O direito ao erro

image_pdf

Por RAFAEL VALIM*

A incorporação do “direito ao erro” no Direito brasileiro reforçaria a vocação garantista do direito administrativo, oferecendo às pessoas e às empresas um escudo poderoso contra o arbítrio do Estado

1.

É amplamente conhecido o chamado “princípio da inescusabilidade da ignorância da lei”, segundo o qual, nos termos do art. 3º da Lei de Introdução às Normas do Direito brasileiro, “ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece”.

Embora tal princípio seja um pressuposto de funcionamento do próprio Direito, impõe-se reconhecer que sua proclamação soa como uma zombaria ante um ordenamento jurídico hipertrofiado, incoerente e sujeito a alterações constantes como o brasileiro.[i]

Para traduzir em números: estudo recente revelou que, desde a promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988, até o dia 30 de setembro de 2023, foram editadas mais de sete milhões de normas jurídicas, é dizer, 586 normas produzidas todos os dias.[ii]

Ora, se os especialistas enfrentam enormes dificuldades para interpretar e aplicar esse cipoal normativo, o que dizer da generalidade das pessoas, sobretudo em setores altamente complexos como a administração tributária? Essa hipernomia produz uma incerteza jurídica massacrante e expõe as pessoas e as empresas a condutas arbitrárias da Administração Pública, para a qual resulta facílimo encontrar, de inopino, infrações administrativas, uma vez que é rigorosamente impossível cumprir todas as normas em vigor.

Contra esse tétrico estado de coisas, em 10 de agosto de 2018 editou-se na França a “lei para um Estado a serviço de uma sociedade de confiança”, por meio da qual se pretendeu conduzir a Administração Pública francesa à visão de uma administração “de aconselhamento e de serviços”, de uma administração “que apoia”, “que se engaja” e “que dialoga”, no lugar de uma Administração Pública estritamente repressiva.

2.

Entre os dispositivos introduzidos por essa lei se destaca o chamado “direito ao erro” perante a Administração Pública. O que isso significa?

 Seja-nos permitido reproduzir, em tradução livre, o texto legal francês: “Uma pessoa que tenha, pela primeira vez, desrespeitado uma regra aplicável à sua situação ou que tenha cometido um erro material ao fornecer informações sobre sua situação não poderá ser sujeita, pela administração, a uma penalidade, seja pecuniária ou consistente na privação de todo ou parte de um benefício devido, se tiver regularizado sua situação por iniciativa própria ou após ter sido convidada a fazê-lo pela Administração dentro do prazo indicado por esta última”.[iii]

Extrai-se, pois, que o “direito ao erro” – que, em rigor, é o direito de regularizar uma infração – se traduz em alguns deveres das autoridades administrativas, quais sejam: verificar se é a primeira vez que a pessoa comete a infração; aferir se há má-fé ou fraude, se não houver, convidar a pessoa a regularizar a situação. Uma vez regularizada, nenhuma penalidade será imposta.[iv]

Jacques Chavellier sublinha, acertadamente, a transcendência dessa inovação: “Em primeiro lugar, há uma mudança na forma como o administrado é percebido: aceita-se que ele possa cometer erros (uma possibilidade que era amplamente ignorada no direito público) e uma presunção de boa-fé é estabelecida em seu favor (mesmo que ele tenha cometido erros); esse é o fim da relação tradicional de desconfiança, em que o administrado era visto a priori como suspeito”.[v]

3.

A incorporação do “direito ao erro” no Direito brasileiro constituiria uma revolução copernicana na relação que a Administração Pública entretém com os particulares. Por um lado, reforçaria a vocação garantista do direito administrativo, oferecendo às pessoas e às empresas um escudo poderoso contra o arbítrio do Estado; por outro lado, deslocaria os esforços e a preocupação da Administração Pública para o que realmente importa: os fraudadores e os infratores contumazes.

*Rafael Valim, advogado, é doutor em direito administrativo pela PUC-SP, onde lecionou de 2015 a 2018. Autor, entre outros livros, de Lawfare: uma introdução (com Cristiano Zanin e Valeska Zanin Martins) (Contracorrente).

Notas


[i] VALIM, Rafael. O princípio da segurança jurídica no Direito Administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2010, 93.

[ii] O estudo foi produzido pelo Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário – IBPT: https://ibpt.com.br/estudo-quantidade-de-normas-35-anos-cf-2023/

[iii] Texto original: “Une personne ayant méconnu pour la première fois une règle applicable à sa situation ou ayant commis une erreur matérielle lors du renseignement de sa situation ne peut faire l’objet, de la part de l’administration, d’une sanction, pécuniaire ou consistant en la privation de tout ou partie d’une prestation due, si elle a régularisé sa situation de sa propre initiative ou après avoir été invitée à le faire par l’administration dans le délai que celle-ci lui a indique”. Acessível em: https://www.legifrance.gouv.fr/codes/id/LEGISCTA000037312374

[iv] Há, naturalmente, exceções ao “direito ao erro: “O primeiro e o segundo parágrafos não se aplicam: 1° Às sanções necessárias para a implementação da legislação da União Europeia; 2° Às penalidades impostas pelo não cumprimento de regras que protejam diretamente a saúde pública, a segurança de pessoas e propriedades ou o meio ambiente; 3° Sanções previstas em um contrato; 4° Sanções impostas pelas autoridades reguladoras a profissionais sujeitos à sua supervisão.

[v] CHEVALLIER, Jacques. Confiance et droit à l’erreur. Action publique. Recherche et pratiques, 2020/1 (N° 6), p. 2.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
A rede de proteção do banco Master
28 Nov 2025 Por GERSON ALMEIDA: A fraude bilionária do banco Master expõe a rede de proteção nos bastidores do poder: do Banco Central ao Planalto, quem abriu caminho para o colapso?
2
A poesia de Manuel Bandeira
25 Nov 2025 Por ANDRÉ R. FERNANDES: Por trás do poeta da melancolia íntima, um agudo cronista da desigualdade brasileira. A sociologia escondida nos versos simples de Manuel Bandeira
3
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
4
A arquitetura da dependência
30 Nov 2025 Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR: A "arquitetura da dependência" é uma estrutura total que articula exploração econômica, razão dualista e colonialidade do saber, mostrando como o Estado brasileiro não apenas reproduz, mas administra e legitima essa subordinação histórica em todas as esferas, da economia à universidade
5
A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados
01 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra
6
Colonização cultural e filosofia brasileira
30 Nov 2025 Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: A filosofia brasileira sofre de uma colonização cultural profunda que a transformou num "departamento francês de ultramar", onde filósofos locais, com complexo de inferioridade, reproduzem ideias europeias como produtos acabados
7
Raduan Nassar, 90 anos
27 Nov 2025 Por SABRINA SEDLMAYER: Muito além de "Lavoura Arcaica": a trajetória de um escritor que fez da ética e da recusa aos pactos fáceis sua maior obra
8
A feitiçaria digital nas próximas eleições
27 Nov 2025 Por EUGÊNIO BUCCI: O maior risco para as eleições de 2026 não está nas alianças políticas tradicionais, mas no poder desregulado das big techs, que, abandonando qualquer pretensão de neutralidade, atuam abertamente como aparelhos de propaganda da extrema-direita global
9
O empreendedorismo e a economia solidária
02 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem
10
Totalitarismo tecnológico ou digital
27 Nov 2025 Por CLAUDINEI LUIZ CHITOLINA: A servidão voluntária na era digital: como a IA Generativa, a serviço do capital, nos vigia, controla e aliena com nosso próprio consentimento
11
Walter Benjamin, o marxista da nostalgia
21 Nov 2025 Por NICOLÁS GONÇALVES: A nostalgia que o capitalismo vende é anestesia; a que Benjamin propõe é arqueologia militante das ruínas onde dormem os futuros abortados
12
Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
13
O arquivo György Lukács em Budapeste
27 Nov 2025 Por RÜDIGER DANNEMANN: A luta pela preservação do legado de György Lukács na Hungria de Viktor Orbán, desde o fechamento forçado de seu arquivo pela academia estatal até a recente e esperançosa retomada do apartamento do filósofo pela prefeitura de Budapeste
14
Argentina – a anorexia da oposição
29 Nov 2025 Por EMILIO CAFASSI: Por que nenhum "nós" consegue desafiar Milei? A crise de imaginação política que paralisa a oposição argentina
15
O parto do pós-bolsonarismo
01 Dec 2025 Por JALDES MENESES: Quando a cabeça da hidra cai, seu corpo se reorganiza em formas mais sutis e perigosas. A verdadeira batalha pelo regime político está apenas começando
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES