Por MARIA CARAMEZ CARLOTTO*
Uma resposta a dois textos de João dos Reis Silva Júnior
1.
João dos Reis Silva Júnior publicou, recentemente, no site A Terra é Redonda, dois textos sobre as eleições do ANDES-SN.
O primeiro, intitulado “Notas sobre o movimento docente” saiu durante as eleições do nosso sindicato nacional. Por várias razões, inclusive por estar integralmente dedicada à campanha da Chapa 4 – Oposição para Renovar o ANDES-SN –, não tive como responder à época. O segundo chamado “O ANDES-SN sob o domínio do capital fictício” saiu ontem, dia 27 de maio. Como se trata de um mesmo conjunto de argumentos, respondo os dois juntos neste breve texto.
Começo por uma anedota, mas que ajuda a entender a raiz da minha discordância com o autor: recebi o segundo texto de João dos Reis quando finalizava uma proposta de texto em que fazia uma avaliação rápida das medidas adotadas pelo Governo Federal, de recomposição parcial do orçamento das IFES, à luz dos embates que existem, hoje, em torno da importância e do sentido da universidade pública.
Ou seja, no exato momento em que estávamos todos atentos e atuantes às/nas disputas pelo orçamento público, João dos Reis Silva Júnior discorria sob a captura da universidade e do movimento docente pelo “capital fictício” sem falar sobre o tema. Essa captura sem dúvida que se manifesta em práticas cotidianas como ele aponta, mas é difícil negar que sua expressão mais dramática é o estrangulamento do financiamento público à educação superior.
Eis aqui a raiz da minha divergência: o texto de João dos Reis esboça uma crítica aparentemente radical à situação da universidade pública sob a dominância do capital fictício/financeiro, apontando a captura de tudo e todos por essa “lógica”, mas o faz prescindindo completamente de mediações.
No esquema de João dos Reis Silva Júnior não existe Estado, não existe disputa pelo orçamento público, não existe Arcabouço Fiscal, não existe o estancamento do processo de expansão das universidades públicas, não existe a transformação radical do seu alunado por meio da sua democratização interna, não existem as reações elitistas a esses processos, sejam elas de roupagem neoliberal ou negacionista/neofascista, não existem as tentativas de resistência a esses ataques em movimentos dos mais variados tipos.
O que existe, para o autor, é apenas o que ele descreve como “a lógica do capital fictício” (…) “uma forma social de valorização sem substância produtiva, alimentada pela financeirização do fundo público, pela competição reputacional e pela transformação do conhecimento em ativo intangível”. Por meio de quais processos de disputa essa lógica se impõe segundo João dos Reis Silva Júnior? Não sabemos.
2.
Por tudo isso, no texto de João dos Reis, apesar de haver considerações sobre o quadro político, não existe política no sentido forte da palavra. E, justamente por isso, apesar de parecer uma crítica radical contra tudo e contra todos, termina por contribuir para a manutenção do status quo, ou, se quisermos, para a desmobilização que ele mesmo condena. Não por acaso, apesar de toda a crítica ao ANDES-SN, o texto foi divulgado com certo entusiasmo por apoiadores da atual diretoria ou, se quisermos, pelo campo que orbita em torno do coletivo ANDES pela base.
É verdade que João dos Reis corretamente identifica que “as eleições de maio de 2025 para a diretoria do ANDES-SN foram marcadas por forte fragmentação política, baixa participação da base”. Mas ele vai além. Na sequência, afirma que a eleição foi marcada também pela “pela ausência de uma proposta de ruptura com a financeirização da universidade pública brasileira”.
Na minha opinião, João dos Reis pode discordar da radicalidade, da acuidade ou até mesmo da pertinência das propostas de ruptura feitas, mas todas as chapas, sem exceção, tematizaram os efeitos nefastos do neoliberalismo sobre a universidade pública. Eu diria, inclusive, que ao lado do debate sobre como resistir à ameaça da extrema-direita, esse foi o grande tema da eleição. Podemos ser acusados de erro nesse terreno, mas não de silêncio ou omissão.
Assim, nesse ponto do texto como em outros, João dos Reis parece falar de uma universidade pública, de um ANDES-SN e de uma eleição que não reconhecemos porque carece das mediações. Por isso, inclusive, João dos Reis passa por cima dos embates políticos mais fundamentais do movimento docente atual.
Nesse sentido, o ponto mais problemático do diagnóstico de João dos Reis Silva Júnior, que aparece nos dois textos, gira em torno da avaliação da última eleição para o ANDES-SN. Antes de vaticinar que “O processo eleitoral expôs um sindicato atravessado por disputas internas, mas incapaz de formular uma estratégia coletiva frente à crise profunda da educação superior”, João dos Reis Silva Júnior afirma que “Quatro chapas foram homologadas, expressando diferentes correntes e visões internas, mas nenhuma delas apresentou uma crítica estrutural ao modelo de universidade sob o domínio do capital fictício”.
