Hector Benoit ajudou a formar esses militantes, sobretudo os operários, com aulas sobre O capital de Karl Marx.
Após dois anos, graças à formação dos militantes e com certo fortalecimento interno à organização, o grupo iniciou certa agitação de reivindicações básicas do Programa de Transição de Trotsky, lançando a “Frente Pró-Escala Móvel”. O intuito era esclarecer, em reuniões públicas, a importância das reivindicações contidas no texto de Trotsky, na luta pela manutenção das condições de vida da classe trabalhadora. Data de 1983/84 o início da aproximação do grupo de Hector Benoit com o Comitê Internacional da Quarta Internacional (CI-QI), corrente trotskista internacional à época dirigida pelo inglês Workers Revolutionary Party, de Gerry Healy.
O CI-QI tinha uma longa tradição de combate ao chamado “pablismo”, corrente política dentro da Quarta Internacional que efetivou uma adaptação ao stalinismo, à social-democracia e a movimentos pequeno-burgueses nacionalistas. Sob pressão do Comitê Internacional, o grupo de Hector Benoit, em 1985, legalizou publicamente a seção brasileira do CI, denominada Partido Revolucionário dos Trabalhadores do Brasil, e iniciou a publicação de uma revista teórica, chamada Contra corrente (da qual duas edições podem ser encontradas).
Pouco antes dessa fundação pública, o grupo de Hector Benoit começou a colher os frutos do paciente trabalho de inserção em fábricas metalúrgicas na Zona Oeste de São Paulo, realizando reuniões nas casas de vários operários. Também em 1985, graças a um militante profissional, inserido numa metalúrgica de autopeças – chamada Colúmbia, com cerca de 500 operários, que produzia buzinas para carros –, o grupo conseguiu dirigir uma greve com ocupação da fábrica. A luta durou um mês e resistiu contra a ameaça de reintegração policial. Ao final, obteve uma grande vitória, com a criação de uma comissão de fábrica com estabilidade.
Nessa época, as comissões de fábrica não eram como as atuais, as chamadas Comissões Sindicais de Fábrica, que são um braço dos sindicatos burocratizados dentro das fábricas. Elas eram um organismo independente e de base dos operários no próprio local de trabalho. Com a greve, o grupo de Hector Benoit cresceu, com a entrada de vários operários. Na própria greve iniciou-se a publicação de um boletim interno à fábrica, chamado inicialmente A Corneta (em referência às buzinas ali produzidas). Em seguida seu nome mudou-se para O Corneta.
Da distribuição do boletim por várias fábricas da região e sua extensão, O Corneta tornou-se um jornal operário, influente entre metalúrgicos de São Paulo. O foco de O Corneta era cobrir a realidade e o dia a dia do operário. O coração do jornal eram as diversas cartas e denúncias de operários sobre os seus locais de trabalho, sobre os abusos e a ditadura permanente da direção e dos capatazes nas fábricas. O jornal dava, de forma ampla e não sectária, o “ponto de vista do peão”. Ainda em 1985, o grupo de Hector Benoit abriu uma sede para o jornal na região operária da Vila Leopoldina.
Entre 1985 e 1986, entretanto, estourou uma crise internacional no CI-QI, organização em nome da qual Benoit e seus camaradas acabavam de publicizar a “seção brasileira”. A divisão internacional do CI-QI desorientou o jovem grupo de Hector Benoit. Ele e seus camaradas receberam a visita de trotskistas norte-americanos do CI-QI, dissidentes do grupo de Gerry Healy. São os dirigentes da seção dos EUA, a Workers League: David North e Bill Van Auken. Estes evidenciaram diversos elementos da degeneração da liderança de Gerry Healy.
