Por REMY J. FONTANA*
Comentário sobre o livro de Gabriel Garcia Márquez
“Era ainda jovem demais para saber que a memória do coração elimina as más lembranças e enaltece as boas e que graças a este artifício conseguimos suportar o passado”. (Gabriel Garcia Márquez)
No decorrer desta pandemia lembrei, por óbvias ressonâncias, temas e contextos, de alguns livros: Morte em Veneza, Thomas Mann (1912); A peste, Albert Camus; Decamerão, Boccaccio (1348-53); Um diário do ano da peste, Daniel Defoe (1722); Nêmesis, Philip Roth (2010); e, mais próximo a nós pelo tempo, pela geografia e pela cultura, O amor nos tempos do cólera, de Gabriel Garcia Márquez (1985), sobre o qual me estenderei um pouco além das breves linhas que dedico aos outros.
Morte em Veneza
Em uma reflexão crepuscular sobre a ambiguidade moral da arte e do belo, a narrativa de Mann tem como pano de fundo a iminência de uma epidemia do cólera na cidade, que as autoridades tentam ocultar para não prejudicar o turismo. Gustav von Aschenbach, o principal personagem, autor consagrado, exercita seu amor platônico pelo jovem Tadzio, cuja imagem de beleza parece-lhe a demonstração do ideal sempre perseguido, ali finalmente encontrado, a lhe despertar frêmitos de uma emoção dolorosa, “que a linguagem pode apenas louvar, mas não reproduzir, a beleza que toca os sentidos.”
A peste
Camus relata uma epidemia na cidade argelina de Orã, que alguns críticos veem como um recurso alegórico da França ocupada pelos nazistas. Pode também ser lida para representar a propensão dos homens em direção ao caos, ao mal, ainda que em última instância permaneçam bons. Uma impactante narrativa de horror sem remissão, de sobrevivência e resiliência, e das maneiras pelas quais a humanidade enfrenta a morte.
Decamerão
Consiste em um conjunto de cem novelas – entre picantes e galantes – narradas por jovens que tentam evitar os perigos de uma epidemia de peste bubônica, buscando a segurança do ar livre numa propriedade agrícola perto de Florença. Ali, durante dez dias, contam histórias, que segundo o autor, serviriam de consolo e distração às pessoas infelizes no amor. A ideia central do Decamerão é que a conduta humana é ditada pela natureza, e que sufocar sentimentos é desvirtuar a própria vida.
Na primeira linha do “Proêmio” de sua obra, Boccaccio faz uma observação que caberia bem em meio a nossa própria pandemia. Escreve, “É próprio do homem ter compaixão dos aflitos. Tal sentimento fica bem a qualquer um”. Poderíamos acrescentar, atualizando este dito, que este nobre sentimento, lamentavelmente, não se aplica ao pavoroso governante de nosso país, que em seu delírio autoritário não se constrange em tripudiar sobre tudo e sobre todos que estão angustiados com a crise sanitária do Covid19, nem demonstra respeito aos que, em decorrência da pandemia, e em grande parte por causa de sua incúria, perderam a vida.
Nêmesis
A trama do livro de Philip Roth se passa durante a epidemia de pólio que assolou os Estados Unidos durante o verão de 1941, tendo as atrocidades da II Guerra Mundial como pano de fundo. Roth examina alguns temas centrais da pestilência: medo, pânico, culpa, perplexidade, sofrimento e dor. O personagem principal, um professor de escola primária, também enfrenta uma crise espiritual, questionando a si próprio por que Deus permite que crianças inocentes morram de pólio. Roth restaura o sentido clássico da palavra “nêmesis”, como a deusa da vingança e do equilíbrio cósmico. Neste livro a morte aparece como algo que os seres humanos se esforçam em vão para contornar. É uma condição de doença e imundície que os seres humanos compartilham entre si e com a natureza, que alguns com arrogância procuram colocar-se além de seus inevitáveis efeitos e consequências.
Um diário do ano da peste
Defoe relata as experiências de um homem no ano de 1665, em que a praga bubônica atingiu Londres no que ficou conhecido como a Grande Praga de Londres. O autor descreve a epidemia com tão admirável e original realismo que por muitos anos debateu-se se seu relato deveria ser encarado como uma descrição histórica ou obra de ficção, ainda que baseada em episódios reais.
