Por ALEXANDRE ARAGÃO DE ALBUQUERQUE*
O segmento evangélico compõe uma grande massa de apoiadores do neofascismo bolsonarista
“A fé tá na mulher, a fé tá na cobra coral, num pedaço de pão” (Gilberto Gil).
“Ao fornecer a Moisés os fundamentos da Constituição de Israel – os Dez Mandamentos – Iaweh adotou uma posição política” (Jornal Mensageiro da Paz).
“Salta aos olhos que, no Brasil, alguns grupos religiosos crescem extraordinariamente, ao passo que outros estão estagnados ou mesmo diminuindo” (Paulo Siepierski).
Uma pesquisa sobre polarização política no Brasil realizada em novembro de 2022 pelo Instituto Locomotiva, a pedido da ONG Despolarize, revelou algo de muito surpreendente na cena política brasileira. Segundo a pesquisa, 18% dos brasileiros pesquisados tiveram a coragem de afirmar que são de extrema direita. Quando se verifica a lista divulgada sobre os detidos em Brasília por cometer a violência desmedida na tentativa de tomar as sedes dos Três Poderes da República, no último dia 08 de janeiro, 64,3% dos detidos nasceram entre os anos de 1960 a 1980. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), até 2050 o número de pessoas com mais de 60 triplicará no Brasil. É preciso buscar os porquês que levam a uma tão forte concentração desse segmento etário envolver-se com atos-de-vandalismo golpistas neofascistas.
Por sua vez, o jurista Lênio Streck (14/01) divulgou por tuite dados da Pesquisa Atlas na qual 31,2% de pessoas ligadas a igrejas evangélicas disseram aprovar o terror golpista do 8 de janeiro; 68% delas acreditam que o Presidente Lula perdeu a eleição; além disso, 64% dos evangélicos pesquisados apoiam um golpe militar. Streck ainda divulgou um vídeo no qual um pastor pede num ato litúrgico que Deus extermine advogados, juízes e o maldito STF (Supremo Tribunal Federal).
Junte-se aos dados acima, na virada do dia 10 para o dia 11, a postagem no facebook do ex-presidente Bolsonaro, por um período mínimo de duas horas, de um vídeo com a seguinte legenda: “Lula não foi eleito pelo povo, ele foi escolhido e eleito pelo STF e TSE”. O tempo de postagem foi o suficiente para viralizar pela rede bolsonarista instigando ainda mais a fúria golpista dos seus membros. Numa clara confirmação fática da responsabilidade política do capitão neofascista e de seus mentores militares por alimentar o espírito extremista do seu gado, ato contínuo em seus quatro anos de desgoverno, sempre procurando criar um clima que lhe permitisse golpear a democracia brasileira.
O segmento evangélico compõe uma grande massa de apoiadores do neofascismo bolsonarista. Este segmento religioso, desde os anos 1980, vem crescendo a grandes passos no Brasil, anteriormente de hegemonia católica. A entrada triunfal na política se dá com a mudança do regime ditatorial militar (1964-1985) para a democracia, com a instalação da Assembleia Nacional Constituinte em 1986. Se até aquele acontecimento histórico os evangélicos adotavam uma linha de obediência automática às autoridades militares, uma vez que em sua formação doutrinal foram condicionadas a perceber o Estado e seus agentes mandatários como expressão da vontade de Deus, aos quais deve-se obediência, porque, conforme a Bíblia, “as autoridades que existem todas foram por Ele constituídas”, logo compreenderam que a mudança da cultura política que se iniciava com a Constituinte implicava uma imediata alteração de suas atitudes diante do poder temporal. (FONSECA, André Dioney. Informação, política e fé. Revista Brasileira de História. São Paulo: v.34, n. 68, 2014).
Até então, por exemplo, para os membros da Assembleia de Deus (AD), em referência aos pobres e injustiçados socialmente, eles pregavam a salvação ensinando os empobrecidos a terem confiança em Deus. Depois de a pessoa converter-se, a própria situação financeira dela melhoraria porque “Deus cuida dos seus”. A luta travada pelos fieis da Assembleia de Deus, até então, não era a luta contra a matéria nem contra as injustiças sociais, mas contra o Príncipe das trevas e contra as hostes espirituais.
Mas com o advento da Constituinte, esse discurso mudou substancialmente. Em suas publicações ordinárias, mais precisamente no influente jornal Mensageiro da Paz, uma nova roupagem se instala. Afirma um exemplar de 1986: “Como cidadãos conscientes e principalmente como cristãos, é impossível não percebermos as mazelas sociais à nossa vida. É preciso ir mais adiante participando ativamente do processo de mudança social, buscando a escolha acertada na hora do voto. Irmão vota em irmão”. Por meio desta mudança tática, conseguiram em 1986 eleger 33 deputados federais da bancada evangélica. Era o começo da sua atuação política institucional. (Idem).
No campo neopentecostal, duas teologias irão orientar os corações e mentes dos seus afiliados: a teologia da prosperidade e a teologia do domínio. No ritual de iniciação, o fiel recebe o batismo do Espírito Santo, um revestimento de poder, evidenciado pelo dom de línguas, para poder testemunhar a boa nova, visando à rápida evangelização do mundo, apressando a volta de Jesus como juiz e rei escatológico para julgar e governar as nações. O revestimento de poder no Espírito não está voltado apenas para a evangelização, mas para realizar obras maiores do que aquelas que Jesus realizou, a saber, os ministérios de cura divina.
Nascida nos EUA, a teologia da prosperidade, centralidade da organização Igreja Universal do Reino de Deus, de Edir Macedo, tem como objetivo estabelecer uma nova cristandade por meio da atividade política. O reino de Deus já está aqui presente para usufruto dos escolhidos. E o batismo no Espírito Santo é o revestimento de poder para vencer os entraves para tal usufruto. Os entraves são ações de Satanás e de seus seguidores que devem ser perseguidos e amarrados. Sem os espíritos do mal para atrapalhar, os fiéis neopentecostais podem viver com prosperidade. Para isso o fiel não pode duvidar: a mente pode controlar a esfera espiritual que por sua vez determina a realidade material. E para demonstrar sua fé inabalável, o fiel precisa entregar dízimos e ofertas.
Contrariamente ao catolicismo onde o fiel paga a promessa somente depois de haver alcançado a graça, no neopentecostalismo o crente literalmente paga de forma antecipada como demonstração de sua fé. Acumulação de bens materiais é sinal de bênção; ser filho de Deus é sinônimo de ser materialmente vitorioso. As pessoas são desafiadas a tornarem-se ricas, legitimando as riquezas existentes bem como as estruturas sociais causadoras do empobrecimento populacional. Para os neopentecostais, os Demônios são os verdadeiros causadores de todos os males e sofrimentos. Por causa deles o Brasil não é um país mais desenvolvido. (SIEPIERSKI, Paulo D. Pós-pentecostalismo e Política no Brasil. São Leopoldo – RS: Estudos Teológicos, v.37, n.1, 1997).
Também a teologia do domínio tem origem nos EUA, nos anos 1970, buscando a reconstrução da teocracia, oferecendo uma cosmovisão cristã para a obtenção do poder dos evangélicos nas esferas públicas para o domínio total de Deus. A ideia central desta corrente teológica é a de Guerra Espiritual, a luta contra o inimigo, a partir da leitura do Antigo Testamento, que pode atuar em diversas áreas da vida. O evangélico, portanto, não deve evitar o mundo e o mal que ele representa, mas deve estar no mundo de forma ativa, posicionando-se em guerra contra esse mal, e para isso é preciso ocupar espaços de poder.
O fundamento da guerra espiritual consiste na crença da existência de demônios territoriais e hereditários, que agem sobre áreas geográficas e sobre as pessoas em geral e em suas famílias. Esses demônios seriam os responsáveis por todos os males do mundo, inclusive a desigualdade e a injustiça social. Tal doutrina induz os fiéis neopentecostais a acreditarem que os responsáveis pelos males da sociedade brasileira são as religiões concorrentes e seus seguidores. Assim, a solução dos problemas brasileiros estaria na eleição de fiéis neopentecostais para os cargos públicos, em seus postos eles neutralizariam as ações dos demônios, trazendo prosperidade para todo o país. Mediante esta doutrina, o neopentecostalismo vai entrando e se firmando no cenário político nacional. Somente os eleitos de Deus devem ocupar os postos-chaves da nação, utilizando-se de todos os meios, principalmente comunicacionais, como concessões de rádio e televisão, para banir os tais demônios e seus discípulos.
Não é à toa que essas teologias políticas da prosperidade e do domínio tenham nascido nos EUA. O projeto imperialista unipolar estadunidense está ligado intrinsecamente a uma antiga visão teológica de que eles são os enviados de Deus para transformar os bárbaros em civilizados (Destino-Manifesto), numa guerra do bem contra o mal, que atravessa não só a religião, mas o poder militar, a educação, a cultura, a política, para atingir o espectro total.
Acumular riqueza é um dever nessa tradição protestante. Nesta visão, a pobreza aparece como consequência da falta de fé. A desarticulação da Teologia da Libertação, para além dos limites da esquerda organizada, foi consequência desse projeto imperialista que enxergou na Teologia da Libertação uma ameaça ao campo subjetivo e que colocava em risco os avanços das políticas neoliberais na América Latina. Assim, o neoliberalismo naturaliza os acontecimentos em que o pobre e a pobreza são justificados por ser uma situação de sorte ou azar na vida. E as Igrejas fundamentalistas corroboram essa visão conectando-a com a ideia de falta de fé ou dedicação do crente. Para os neopentecostais, a Teologia da Libertação, com seus militantes, é a ponta de lança do Anticristo. (Brasil de Fato. Fundamentalismo e imperialismo na América Latina. Dossiê 59. 19 de dezembro de 2022).
A riqueza material proclamada pelos neopentecostais, em sua busca de construir uma nova cristandade, é bênção divina, não possui causas políticas e econômicas estruturais. Segundo a Oxfam, em seu documento “Desigualdade Mata”, os dez capitalistas mais ricos dobraram sua acumulação durante a crise sanitária global: a cada 26 horas da pandemia, apenas um capitalista entrava para o ranking de novos bilionários, enquanto simultaneamente a renda de 99% das pessoas no mundo despencou e mais de 160 milhões de indivíduos foram empurrados para a pobreza.
Maquiavel, leitura obrigatória por ser sempre atual, já havia detectado, 500 anos atrás, a força do poder simbólico-ideológico quando, em seus Discursos, apontou para a dominação da religião na vida dos súditos dos principados. O grande embate do florentino não era com os clássicos, mas com seus contemporâneos, com o moralismo e a pregação religiosa, por haver constatado em sua pesquisa empírica que os mandamentos de “não roubar”, “não mentir”, “não usar o santo nome de Deus em vão”, teriam validade apenas para a população: todos eram descumpridos pelos detentores do poder temporal e eclesiástico. Portanto, o povo precisava abrir os olhos tampados pelos sistemas ideológicos-religiosos de então para desvendar o que estava por debaixo do pano.
Palavras, imagens e sons realizam pouco a não ser que sejam munições de um plano minunciosamente arquitetado e de métodos cuidadosamente organizados para que as ideias transmitidas se tornem parte integrante da vida das populações. Quando o público é convencido da racionalidade de uma ideia, ele entra em ação. Ação esta que é sugerida pela própria ideia religiosa, política ou social. Mas esses resultados não acontecem do nada: eles são obtidos pela fabricação de consensos. (BERNAYS, Edward. Propaganda. 1928. Acesso: http://www.whale.to/b/bernays.pdf).
Como anota Michel Foucault, em Vigiar e punir, o poder é exercido como disputa e luta. Onde há poder, há resistência. Não existe propriamente o lugar de resistência, mas pontos móveis e transitórios que também se distribuem por toda a estrutura social. A política é luta, afrontamento, relação de força, situação estratégica e ideológica. Não é um lugar que se ocupa, nem um objeto que se possui. Ela se exerce, se disputa. Nessa disputa, ou se ganha ou se perde. E este é o desafio que está posto para nós nos próximos anos: distribuir democrática e sustentavelmente a riqueza mundial ou continuar o acelerado acúmulo individualista fundamentalista neoliberal destruidor da humanidade e da natureza.
*Alexandre Aragão de Albuquerque é mestre em Políticas públicas e sociedade pela Universidade Estadual do Ceará (UECE).
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