Em maio de 1986, Hector Benoit viajou à Inglaterra para um congresso da Quarta Internacional healysta e para entender melhor o que se passava. Lá, travou contato com o próprio Gerry Healy, mas também Alex Mitchell, Savas Matsas, Vanessa Redgrave e outros. A reunião com as demais seções internacionais foi um desastre. Segundo Hector Benoit, era notória a degeneração e desintegração da organização internacional sob a liderança de Healy no período, bem como a total ignorância deles sobre a realidade da América Latina.
O único que se interessava pelo trabalho brasileiro e defendia as posições de Benoit era Alex Mitchell, dirigente do jornal diário NewsLine – mas este também parecia cada vez mais sem esperanças quanto ao futuro da organização. O trabalho do grupo brasileiro com O Corneta foi condenado pela maioria dos ingleses. Hector Benoit voltou da viagem convencido de que essa não era uma alternativa política internacional. Ao chegar ao Brasil e dar seus informes, grande desânimo se abateu sobre os militantes da jovem organização.
Apesar de toda essa crise, internacional e interna à própria organização, seguia com grandes avanços o trabalho de O Corneta, cada vez com maior participação e contribuição de operários. O grupo fez uma séria autocrítica em relação ao período anterior, sobretudo em relação ao avanço precipitado à publicização, que desorientou e minou as bases do paciente trabalho clandestino que realizavam. O trabalho propriamente disciplinado teria sido trocado por uma mera agitação impaciente e esquerdista. A seção brasileira do CI-QI foi dissolvida em 1987, mas o trabalho com o jornal operário seguiu.
Em 1987, novamente, retornaram ao Brasil os dirigentes norte-americanos do CI-QI, David North e Bill Van Auken, para novos contatos. As suas críticas anteriores a Healy e à degeneração de seu grupo haviam sido confirmadas. Todavia, tão logo iniciaram-se as discussões, evidenciou-se sua crítica ao jornal O Corneta, que seria “sindical de mais”, supostamente adaptado ao “atraso” dos operários. Os norte-americanos acreditavam que o mais necessário seria ter um jornal com a totalidade do pensamento socialista, com análises sobre a conjuntura mundial, ou seja, era preciso ter “o jornal do Comitê Central” para doutrinar operários com “opiniões” sobre socialismo.
Além disso, defendiam que o Brasil estava sob o risco iminente de um golpe militar (sob o governo Sarney), e que o grupo brasileiro deveria logo se filiar, o quanto antes, à direção internacional dos norte-americanos. O prognóstico, evidentemente, estava errado. Se levado adiante, resultaria na destruição do paciente jornal operário e levaria à liquidação total do grupo. Um internacionalismo abstrato buscava então se impor sobre o grupo brasileiro. O pequeno grupo ficou dividido sobre o que fazer e a crise interna se acentuou.
Em 1987 e 1988 O Corneta já era bastante conhecido em fábricas metalúrgicas; chegava a ter contribuições de mil operários em fábricas como a Braseixos, Cobrasma e Ford do Ipiranga. O grupo carecia de militantes para as distribuições, mas a força operária, as contribuições crescentes e a participação direta dos trabalhadores mantinham o jornal vivo. Havia caso de operários que saíam do turno da noite, às 5h, e iam diretamente ajudar na distribuição do jornal no turno da manhã, às 6h e 7h. Todavia, com a fragilidade interna e com a ausência de uma perspectiva internacional, o grupo de Hector Benoit estava cada vez mais fragilizado. Nesse período deu-se um importante fato para o movimento operário, fato que Hector Benoit diversas vezes nos comentou, e que O Corneta acompanhou diretamente: a eleição para o Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo e Região, em 1987.
Essa eleição, diz Hector Benoit, dividiu as águas do movimento operário brasileiro até hoje. Havia a possibilidade real de a Central Única dos Trabalhadores ganhar o Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo e Região, e, assim, ter em suas mãos os sindicatos do ABCD e o de São Paulo (o maior sindicato, metalúrgico, da América Latina). Isso teria, sem dúvida, permitido um fortalecimento unificado das lutas do movimento operário e uma ascensão deste. O candidato com chances reais de vitória em São Paulo era Lúcio Belantani, representando a CUT. Belantani era o principal dirigente da Comissão de Fábrica da Ford do Ipiranga, portanto, dirigia diretamente cerca de mil operários.