É um livro que contribui para nos dar uma perspectiva útil sobre nossa crise atual. Também é uma fonte de admiração há séculos, com suas histórias de “a face de Londres agora realmente estranhamente alterada”, onde, durante 18 meses em 1665 e 1666, a cidade perdeu 100.000 pessoas – quase um quarto da sua população.
O amor nos tempos do cólera
O que me levou a me debruçar mais atentamente sobre o livro de Garcia Márquez não foi a referência virótica, que por sinal aparece apenas tangencial e esparsamente, mas uma observação en passant de David Harvey – importante estudioso de Marx –, que em meio a suas exposições de crítica à economia política se referiu a O amor nos tempos do cólera como os Grundrisse do autor colombiano.
Para os menos familiarizados com a literatura marxista cabe observar que Grundrisse é um manuscrito de Marx de 1858, que serviu de rascunho para a elaboração do O capital, tendo sido publicado apenas em 1941 (a edição brasileira é de 2011).
Fiquei um tanto intrigado com esta associação feita por Harvey entre obras tão díspares e mais ainda por qual seria a relação de implicação e encadeamento entre os dois textos, de cada um de seus respectivos autores.
Só consegui desvendar esta pequena charada, se é que o fiz com propriedade, ao ver um documentário sobre Garcia Márquez, com o título de Gabo, que era o seu apelido. Um dos comentários que ali é feito sobre o Nobel da Literatura de 1982, é que o Amor nos tempos do cólera foi como que uma preparação para a obra maior (assim vista por muitos) Cem anos de solidão.
Desta forma teríamos duas obras de dois autores que foram como que um rascunho, um pressuposto, uma antecipação para a obra subsequente, maior, mais bem acabada, mais desenvolvida.
Claro que isto é apenas um chiste literário, especialmente no caso do Amor nos tempos do cólera, uma obra admirável por seus próprios méritos. Aliás, o próprio autor, diferentemente dos críticos literários e da maioria dos seus leitores não considera Cem anos de solidão como a maior de suas realizações. Ele disse: “creo, contra el criterio de todos los críticos, que el mejor libro que escribí, si escribí una obra maestra, esta obra maestra es El coronel no tiene quien le escriba”; livro de 1961, acrescentando que teve que escrever Cem anos de solidão, para que as pessoas lessem o seu livro preferido.
No entanto, certos comentadores de Márquez insistem em traçar paralelos, ainda que de inversão, ou apontar implicações, mesmo que sejam apenas pelo tema preponderante, entre aquelas duas obras, como se O Amor nos tempos do cólera fosse como que a cara-metade dos Cem anos de solidão. Este seria um romance em que todas as forças do amor, do sexo e da paixão não bastassem para evitar a destruição do mundo. Enquanto em O amor nos tempos do cólera teríamos um amor triunfante, que consegue o que se propõe, em última instância nos redimir das dores e angústias do mundo, nos salvar.
Para além do enredo, uma história formidável de amor, de um amor contrariado que vence todos os obstáculos, ambientada na costa caribenha da Colômbia, país permanentemente conflagrado por guerras civis, na passagem do século XIX para o XX, em meio a epidemias crônicas, deparamo-nos com um texto que é quase um tratado deste entranhado sentimento, que desde que se aconchega no lado esquerdo do peito, desafia sossegos, molda personalidades, lança indivíduos na voragem destemperada de destinos incertos, tanto lhes concedendo as primícias de uma epifania, quanto os desgraçando na miséria dos mais aflitivos desatinos.
Acompanhamos os personagens ao longo de um ciclo inteiro de vida, em que cada etapa, cada atitude, cada emoção nos são desvendadas em suas sutilezas, em suas profundezas, em seu maravilhamento ou nos seus tormentos.
Florentino Ariza, o principal personagem, é pródigo no exercício e na constância dos predicados que, contra tudo e contra todos, torna possível a conquista de sua pretendida, Fermina Daza, sem esmorecer diante de um tempo que corre à frente de suas chances de conquista, que parece tornar anacrônicas suas estratégias de sedução, tal a demora, medida em várias décadas, que disciplinada e metodicamente espera para realizar o sonho do encontro de “body and soul” com sua amada. Persistência, é aqui a sua crucial disposição de ânimo.
A seguir, mesmo que não formulado, ou consciente, a certeza paciente e conformada de que em algum momento, em qualquer tempo, mais cedo, ou mesmo muito mais tarde o amor pode acontecer, transcendendo idades e etapas de vida, ainda que esta esteja beirando as franjas da velhice.
