O caso Ricardo Jardim

Imagem: Ye Jinghan
image_pdf

Por KETRIM BUENO DE FRAGA*

O verdadeiro horror não reside no monstro individual, mas no sistema que, ao priorizar o encarceramento massivo em detrimento da real avaliação e recuperação, inevitavelmente devolve à sociedade sua própria violência, agora potencializada

1.

Nas últimas semanas, Porto Alegre foi palco de um crime que chocou a opinião pública. Partes de um corpo foram encontradas na zona leste da cidade e, dias depois, o tronco de uma vítima foi localizado dentro de uma mala na rodoviária. As investigações logo confirmaram que os restos pertenciam à mesma pessoa.

Com a análise das imagens das câmeras de segurança, identificou-se o suspeito: Ricardo Jardim, condenado a mais de 27 anos de reclusão em regime fechado por ter assassinado a própria mãe, com 13 facadas, e ocultado o cadáver dentro de um móvel no apartamento em que viviam, encontrava-se atualmente em regime semiaberto.

O corpo encontrado na mala, ao que tudo indica, pertence à sua namorada, uma mulher com cerca de 50 anos. Mais um crime horrendo, somado a outro que já ultrapassava a nossa capacidade de compreensão. Como costuma ocorrer em situações de tamanha brutalidade, a reação foi imediata: choque, indignação e a busca por um culpado. E, como também já é de praxe, a culpa recaiu sobre o Judiciário. Afinal, como alguém condenado por matar a própria mãe poderia estar em liberdade?

Ocorre que a Vara de Execuções Criminais de Porto Alegre apenas aplicou a lei. A pena no Brasil não é perpétua, e esse é um ponto que precisa ser constantemente lembrado: pessoas presas, mais cedo ou mais tarde, retornam ao convívio social. Ricardo Jardim cumpriu anos em regime fechado, trabalhou na cozinha da antiga Cadeia Pública de Porto Alegre, não registrou faltas graves e, em dezembro de 2023, foi submetido a dois exames psicossociais — ambos favoráveis à progressão. Diante desse quadro, a magistrada não tinha base legal para negar o benefício.

O artigo 112, §1º, da Lei de Execução Penal é categórico ao afirmar: “Em todos os casos, o apenado somente terá direito à progressão de regime se ostentar boa conduta carcerária, comprovada pelo diretor do estabelecimento, e pelos resultados do exame criminológico, respeitadas as normas que vedam a progressão”. Foi exatamente isso que ocorreu: os requisitos estavam presentes e a progressão foi concedida.

Ainda assim, durante entrevista coletiva, o delegado responsável classificou Ricardo Jardim como psicopata. Não há laudo que ateste esse diagnóstico, embora ele apresente características compatíveis: manipulação, frieza, ausência de empatia. No estado de São Paulo, presos com esse perfil costumam ser custodiados no presídio de Tremembé, unidade conhecida por concentrar condenados de grande repercussão e com características de alta periculosidade.

Lá, é mais comum a realização de avaliações mais rigorosas antes da progressão, como o teste de Rorschach, que utiliza imagens projetivas para análise da personalidade. Contudo, trata-se de um exame caro e inviável de ser aplicado em larga escala no sistema prisional brasileiro, já precário até em condições básicas.

2.

Em sua coluna no jornal GaúchaZH (Zero Hora), Fabrício Carpinejar criticou duramente a flexibilidade do Judiciário, as progressões de regime e as saídas temporárias, sugerindo que tais mecanismos seriam responsáveis pela reincidência em crimes bárbaros. É um discurso que ecoa a indignação coletiva, mas que precisa ser enfrentado com dados. O Brasil tem hoje mais de 850 mil presos, a terceira maior população carcerária do mundo. Desde 2000, esse número quase quadruplicou, o déficit de vagas ultrapassa 200 mil. Não se trata, portanto, de “desculpa eterna” quando se fala em superlotação ou colapso do sistema: é a realidade.

Progressões de regime e saídas temporárias não são “práticas institucionais”, mas previsões legais. O Judiciário não pode ser responsabilizado porque um condenado voltou a delinquir. A crítica deveria ser dirigida ao Legislativo, responsável por reformar as leis penais e processuais. Ocorre que, no Brasil, a participação política da sociedade é superficial: muitos eleitores só se interessam pela política no dia da votação, sem conhecer propostas ou acompanhar os mandatos daqueles que elegem. Depois, quando o sistema falha, o Judiciário vira o vilão conveniente: se prende, errou; se solta, também errou.

A discussão que emerge desse caso não se limita à figura de Ricardo Jardim, mas à forma como a sociedade lida com a execução penal. Há sempre uma urgência em apontar um culpado imediato, e o Judiciário costuma ser o bode expiatório perfeito. No entanto, essa reação emocional pouco contribui para compreender a complexidade do sistema penal.

É curioso observar que, diante de crimes bárbaros, clama-se por endurecimento de penas, mas pouco se discute sobre políticas públicas de prevenção, sobre o investimento em educação, saúde mental e reinserção social de egressos do sistema prisional. O cárcere, por si só, não resolve: ao contrário, muitas vezes potencializa a violência e devolve à sociedade indivíduos ainda mais marcados pela exclusão.