Hector Benoit comentou, diversas vezes, que aprendeu muito sobre movimento operário com Lúcio Belantani. Este contou a Benoit em detalhes como haviam patrocinado entre os operários, primeiro clandestinamente, a Comissão de Fábrica da Ford, e como, depois, a impuseram à empresa (que não teve opção, senão a de aceitá-la). Lúcio era partidário de um “sindicalismo pelas bases”, das comissões de fábrica, e admirava O Corneta pois, segundo ele, era “o único jornal que não cagava regras na cabeça da classe operária”. Realmente, esse era o segredo de O Corneta: primeiro e antes de tudo, ouvir a classe; ganhar a confiança antes de pretender dirigir. Nesse período, Hector Benoit conheceu o movimento sindical operário e metalúrgico paulistano por dentro e travou relações com as suas principais lideranças.
Lúcio e Benoit foram próximos e a Comissão de Fábrica da Ford começou a mandar representantes às reuniões de O Corneta. Todavia, em 1987, a eleição de Lúcio para presidência do sindicato foi sabotada pelo grupo da CUT vinculado a Lula. Este e seus sindicalistas do ABCD temiam que a eleição de Lúcio e o controle do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo por ele lhe dariam poder demais, possivelmente enfraquecendo o grupo dos sindicalistas do ABCD dentro da CUT e do PT. A CUT correria o risco de ser dominada pelo grupo de Belantani, com tradição mais combativa, que valorizava comissões de fábrica e participação direta dos operários.
Lula e os seus resolveram lançar uma segunda chapa da própria CUT na eleição em São Paulo, para concorrer com Belantani. Lançaram, assim, a chapa encabeçada por Chico Gordo, da Democracia Socialista (grupo de origem trotskista-pablista, que controlava a comissão de fábrica da Asama, ao lado da Colúmbia). Chico Gordo, recentemente, em entrevista, revelou que esse foi um dos principais erros de sua vida. A divisão dentro da própria CUT permitiu a vitória do candidato oficial, o Medeiros, da Força Sindical.
Assim foi por água abaixo a única chance real que a CUT teve de dirigir o Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo e Região. Até hoje, por isso, a Força Sindical controla esse sindicato. Aliás, pouco após a eleição, todo o longo trabalho clandestino, de mais de uma década, da Oposição Metalúrgica de São Paulo, entrou em decadência e se desarticulou. Essa situação lastimável dura até hoje.
O Corneta seguiu recebendo contribuições de muitos operários, bem como trabalhava com a participação de importantes intelectuais, como Florestan Fernandes, Maurício Tragtenberg, Valentim Facioli e outros, com os quais Benoit se relacionava. Data desse período a abertura da sede de O Corneta na Barra Funda, em espaço dividido com um núcleo do PT (que Benoit soube depois ser vinculado a Zé Dirceu). Enquanto muitos núcleos petistas na cidade de São Paulo estavam em franca decadência (porque os trotskistas, que na prática construíram os núcleos e as bases do PT, eram agora perseguidos ou expulsos do partido), o núcleo da Barra Funda ascendia.
Operários frequentavam o espaço para acompanhar a produção de O Corneta. Em 1988, O Corneta foi discutido em seminários operários da CUT, no Instituto Cajamar, e iniciaram-se promessas, em 1989, por parte do próprio José Dirceu, de que O Corneta poderia tornar-se um jornal diário do PT, por ser um jornal operário. Florestan Fernandes, sobretudo, teria pressionado nesse sentido e agendou uma reunião entre Hector Benoit, Perseu Abramo (então Secretário de Comunicação da Cidade de São Paulo, na prefeitura de Luiza Erundina) e Marilena Chauí (Secretária de Cultura no mesmo governo).