O verbo acontecer é um tempo infinitivo enganoso em questões amorosas, pois o amor de fato não acontece, diferentemente de algumas concepções românticas. Mais propriamente, como nas várias instâncias da vida e da sociedade, é algo a ser construído, cultivado, demandando empenhos, estratégias, audácia e um bom grau de investimento de energias emocionais. Nestes quesitos nosso personagem era exemplar.
As peripécias do cultivo deste amor platônico mantêm viva, ora apaziguada ora em efervescente tumulto, a alma obsedada de Florentino, em sua ardente e imperecível paixão. Tudo o que fazia, como preenchia seu cotidiano em suas atividades, assim como em suas várias relações, fossem elas vagamente sentimentais ou de parcerias sexuais fugazes ou até relativamente estáveis e razoavelmente satisfatórias, e acima de tudo como antecipava seu futuro, planejando-o em detalhes formavam um grande conjunto cujo centro, em torno do qual girava sua vida, era não apenas a imagem de Fermina Daza, mas a convicção de que em algum momento ela seria sua.
No cultivo deste sonho, em sua busca incansável, orientou todos os passos de sua vida, tornou-se bem sucedido profissionalmente, construiu reputação social, esmerou-se nos cuidados com sua aparência pessoal, apurou seus méritos e talentos, tornando-se enfim, segundo suas próprias fantasias, uma figura digna e merecedora da consideração e do amor de sua eterna pretendida.
A inabalável certeza de que chegaria o momento tão ansiado era afirmada contra todos os dados de sua realidade, em dessintonia com os valores e costumes preponderantes, e mais ainda infirmada pela condição de casada, e muito bem casada, de Fermina Daza com uma ilustre sumidade de alta estirpe, o doutor Juvenal Urbino. O nosso herói sabe que a melhor e quase única chance de realizar tamanha ambição de seu inquieto coração é aguardar a morte do marido. Sendo este, médico, e gozando de boa saúde, só um acidente poderia ir ao encontro de tão desvairada e algo sinistra expectativa. No entanto como a morte não se anuncia apenas pela decrepitude biológica, mas também surpreende pelos azares e acidentes prosaicos da vida cotidiana, de um tombo, uma escorregadela e que tais, eis que chega este momento, porém muitíssimos anos adiante na vida dos dois personagens.
Tarefa ulterior, de grande complexidade e enormes dificuldades será conquistar uma viúva, que a esta altura da vida e condição se sentia não só distante mas invulnerável aos jogos e artimanhas da sedução, que nem sequer lhe passavam pela cabeça, a não ser aqueles e aquelas que a tinham levado ao seu próprio casamento, e que mesmo estes e estas eram pouco mais que nebulosas meio soterradas nas profundezas de sua memória afetiva.
Fermina Daza, é uma personagem encantadora, cheia de vida e de atrativos que percorre seu caminho sabendo o que quer, bem assentada em seus arranjos domésticos e conjugais – com eventuais e inescapáveis atritos e tensões -, mas celebra a vida nos termos em que se a tem por bem realizada. Bem adiante de seu percurso, quando fica viúva, quando parece acomodar-se com o que seria convencionalmente o esgotamento da experiência amorosa, substituída apenas por uma memória afetiva que, imperceptivelmente, vai se desvanecendo, eis que irrompe o destemor do seu pretendente da juventude, que ela havia preterido, sem dó nem piedade, em tempos idos. Diante desta nova investida, que se dá em momento mais que inoportuno, Fermina o rechaça uma vez mais, agora com o sentimento de honra e decoro ferido por sua condição de viúva de um morto que ainda não havia descido à sepultura, não poupando neste repúdio, raiva e fúria, impropérios e destemperos.
Cortejar uma mulher com tal perfil e semelhante condição foi um exercício de quase perfeição cavalheiresca e de sabedoria, a que se empenhou tempos adiante Florentino Ariza, confortando-a em momento de fragilidade e solidão pela perda do marido, consolando-a da tristeza, fazendo-a contemplar a vida novamente com as luzes da esperança e com a claridade de possíveis novos amanheceres.
Sua couraça emocional, cuja suposta inexpugnabilidade parecia assentar-se em sua condição de viúva, em sua idade provecta, em costumes rígidos, intolerantes e preconceituosos e, não menos importante, no antigo e arraigado desprezo pelo insistente pretendente, lentamente começa a ceder, a ser flanqueada pelas artimanhas de uma renovada emoção.
Ao abrir-se, em seu ritmo cauteloso e nos termos de uma respeitabilidade de senhora da alta sociedade, permitindo-se uma nova experiência amorosa, valida as incontáveis e surpreendentes dimensões do amor, as oportunidades de sua recriação, de seus deslocamentos, de sua potência e de suas possibilidades.
Ao prosseguir nesta direção, tateando passos, auscultando e ao mesmo tempo tensionando suas mais arraigadas convicções, suas reservas, suas contenções, seus preconceitos, seus temores, vai gradativamente delineando os contornos de um novo possível, aquele expresso pela compreensão ou aceitação de que não há prazo de validade a vencer, no que toca aos assuntos do coração.
Ao término deste percurso, quando bem sucedido, não há como não dar-se conta de que aos agraciados protagonistas, como é aqui o caso, é assegurado a new lease of life, isto é, a vida continua plena, reformatada por nova configuração, sob os influxos de energias retemperadas, ao abrigo de uma maturidade apaziguada, menos propensa às oscilações e intemperanças do amor em suas primeiras incidências e florações.
Para isto, aqui e em situações equivalentes, os personagens de ficção, e certamente as pessoas reais, para identificar uma oportunidade amorosa, esculpi-la como um objeto alcançável, viabilizá-la como um encontro de corações e dar-lhe uma estabilidade, enquanto dure, para lembrar o poetinha, é preciso romper obstáculos, primeiro os internos de acabrunhamento, timidez, inseguranças e outros fantasmas mais a contê-los, à limitá-los em suas estratégias de conquista; depois há que enfrentar os óbices externos, a começar pela clássica e usual interdição paterna/materna, que sempre qualificam pretendentes como não merecedores de seus rebentos, a seguir contornar a pletora de valores, códigos e moralidades pouco facilitadoras, e por último contar que os azares da corte, da abordagem ou do namoro não sejam tão desastrados que ponham tudo a perder. É certo que este é um quadro um tanto superado pela abertura dos costumes, arejamento dos valores e maior autonomia pessoal das várias últimas décadas. Mas o histórico dos encontros e desencontros se remete a alguns destes parâmetros e pressupostos.
No caso aqui comentado, em seu tempo e circunstâncias, os personagens tiveram que laborar com ímpeto, um, com prudências e cautelas, outro, para chegar a bom termo quanto à resolução do imbróglio amoroso que os enredava, após uma longuíssima jornada vida adentro.
Este improvável reencontro de namorados da adolescência, tornados (ia escrevendo, transfigurados) em casal quando estavam com uma respeitável idade, ela com 72, ele com 76 anos, que segundo convenções ou tradições nada amistosas com tais sentimentos em idade avançada, recebe do autor um tratamento de fina sensibilidade, sem abdicar de descrevê-lo em detalhes de sua íntima realização. Fica, pois, enunciado que as peripécias do amor adulto tardio também reivindicam uma intimidade que vai além dos ternos olhares, dos gestos meigos, das delicadas atenções, do pegar na mão ou de toques sutis em zonas seguras e recatadas.
Certamente gestos e atitudes tais devem ser valorizados e bem vindos em todas as idades, mas aos mais velhos não lhes bastam como espólio sentimental dos tempos pretéritos. Também lhes cabe, como ilustram os protagonistas de Gabo, o amor pleno, aquele que se exerce em todos âmbitos da paixão amorosa, das etéreas nebulosas onde perambulam as almas gêmeas às sofreguidões vorazes de sua incidência lasciva, de sua naturalidade carnal, de sua alegre espontaneidade.
Não trato aqui, nesta pequena nota literária, de outros tantos personagens que circulam à volta dos dois principais, alguns com marcantes características, cuja presença e ação nos espaços privados ou mesmo públicos em que se movem todos, determinam, em escalas e graus variados, o que vai sucedendo a Florentino e Fermina. São tantas as ações, movimentos e sentimentos investigados e descritos com nuances, com ênfases ou precisão que não há como não se deixar tocar, se reconhecer ou se identificar com a sorte ou os azares de seus portadores.
