O controle das contas públicas

Alison Wilding OBE, Desenho irritado IV, 1988
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR*

O governo Bolsonaro deixou um rombo nas contas públicas, tornando inevitável um ajuste fiscal pelo atual governo, que precisa de um voto de confiança para enfrentar o fascismo que está muito forte

Ao término de 2022, os analistas de mercado de commodities e os rentistas da Faria Lima manifestavam preocupações substanciais em relação ao déficit fiscal projetado para os anos subsequentes. Especialistas indicaram que o governo Bolsonaro deixou um “rombo fiscal” estimado em R$ 400 bilhões para 2023. Esse déficit foi atribuído a promessas de campanha não financiadas e a despesas permanentes que não foram devidamente contempladas no orçamento. O ex-presidente fez campanha à reeleição durante quatro anos e deixou o orçamento nas mãos de um venal “centrão” liderado por Arthur Lira. O ajuste fiscal se fazia imperativo para o governo que o sucederia: o governo Lula 3. 

O atual governo propõe o factível. A proposta de ajuste fiscal é aceitável diante da herança do ex-presidente e da posição semiperiférica do Brasil: 1) equilibrar o déficit público da União no próximo ano; 2) prever um superávit do PIB de 0,5% em 2025 e de 1% em 2026. Não deixa de ser estratégico e cauteloso, visto que as próximas eleições presidenciais ocorrerão em 2026 e o neofascismo permanece vigoroso no país. O governo pretende preservar gastos prioritários em saúde, educação e segurança; aumentar investimentos públicos, impulsionar o crescimento econômico e controlar a dívida pública e a inflação. O pacote seria mais rigoroso se considerada a pressão dos agentes institucionais do mercado, acostumados às benesses de Paulo Guedes e do próprio governo bolsonarista. Lula barrou muito dos cortes previstos inicialmente, mas não conseguiu impedir perdas de direitos sociais de sua base. Por isso, o arcabouço se tornou menos árido, mas, ao mesmo tempo, objeto de crítica dentro do próprio Partido dos Trabalhadores. Porém, o salário mínimo (SM), antes corrigido pela inflação somada à variação do PIB desparece na proposta atual. Com ela toda uma cadeia de salários e serviços cujo reajuste está articulado ao SM. Isso deve ser alvo de crítica para. Os cidadãos afetados são os mais pobres e se constituem na base de apoio de Lula.

A hora de fazer política

Há uma vasta negociação política em curso e muitas mudanças poderão ocorrer, dado que o legislativo brasileiro é, no mínimo, venal. Quando o plano é detalhado, parece que o diabo é pior do que se imagina, pelo menos até o final de 2025. O Arcabouço Fiscal do Brasil, implementado em 2023, trouxe várias mudanças orçamentárias nos setores públicos. As principais alterações podem ser elencadas da seguinte forma: 1) Despesas Obrigatórias; 2) Investimentos Públicos; 3) Receitas Tributárias; 4) Transparência e Controle; 5) Equilíbrio Fiscal. O objetivo principal do arcabouço é equilibrar as contas públicas, eliminando o déficit fiscal até 2024 e gerando superávit já a partir de 2025. As medidas são de valia para que o país se torne um destino atrativo para capital financeiro, transformando o Brasil em uma excelente praça bursátil. Para isso, existem cortes assimétricos.

Os trabalhadores serão os mais prejudicados em seus salários-mínimos e benefícios sociais (abono e BPC); houve alteração nas regras do BPC. O salário-mínimo, articulado com o crescimento do PIB, política implementada nos governos Lula e Dilma, funcionou como um excelente processo de distribuição de renda. A opção atual parece ser outra: o pacote trouxe a isenção ou redução do imposto de renda para os trabalhadores que recebem até cinco salários-mínimos, promovendo um processo de redistribuição. E o aumento da tributação para aqueles que auferem rendimentos superiores a R$50.000,00. O problema na mudança está em que a mudança de regra, a médio prazo, trará perda de benefícios sociais. Os benefícios sociais devem ser alvo de críticas. Um governo que se autodenomina de centro-esquerda não pode cortar benefícios sociais historicamente conquistados pelo próprio partido do presidente.

As regras

Essas mudanças visam fortalecer a sustentabilidade das contas públicas e fomentar um “crescimento econômico mais equitativo e inclusivo”. Utilizar a expressão “crescimento econômico inclusivo” é uma ironia. No tocante às despesas obrigatórias, poder-se-ia afirmar que estas, incluindo salários, pensões e benefícios da seguridade social, foram ajustadas para assegurar que não ultrapassem os limites impostos pelo arcabouço. Isso abarca a revisão do salário-mínimo e a otimização dos programas sociais. É desumana a realidade como se apresenta constatar que ínfima parcela da população tem ciência de que seus rendimentos estão limitados para garantir o equilíbrio das contas governamentais e não para suprir as necessidades imprescindíveis do ser humano. À frente estará a racionalidade que justifica tal descalabro.

