Por ROGÉRIO RUFINO DE OLIVEIRA*
Onde a versão original de Vale Tudo trabalhava tipos sociais com maestria, o remake tipifica um Brasil pasteurizado, onde todos são reduzidos a meros consumidores de gatilhos
1.
A novela “Vale tudo” de 1988 representou bem o Brasil, apesar dos seus limites de produto comercial e graças ao talento da carpintaria folhetinesca de Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères. Porque trabalharam o folhetim e o melodrama com um bom uso do recurso de tipificação de perfis e dramas sociais brasileiros à época.
Representação bem-sucedida sob o ponto de vista da linguagem da telenovela produzida pela rede Globo no auge das telenovelas no Brasil. Títulos como “Beto Rockfeller” e “Roque Santeiro”, a escola de Janete Clair, além das próprias novelas anteriores de Gilberto Braga, ajudaram a construir um estilo de gênero que pavimentou a estrada da trama de 1988.
Aliás, não foram apenas o folhetim e o melodrama os elementos lubrificados pela abordagem realista, mas o intuito da pesquisa social e o mote da trama foram elaborados como preenchimento temático do projeto folhetinesco e melodramático. Jogo mútuo que os autores sabiam que não podia ser rompido por nenhuma das partes que o compuseram. Gilberto Braga era e Aguinaldo Silva é, ambos são craques dessa engenharia, além de imprimirem estilo de grife própria em suas obras.
A Vale tudo de 2025 representou bem o Brasil atual pelo fato de que, sob a intenção ser uma refilmagem não só do título original, mas de seu intento temático e de abordagem, tornou-se uma paródia não intencional. Esse é o fator mais instigante da versão atual. O fracasso do seu projeto composicional, liderado pela autora Manuela Dias, corresponde à sua eficácia como peça que representa de modo confessional o cerne da situação ficcional contemporânea.
O trabalho de feitura das telenovelas, com produção rápida e industrial que demanda da força criativa das pessoas envolvidas uma entrega sem muita elaboração, faz com que todas elas tenham furos de roteiro. Mas os inúmeros furos da Vale tudo de 2025 têm uma extrapolação que diz respeito ao patamar secundário que a busca pela coerência ocupa hoje, sobretudo quando se percebe que a incoerência é mais eficaz para a repercussão popular e, por isso, para o ganho financeiro da empresa produtora.
Coerência também naquele sentido da verossimilhança aristotélica, em que o projeto da composição impõe aos seus elementos internos o que é ou não pertinente como recurso e opção. Uma mulher pode voar numa trama com realismo fantástico, mas, por exemplo, o desfecho de Odete Roitman criado por Manuela Dias, o modo como a personagem escapou da morte, não correspondeu ao que foi prometido com o remake.
A totalidade do projeto impõe o limite da coerência interna, criando as suas regras, que precisam ser seguidas uma vez estabelecidas. Aqui, sai caro o que não é combinado. É por isso que nada do que se viu em O clone feriu a novela de Gloria Perez, porque as diretrizes do jogo desde o início conciliavam clonagem humana, cultura islã, protagonistas apaixonados, vício em drogas e um razoável arco de realismo arbitrando a convergência dessas peças aparentemente inusitadas quando juntas.
2.
A conveniência de roteiro também é outro truque dos folhetins televisivos, Gilberto Braga lançava mão desse recurso várias vezes. Porque os autores o usam como solução convencional do formato e não necessariamente como falha, já que precisam sustentar inúmeros personagens por meses numa história aquecida, cheia de gatilhos e estendida que produz por semana seis episódios de uma hora.
A questão é que, nesse aspecto, a dosagem da forçação de barra, a quantidade usada e o feitio do uso se estabelecem como fator valorativo. É nesse sentido que a conveniência de roteiro da Vale tudo de 2025 soou constrangedora. Não há deus ex machina capaz de abençoar.
A quase completa anulação do filtro tipificador representacional presente na peça de 1988 parece ter se justificado pelo modo como a rede Globo lê o Brasil atual pela tônica sociopolítica e, por consequência, como ela entende que deve se enveredar por esse caminho sem prejudicar o alcance de seus produtos.
O conflito social de 1988, uma vez atualizado, talvez tivesse que dialogar, por exemplo, com a configuração da paisagem, que ainda conserva a luta de classes e a expressa, pasteurizada para fins eleitorais, entre progressistas e bolsonaristas. Para a Globo, todos os lados são potenciais consumidores e cabe à emissora equilibrar a sua posição pública de modo a tratá-los assim, como consumidores. Ou seja, as contradições de tal querela e as das partes que a compõem não poderiam ser exploradas ao modo do tom usado para isso na versão de 1988.
Coube à autoria e à direção produzir cenas que se esforçassem, não sem pouco amadorismo, para produzir hits instantâneos para a internet. Tal demanda dos departamentos comercial e de marketing desconsidera a continuidade da personalidade dos personagens, que precisam (ou deveriam) passar pelos dramas diariamente sucedidos em acordo com os traços criados para eles.
A substância da força dos conflitos entre os personagens tem a ver com a profundidade coerente da subjetividade ficcional construída. Desrespeitar esse princípio torna os dramas banais, eventuais conflitos pontuais passam a valer pela mera explosão instantânea e menos pelo novo grau de complexidade que pode determinar e enriquecer os personagens e a trama a partir de suas ocorrências.