Caracterizar esta obra como uma história de amor, dado seu título e trama principal é uma indicação apropriada, comum a ficções deste gênero, mas insuficiente ou mesmo parcialmente enganosa. Convencionalmente dizer que um livro conta uma história de amor é um reducionismo empobrecedor, um simplismo prosaico, uma comodidade de linguagem e, em certa medida, uma desconsideração ao autor.
Destacar este sentimento como centro quase exclusivo de uma narrativa, seja pelo próprio autor ao propor um título, seja pelas astúcias editoriais, marketing de livreiros ou percepção dos leitores, estreita o campo de apreensão da riqueza, quanto a forma e conteúdo, do se lerá, define um ângulo de visão que conduzirá o olhar, gera uma expectativa e uma predisposição de suscitar tais emoções e não outras em detrimento do vasto horizonte, amplas trilhas e situações em que se movem personagens, a partir de particulares condições, contextos diversos, circunstâncias, movimentos e contradições que conformam seu destino, que conferem sentido às suas vidas, cada uma das vidas, em suas diferentes fases, em suas ambiguidades constitutivas, em suas complexas existências.
Nesta obra temos um retrato de um período, de uma sociedade, de sua cultura, da específica forma de percepção da presença social de uma mulher, em grande contraste daquela da do homem, resumida por John Berger (Modos de ver) pela fórmula “Os homens atuam e as mulheres aparecem”, com particular incidência e inflexão à época. Mostra-se a configuração das vilas e cidades, uma em especial, no tempo de sua decadência, de suas mudanças, diante de um mundo novo que ia surgindo, e então em transição, em que muitas das novidades tecnológicas e de desenvolvimento econômico abriam seu caminho não apenas sobre os escombros do que ia ficando para trás, mas já prenunciando o que seria uma marca funesta do novo século, dizimando flora, extinguindo espécies, secando rios, devastando florestas. Tudo o que veio desembocando, em todas latitudes, com inconsciência, ao longo do século na crise climática calamitosa em que nos vemos agora mergulhados.
Tanto no que tange aos personagens, às suas condições e circunstâncias e a sua trajetória, quanto ao que vemos descrito como transformações sócio-históricas, ultrapassam os limites em que se movem uns e se transformam outras, para alçar-se à universalidade que nos faz sintonizar com a narrativa e a nos inserir na trama e no drama de uma história em movimento em que também somos figurantes.
Contra o usual final trágico/dramático dos bons romances, Garcia Márquez aqui assumiu o risco de um final feliz. Diferentemente de outras obras suas, afirmou o direito, a possibilidade, e por que não, a viabilidade da felicidade vez por outra descer sobre nós; de criar uma fábula, “uma utopia de vida, onde o amor de fato seja verdadeiro e a felicidade possível”.
Nada contra, até porque neste caso, não compromete em nada a beleza, a densidade, o encanto, a complexidade dos personagens e do seu enredo. Ao fabular, investigar sentimentos, descrever cenários e situações, tudo o que forma uma narrativa literária, se for bem realizada, o autor não apenas nos entretém ou sensibiliza com o que sucede com seus personagens, mas, mais importante, nos confere um roteiro para explorarmos nosso próprio interior, desvendarmos nossos recursos, mapearmos nossas possibilidades, aguçando percepções, nos instigando a ser o que poderemos ser para além dos assentamentos cristalizados na rotina ou nas mesmices de uma vida que sempre pode ser outra, mais cultivada, mais instigante e venturosa. Nesta obra, Garcia Márquez, penso, cumpre com estilo, elegância e precisão esta nobre função da arte da escrita.
Capitulando um pouco diante do argumento acima, aquele em que sugeri matizar a ênfase usual do que se designa como “uma história de amor” de determinados livros, apelo à condescendência dos que me leem para propor um cumprimento, um viva, uma saudação.
Por todo o tenaz empenho imorredouro de seu personagem principal, que esperou 51 anos, 9 meses e 4 dias para reunir-se a sua amada, acho que o autor ficaria bem contente se levantarmos um brinde a Florentino Ariza! Certamente, com igual empatia e reconhecimento podemos estender a saudação a Fermina Daza, ou ainda melhor, ao casal.
Salute!
*Remy J. Fontana é professor aposentado do Departamento de Sociologia e Ciência Política da UFSC.
Referência
Gabriel Garcia Marquez. O amor nos tempos do cólera. Rio de Janeiro, Record, 2005 (https://amzn.to/3KLHzMD).