Quem acumula não paga

No que concerne aos investimentos públicos, o documento fixou um piso, assegurando que pelo menos R$ 75 bilhões sejam alocados para infraestrutura e outros projetos essenciais, mesmo em períodos de menor crescimento econômico. Este montante, quando comparado ao total de isenções fiscais concedidas a empresas nacionais ou estrangeiras que operam no país, que gira em torno de R$ 300 bilhões anuais, suscita questionamentos. Qual é a justificativa para tal submissão aos interesses empresariais em detrimento de obras que beneficiam a todos os cidadãos e não apenas àqueles que podem arcar com os produtos das empresas isentas? Houve foco na ampliação da justiça tributária visando aumentar a arrecadação de impostos, reduzir a evasão fiscal e aprimorar a eficiência do sistema tributário.

O governo brasileiro pretende arrecadar R$ 70 bilhões em um biênio mediante medidas de reforço do arcabouço fiscal. Essas iniciativas englobam ajustes em programas sociais, novas diretrizes para o salário-mínimo, aprimoramento do sistema tributário e revisão das despesas obrigatórias. Ademais, o governo tem como objetivo eliminar o déficit primário já em 2024 e alcançar um superávit de 0,5% do PIB em 2025 e de 1% do PIB em 2026. Qual a razão de cortes tão profundos, quando nos Estados Unidos a dívida interna nem sequer é mencionada? Esta disparidade poderia ser elucidada por uma ironia amarga: “somos nós que pagamos”. O reajuste do salário-mínimo no Brasil em 2024 ainda não foi oficialmente definido. Todavia, o governo já indicou que o próximo reajuste será fundamentado no índice de preços ao consumidor (IPCA), que mede a inflação. Não haverá incremento algum; o mínimo será ajustado conforme o IPC, ou seja, pela inflação; isso implica dizer que o poder aquisitivo se manterá estagnado. [Isto penso que deveria ser dito no final do segundo parágrafo, como sinalizei]

As empresas pagam?

Em contrapartida, as corporações midiáticas no Brasil têm se beneficiado de isenções tributárias significativas, especialmente no pagamento ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). De janeiro a agosto de 2024, tais empresas acumularam R$ 484,8 milhões em isenções fiscais. O maior beneficiado foi o Grupo Globo, que recebeu isenção de R$ 173,3 milhões. Outras grandes corporações, como a TV Record e o Grupo UOL-Folha, também se beneficiaram com isenções de R$ 39,7 milhões e R$ 39,3 milhões, respectivamente. Contudo, isso não encerra a questão. O valor liberado pelas emendas no ano de 2024, aprovado no Congresso Nacional, atingiu a cifra recorde de R$ 53 bilhões no Orçamento da União. Esses recursos são destinados pelos parlamentares a suas bases eleitorais e divididos em três categorias principais: Emendas Individuais (R$ 25 bilhões), Emendas de Bancadas Estaduais (R$ 11,3 bilhões) e Emendas de Comissão (R$ 11 bilhões). [E sem a obrigatória transparência]

Forças Armadas

Segundo representantes das forças armadas, o Brasil atravessa um período de cortes no setor militar. Em 2024, o governo anunciou reduções significativas no orçamento das Forças Armadas, abarcando a diminuição de gastos com pessoal, atrasos no pagamento de salários e a suspensão de programas de modernização de equipamentos. Essas medidas fazem parte de um esforço mais amplo para controlar o déficit público e equilibrar o orçamento nacional. Tais cortes têm suscitado preocupações entre militares e especialistas, que argumentam que podem comprometer a capacidade de defesa do país e a moral “da tropa”. Especificando: nos salários e benefícios, já houve atrasos no seu pagamento para o pessoal militar. Além disso, estão previstas reduções nos valores destinados aos militares da ativa e aposentados. As contratações e promoções estão sendo adiadas ou congeladas. Diversos programas de modernização de equipamentos militares, como a aquisição de novos veículos blindados e aeronaves, foram suspensos ou postergados. Projetos de construção e modernização de instalações militares estão sendo suspensos ou reduzidos. A frequência e a escala dos exercícios militares foram diminuídas, afetando o treinamento das tropas.

A participação do Brasil em missões internacionais de paz e operações conjuntas com outras nações pode ser prejudicada pela escassez de recursos. Segundo os estrategistas das forças militares, haverá consequências advindas dos cortes. Estes podem comprometer a prontidão operacional e a capacidade das Forças Armadas de responder a ameaças internas e externas. A moral dos soldados pode ser negativamente impactada pelos atrasos salariais e pela incerteza quanto a futuras promoções e benefícios. A redução da participação em missões internacionais pode afetar a posição do Brasil em organizações internacionais e suas relações com outros países. Ainda, segundo os estrategistas, esses cortes integram um esforço maior para equilibrar o orçamento federal e reduzir o déficit público. No entanto, são questões delicadas que envolvem a segurança nacional e a estabilidade interna. O governo promete vetar parte das emendas e recompô-las depois de equilibrar as contas públicas. A conferir, dada a composição do parlamento, dominado pelo grupo mais fisiológico: “o centrão”. Poderíamos dizer que o governo atual, 3º mandato do presidente Lula, está submetido a um regime de parlamentarismo orçamentário. Certamente ótima justificativa para que os cortes nas forças armadas sejam simbólicos e não de fato.