3.
A afirmação acima reúne pelo menos duas grandes imprecisões.
Primeiro, não foram quatro (4) chapas homologadas, mas apenas três (3). Uma delas, a chapa 4, não teve sua inscrição homologada e conquistou na Justiça o direito de concorrer, entrando efetivamente na eleição apenas nos últimos dias da campanha e, mesmo assim, ficando em segundo lugar. Parece um detalhe menor, não fosse, esse, o grande fato político desta eleição que, por isso mesmo, foi diferente de todas as outras.
Esse equívoco já mostra a imprecisão da segunda afirmação: as quatro chapas não expressavam cada uma delas “diferentes correntes e visões internas”. Como ficou claro ao longo da eleição, havia diferenças muito pontuais entre as chapas 1, 2 e 3 que compartilhavam, de fundo, a mesma concepção sindical.
Na nossa opinião, uma concepção burocrática e excludente, cristalizada na decisão de todas as demais chapas, juntas, excluírem da eleição a segunda força política do sindicato, principal corrente de oposição e por razões formais menores tal como reconheceu a própria Justiça do Trabalho, ao afirmar: “a exclusão de uma chapa inteira por vícios documentais sanáveis (…) mostra-se desproporcional e contrária ao objetivo maior de garantir a pluralidade e a democracia no processo eleitoral sindical (…) A autonomia sindical (art. 8o, I, CF) não é absoluta e não pode servir de escudo para decisões arbitrárias, discriminatórias ou que violem princípios fundamentais do próprio ordenamento jurídico e da democracia interna da entidade”.
Por aí se depreende porque, de fato, as eleições são esvaziadas e a participação, realmente diminuta. Se a maior força de oposição à atual diretoria do ANDES-SN precisou recorrer à Justiça do Trabalho para garantir seu direito de participação nas eleições do sindicato, não é de se esperar uma participação massiva do conjunto da categoria.
O resultado de anos dessa concepção antidemocrática já sabemos: de 350 mil docentes da base, menos de 70 mil são filiados e, desses, mesmos de 15 mil votam na eleição – número que vem caindo. Importante lembrar que no campo das “alternativas sindicais” ao ANDES-SN, o cenário é ainda pior e a carência de democracia e legitimidade ainda mais brutal.
Daí porque, embora eu concorde com a preocupação de João dos Reis em relação à nossa incapacidade, como movimento docente, de resistir de maneira mais substancial aos ataques do neoliberalismo (que ele denomina de capital fictício) e do neofascismo (que ele praticamente não nomeia), discordo que o problema esteja apenas na força do capital fictício ou na fragilidade dos militantes diversos do movimento docente que capitulam de maneira acrítica frente a essa “forma social irresistível”, sendo incapazes de formular uma “crítica estrutural” a esse processo.
4.
O grande problema está na maneira como o ANDES-SN vem sendo dirigido nos últimos 25 anos: a partir de críticas abstratas que dialogam pouco ou quase nada com os embates concretos e cotidianos da categoria contra a “lógica geral do capital” que constrange a universidade e o trabalho acadêmico docente.
Nesse ponto, apesar de toda a crítica ao ANDES-SN, a perspectiva de João dos Reis tem muita afinidade com a visão hegemônica da sua direção de décadas: em nome de uma crítica aparentemente radical, se abstrai todas as disputas concretas, abrindo mão, assim, de fazer política de verdade.
Por isso é tão simbólico que o texto de João dos Reis Silva Júnior tenha saído do dia do anúncio da recomposição orçamentária do governo federal, representando uma grande vitória concreta dos que defenderam o orçamento público e, sobre isso, nada dizer. Aliás, vale notar que o próprio ANDES-SN só se pronunciou oficialmente sobre os cortes tardiamente, na circular no. 229 de 23 de maio, quando já estava anunciada a reunião de Lula com os reitores para o anúncio da recomposição parcial do orçamento.
Enquanto nos furtarmos, como sindicato, de incidir nas disputas cotidianas da universidade, formulando pautas concretas que sejam capazes de dialogar com a experiência universitária da maioria dos professores e professoras, construindo mediações entre essa experiência de cada um/a e a lógica geral do capitalismo na sua fase crítica atual, seguiremos incapazes de construir um sindicato de massas, um sindicato de maioria, um sindicato necessário para enfrentar os desafios que se colocam diante da universidade pública hoje.
Isso sim é ser capaz de “formular uma estratégia coletiva frente à crise profunda da educação superior”. Nisso, como oposição e segunda força do ANDES-SN, nós da oposição democrática, estamos apostando.
*Maria Caramez Carlotto é professora do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC e presidenta da ADUFABC. Autora, entre outros livros, de Veredas da mudança na ciência brasileira (Editora 34) [https://amzn.to/3u2HI8X]
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