Todavia, comenta Hector Benoit criticamente depois, essa situação demarcou um período de desorientação política do jornal, devido à ausência de leninismo no grupo político e certa adaptação ao petismo. Segundo ele, tratou-se apenas de promessas vazias dos petistas, que serviram para enfraquecer o grupo e afastar o jornal da realidade dos operários. Assim, O Corneta perdia seu motivo de existência.
Devido, portanto, a todos esses elementos – fragilidade interna do grupo, desorientação internacional, afastamento do leninismo, decadência do movimento operário paulistano após a eleição de 1987 e aproximação em relação ao PT (afugentando operários de base) –, Hector Benoit e seu grupo resolveram fechar O Corneta em 1990 e paralisar o próprio funcionamento do grupo político. Apenas um pequeno núcleo foi mantido, para estudos e à procura de um novo caminho.
A década de 1990 marcou um período de reflexão de Benoit sobre essa trajetória política, que começou com o combate à adaptação lambertista da OSI ao PT. O problema central nesse longo período, argumentou tantas vezes Benoit, teria sido, acima de tudo, o afastamento da teoria leninista de partido; a dissolução ou enfraquecimento, por diversos motivos (internos e internacionais) do sério e sólido trabalho clandestino, paciente, que o grupo realizava no início da década de 1980 com a classe operária. Foram essas fragilidades que terminaram por quebrar o grupo, o jornal O Corneta e resultaram em certa aproximação com o PT.
Data da década de 1990 também a principal publicação de artigos de Hector Benoit (muitos elaborados na década de 1980, mas voltados apenas à formação interna de militantes), com sua leitura do marxismo (dialética expositiva de O Capital, dialética do Programa de Transição, dialética da teoria leninista de partido). Data daí também a publicação de importantes artigos sobre a radicalidade da dialética platônica. Hector Benoit participou, no período, do Comitê Editorial da revista Crítica Marxista e ajudou a fundar a Revista Outubro. Todavia, restava-lhe a questão: para além da produção intelectual, como reiniciar a construção de um grupo propriamente leninista e superar a fragilidade teórica do chamado marxismo?
Em 2000, Benoit resolveu reiniciar um trabalho político para reconstrução de um grupo marxista em bases leninistas e internacionalistas; iniciou, assim, grupos sistemáticos de estudos da teoria de Marx, grupos de leitura de O Capital, grupos de estudos sobre a dialética marxista e grupos de discussão sobre a aplicação de O Programa de Transição de Trotsky à realidade brasileira. Esses grupos começaram a reaglutinar um número razoável de intelectuais e jovens, visando à retomada de um projeto organizacional.
As primeiras reuniões propriamente políticas desse grupo ocorreram, de forma relativamente frágil, em 2002. Pouco depois se deu a fundação pública da nova organização, denominada Negação da Negação, em homenagem à dialética. Em 2005, quando do estouro do escândalo de corrupção petista do mensalão, o grupo ampliou suas intervenções de rua, considerando que a queda do PT significaria a reabertura da possibilidade de construção de uma organização revolucionária.
Em 2006 foi retomada a publicação do jornal O Corneta e sua distribuição em fábricas da grande São Paulo (que dura até hoje). Hector Benoit fundou a revista teórica marxista Maisvalia, que foi publicada entre 2007 e 2011, contando com 10 números. A organização Negação da Negação, criada por Benoit, existiu até 2016.
*Rafael Padial é doutor em filosofia pela Unicamp, sob a orientação de Hector Benoit.
Notas
[1] Este texto foi escrito em 2017, após diversas conversas com Hector Benoit. Nosso propósito aqui é apenas tratar (brevemente) das experiências políticas/militantes de Benoit e não de sua riquíssima herança teórica.
[2] Tais protestos podem ser encontrados em documentos internos à Organização Socialista Internacionalista, como relatos de célula e atas do comitê central, presentes no Centro de Estudos Mário Pedrosa, da Unesp.
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