Aliás, hoje, com a pulverização da audiência em inúmeras fontes de entretenimento audiovisual, parece que a rede Globo entende que os aspectos mais propriamente técnico-artísticos (roteiro, direção, composição de atores, cenografia etc) devem servir ao vale tudo do marketing e da venda de cotas publicitárias, num tom muito mais tosco e forçado do que sempre ocorreu com todas as novelas ao longo das décadas.
Marketing e comercial agora lutam briga de foice atrás da atenção pulverizada e dispersa; se há algum experimento do gênero atualmente, ele vem daí, desesperadoramente. Ainda sobre esse aspecto, vale ponderar que, agora, não se vende mais apenas nos intervalos comerciais (aliás, na verdade, essa restrição nunca foi rígida).
O capítulo é pensado para abrigar ações de merchandising postas sem sutileza, mas não só, toda a configuração do enredo, dos personagens e das situações é coagida a trabalhar para fazer da novela não só um gênero narrativo, ou cada vez menos isso, mas uma tática de marketing que lida antes com cabeças que racionalizam mais como consumidoras de gatilhos, pautas e produtos que como telespectadoras de uma história bem contada.
3.
Há falta de sutileza também na ânsia por inserir na novela uma concepção um tanto pedestre de pautas sociais, políticas e ideológicas atuais. Dois pequenos exemplos esclarecem tal aspecto, presentes em falas da personagem Odete Roitman. Ela, ao se referir à filha Heleninha, algumas vezes a chamava de “alcoolista”. No subtexto está o recado de que a novela não usa mais o termo “alcoólatra”, por conta do seu teor discursivo pejorativo.
No entanto, Odete, em vários momentos, sentia raiva, desprezo por Heleninha, sentimentos expressados nessas falas, estimulados também por essa condição da filha. Valeria mais a pena fazer com que o subtexto carregasse a gana da personagem para descontar na filha esses seus sentimentos, não a preocupação em dizer o conceito atual aceitável.
O mesmo raciocínio vale para outro momento de Odete, quando diz que pretende ir embora do Brasil, referindo-se ao país como “sul global”, termo da moda na geopolítica e nos debates acadêmicos, e um tanto inadequado na fala espontânea de uma granfina que quer desmerecer o seu país. Outro detalhe de pouca finura é a repetição excessiva de “Odete Roitman” na boca dos personagens e da própria, pontuando a todo momento o nome e o sobrenome, que, claro, trata-se de emblema de Vale tudo, e justamente por isso não carecia de tanta reiteração, aliás, aparentemente encomendada para edições instantâneas na internet.
Toda essa demanda de indústria cultural sempre esteve presente, mas antes havia maior espaço para lances mais autênticos nos temas e na experimentação com o gênero. A próxima vítima colocou o thriller policial acima da história de amor entre mocinhos. Mulheres apaixonadas planificou o tempo de tela da protagonista (não por falta de inteligência emocional de Manoel Carlos…) e equilibrou uma costura com vários núcleos jogando de igual para igual, algo inovador para as novelas.
O rei do gado tratou, não com uma abordagem livre de problemas, da reforma agrária. Anjo mau, nos anos 1970, levou ao ar uma mocinha imoral que, por sinal, foi obrigada pela censura a morrer no último capítulo. Roque Santeiro e Que rei sou eu? foram alegorias críticas com apostas ficcionais arrojadas em vez de amadoras.
4.
O próprio Gilberto Braga sempre tratou do conflito de classes em suas novelas, com ricos e pobres bons e maus lutando uns contra os outros e entre si, tratando sempre do tema do alpinismo social de modo a mostrar como a moral individual pode ser afetada pelos constrangimentos da pobreza numa sociedade que humilha os pobres de várias maneiras (Maria de Fátima, pelo menos a de 1988, é mais ou menos isso).
O talento de Gilberto Braga tem a ver com o fato de ele valorizar o folhetim e o melodrama, a ponto de jamais romper com eles ao operar em suas novelas a sofisticação de elementos da telenovela, dentro da medida do possível para um produto de massas, e não os de outros gêneros impostos na telenovela; seus diálogos talvez sejam um desses itens mais lembrados.
Na versão de 2025 também houve atuações medíocres de parte do elenco ocupando personagens importantes e defendidos outrora por grandes atores da TV que, paralelamente, eram grandes atores do teatro. Para a repercussão da presença de algo um tanto mítico em suas tramas, a rede Globo prezava pela construção, manutenção e escalação de grandes estrelas.
Elas emprestavam às novelas algo da mitificação de seus nomes. Figuras que hipnotizavam pelo esplendor de seu portfólio grandioso cheio de personagens anteriores marcantes, algo distante da imagem precificada do perfil com milhares de seguidores nas redes sociais. Exemplo prático do efeito da postura antiga é ver como soam os diálogos de Gilberto Braga na boca de nomes como Nathália Timberg.
O pacto ficcional está em crise para todo lado, assim como o senso crítico que o aprecia, a noção de suas regras internas, a sofisticação da elaboração formal e a criatividade que medeia, com razoável erudição, convenção e experimento. A visão literal, a coerção de ideias prescritas do universo ideológico da época e a missão da massificação obrigatória em prol dos negócios pesam em cima das composições de toda ordem e gênero. Está assim a literatura, está assim a telenovela.
É por meio de todo essa canastrice involuntária que a novela Vale tudo de 2025 ilustrou bem o Brasil contemporâneo (ou, quem sabe, canastrice necessária para a conjuntura ficcional de hoje). A decadência figurativa e metafórica, digamos assim, foi devidamente representada.
*Rogério Rufino de Oliveira é doutor em Letras pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).
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