As condições de gestão dos cortes

Parece exequível a implementação dos cortes, dado o estado atual da gestão do processo. De acordo com o documento [que documento?], existem margens e bandas orçamentárias que permitem uma administração eficiente até 2026, embora mudanças possam ser observadas já em 2025. Apesar dos cortes gerais no orçamento, o financiamento para ciência, tecnologia e universidades públicas no Brasil em 2024 não foi significativamente prejudicado. Em verdade, o governo anunciou um pacote de investimentos de R$ 3,1 bilhões para reforçar a infraestrutura de inovação e pesquisa, com foco nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Ademais, o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT) aprovou um plano de investimento de R$ 12,7 bilhões para 2024, distribuídos em dez programas estruturantes e mobilizadores. Estes investimentos visam apoiar projetos estratégicos, como o Plano Brasileiro de Inteligência Artificial (PBIA), e promover a autonomia tecnológica na área de defesa, entre outros. O governo também está fomentando a participação do setor privado para incrementar os recursos disponíveis para pesquisa e desenvolvimento (P&D).

A mídia temerosa

Tal como vimos anteriormente, as corporações midiáticas têm usufruído de isenções fiscais, especialmente no que concerne à desoneração da folha de pagamento. Temerosa diante da perspectiva de perder suas isenções, atira contra o governo, almejando a prorrogação do pacote fiscal. Enquanto mira suas armas em um eventual equívoco de timing, o grupo midiático mantém sua isenção, apresentando um quadro intrincado. O governo precisa de um voto de confiança para enfrentar o fascismo que está muito forte como se pode ler na coluna “Por uma nova abolição da escravidão” publicada em 28 de novembro de 2024, neste periódico. Não se trata de uma crítica direta, mas tampouco é possível endossar o arcabouço que suprime direitos sociais dos trabalhadores.

*João dos Reis Silva Júnior é professor titular do Departamento de Educação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Autor, entre outros livros, de Educação, Sociedade de Classes e Reformas Universitárias (Autores Associados) [https://amzn.to/4fLXTKP]


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • A era de crise psíquica fabricadamãop 15/12/2024 Por VLADIMIR SAFATLE: Quanto maior a extensão da possibilidade de diagnósticos clínicos, menor a chance de mobilizar o sofrimento psíquico como fundamento para a revolta social
  • Em defesa da família tentacularMaria_Rita_Kehl 15/12/2024 Por MARIA RITA KEHL: A família desprivatizou-se a partir da segunda metade do século XX e o núcleo central da família contemporânea foi implodido, atravessado pelo contato íntimo com adultos, adolescentes e crianças vindas de outras famílias
  • Não existe alternativa?lâmpadas 23/06/2023 Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Austeridade, política e ideologia do novo arcabouço fiscal
  • Transição de hegemoniaTadeu Valadares_edited 14/12/2024 Por TADEU VALADARES: A ascensão da China e o retorno da Rússia ao status de grande potência bloquearam o máximo objetivo imperial, imperialista e ocidental
  • O caminho para Damascoárabe 15/12/2024 Por TARIQ ALI: O que estamos testemunhando na Síria hoje é uma grande derrota, um mini 1967 para o mundo árabe
  • Marxismo e subjetividadesombras 14/12/2024 Por MAURÍCIO VIEIRA MARTINS: Completados 180 anos da escrita dos Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844, revisitá-los nos reserva também algumas surpresas adicionais
  • 14 de dezembro de 2024Tarso Genro 16/12/2024 Por TARSO GENRO: A prisão do general é o ápice da mudança de qualidade da crise de alta intensidade, que vem desde a inquisição medievalista encetada pela república de Curitiba
  • Vladimir Putin e Benjamin Netanyahuluz e sombra 14/12/2024 Por ANDREW KORYBKO: A Rússia esquivou-se de uma bala ao optar sabiamente por não se aliar ao agora derrotado Eixo da Resistência
  • Acordo Mercosul/União Europeia – um post mortemsoriiso 13/12/2024 Por PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.: Uma mistura de ignorância, servilismo e desorientação estratégica levou o Brasil a assinar um acordo de essência neoliberal
  • A reformulação das Forças Armadasreflexo azul 10/12/2024 Por RENATO DAGNINO: Quais seriam e que importância possuem no seio da corporação os militares dispostos a se engajar nos projetos de P&D

Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES

Assine nossa newsletter!
Receba um resumo dos artigos

direto em seu email!