Outro ponto negligenciado é a seletividade penal. A indignação social costuma ser seletiva, voltada a crimes de grande repercussão e de personagens que já ocupam espaço na mídia. Entretanto, todos os dias pessoas são condenadas, cumprem suas penas e retornam à sociedade sem qualquer suporte para reconstruir suas vidas. O fracasso estrutural do sistema penal não pode ser ignorado, tampouco atribuído exclusivamente ao Judiciário. O problema é maior e envolve o modelo de política criminal adotado pelo Estado brasileiro.

O direito penal não é capaz de acabar com a delinquência humana.

Este texto não é sobre Ricardo Jardim, é sobre nós.

*Ketrim Bueno de Fraga, advogada, é pós-graduanda em direito penal e criminologia pela PUC-RS.

Referências


BRASIL. Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984. Lei de Execução Penal. Brasília, DF: Presidência da República, [2025?]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm.

BRASIL. Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. Observatório Nacional dos Direitos Humanos disponibiliza dados sobre o sistema prisional brasileiro. Brasília, DF, 28 fev. 2025. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2025/fevereiro/observatorio-nacional-dos-direitos-humanos-disponibiliza-dados-sobre-o-sistema-prisional-brasileiro.

CARPINEJAR, Fabrício. Como foi solto um homem condenado por matar a própria mãe com 13 facadas. GaúchaZH, Porto Alegre, 5 set. 2025. Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/colunistas/carpinejar/noticia/2025/09/como-foi-solto-um-homem-condenado-por-matar-a-propria-mae-com-13-facadas-cmf7ax7ls023s015is5a0jj0y.html.

CNN BRASIL. Corpo em mala: suspeito preso foi condenado por matar e concretar a mãe. CNN Brasil, São Paulo, 4 set. 2025. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/sul/rs/corpo-em-mala-suspeito-preso-foi-condenado-por-matar-e-concretar-a-mae/.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
A rede de proteção do banco Master
28 Nov 2025 Por GERSON ALMEIDA: A fraude bilionária do banco Master expõe a rede de proteção nos bastidores do poder: do Banco Central ao Planalto, quem abriu caminho para o colapso?
2
A poesia de Manuel Bandeira
25 Nov 2025 Por ANDRÉ R. FERNANDES: Por trás do poeta da melancolia íntima, um agudo cronista da desigualdade brasileira. A sociologia escondida nos versos simples de Manuel Bandeira
3
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
4
A arquitetura da dependência
30 Nov 2025 Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR: A "arquitetura da dependência" é uma estrutura total que articula exploração econômica, razão dualista e colonialidade do saber, mostrando como o Estado brasileiro não apenas reproduz, mas administra e legitima essa subordinação histórica em todas as esferas, da economia à universidade
5
A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados
01 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra
6
Colonização cultural e filosofia brasileira
30 Nov 2025 Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: A filosofia brasileira sofre de uma colonização cultural profunda que a transformou num "departamento francês de ultramar", onde filósofos locais, com complexo de inferioridade, reproduzem ideias europeias como produtos acabados
7
Raduan Nassar, 90 anos
27 Nov 2025 Por SABRINA SEDLMAYER: Muito além de "Lavoura Arcaica": a trajetória de um escritor que fez da ética e da recusa aos pactos fáceis sua maior obra
8
A feitiçaria digital nas próximas eleições
27 Nov 2025 Por EUGÊNIO BUCCI: O maior risco para as eleições de 2026 não está nas alianças políticas tradicionais, mas no poder desregulado das big techs, que, abandonando qualquer pretensão de neutralidade, atuam abertamente como aparelhos de propaganda da extrema-direita global
9
O empreendedorismo e a economia solidária
02 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem
10
Totalitarismo tecnológico ou digital
27 Nov 2025 Por CLAUDINEI LUIZ CHITOLINA: A servidão voluntária na era digital: como a IA Generativa, a serviço do capital, nos vigia, controla e aliena com nosso próprio consentimento
11
Walter Benjamin, o marxista da nostalgia
21 Nov 2025 Por NICOLÁS GONÇALVES: A nostalgia que o capitalismo vende é anestesia; a que Benjamin propõe é arqueologia militante das ruínas onde dormem os futuros abortados
12
Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
13
O arquivo György Lukács em Budapeste
27 Nov 2025 Por RÜDIGER DANNEMANN: A luta pela preservação do legado de György Lukács na Hungria de Viktor Orbán, desde o fechamento forçado de seu arquivo pela academia estatal até a recente e esperançosa retomada do apartamento do filósofo pela prefeitura de Budapeste
14
Argentina – a anorexia da oposição
29 Nov 2025 Por EMILIO CAFASSI: Por que nenhum "nós" consegue desafiar Milei? A crise de imaginação política que paralisa a oposição argentina
15
O parto do pós-bolsonarismo
01 Dec 2025 Por JALDES MENESES: Quando a cabeça da hidra cai, seu corpo se reorganiza em formas mais sutis e perigosas. A verdadeira batalha pelo regime político está apenas começando
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES