Por ELEUTÉRIO F. S. PRADO*
O discurso do capitalista de Jacques Lacan é uma mistificação estruturalista
A figura do homo oeconomicus como forma de caracterizar o modo de calcular e de atuar do bípede sem plumas quando ele está envolvido em atividades mercantis apareceu junto com o nascimento da economia política,[i] grosso modo, no século XVIII. A melhor reflexão sobre essa realização no campo da ciência moderna foi feita por John Stuart Mill em seu Da definição de Economia Política e do método de investigação própria a ela, publicado em 1832. Aí, considerando esse saber como uma ciência moral ou psicológica, define explicitamente a economia política do seguinte modo:
A ciência que trata da produção e da distribuição de riqueza na medida em que elas dependem das leis da natureza humana (…) das leis morais ou psicológica da produção e da distribuição da riqueza.[ii]
Porém, o que é riqueza? John Stuart Mill, em seu artigo seminal, apresenta uma definição em que a riqueza aparece como uma coleção de bens e serviços que tem utilidade e que precisam ser produzidos pelo trabalho humano: “Riqueza [consiste em] todos os objetos úteis ou convenientes à humanidade, como exceção daqueles que podem ser obtidos em quantidade indefinida sem trabalho”.[iii]
Contudo, o que são as leis da natureza humana, às quais John Stuart Mill faz referência enfática? Para fornecer uma resposta estrutural a essa pergunta, define o homo oeconomicus na forma de uma abstração subjetiva: “A ciência procede investigando as leis que governam as várias operações [ligadas à produção e repartição da riqueza], sob a suposição de que o homem é um ser que é determinado, pela necessidade de sua natureza, a preferir uma maior porção de riqueza ao invés de uma menor em todos os casos”.[iv]
A economia política pressupõe uma definição do homem como ser que invariavelmente realiza aquilo [que deseja, para obter] (…) a maior soma de coisas necessárias, de conveniências e de luxos com a menor quantidade de trabalho e abnegação física exigidas no estado existente do conhecimento.[v]
Note-se, então, que John Stuart Mill define esse ator principal da cena social investigada pela economia política como um ser movido por um desejo “oceânico” e que figura por isso mesmo, estranhamente, como insaciável. E esse desejo que mora em sua mente – diz – é-lhe inerente, pois pertence à sua própria natureza.
Ele vive em estado de sociedade, mas a economia política considera esse homem “individualmente, como se nenhum outro ser humano existisse além dele próprio”.[vi] Não se poderia falar desse atomismo, entretanto, como se fosse uma espécie de autismo, mas talvez se possa ponderar que o agente econômico, assim concebido, sofre de uma ilusão autista. Eis que essa ilusão lhe é imposta pela forma própria da relação social indireta que, de acordo com Marx, vem a ser uma relação social de coisas, ou seja, de mercadorias.
Apesar da cena social ser de modo bem evidente a sociedade moderna, John Stuart Mill parece definir o homo oeconomicus como um fundamento antropológico. Na linguagem da psicanálise lacaniana pode-se dizer, então, que esse homo participa de um discurso em que não há laço social direto, pois as relações sociais que implicitamente trava, como diz o Marx do fetichismo da mercadoria, manifestam-se como relações sociais de coisas. De qualquer modo, pode-se dizer que apresenta um comportamento típico em que há déficit de comunicação e de interação social, assim como superavit de atitudes repetitivas e estereotipadas. A sua motivação é egoísta e o seu comportamento é racional, pois usa os meios de modo ótimo para obter sempre o melhor resultado para si mesmo.
Por isso, o filósofo moral Stuart Mill se abala e vacila diante dessa constatação, afirmando então em seu artigo citado, que esse homo advém à ciência econômica por meio de um procedimento metodológico, o qual se afigura como necessário e, mais do que isso, é-lhe intrínseco – e “não porque todo economista político seja ridículo a ponto de supor que a humanidade realmente assim se constitui”.[vii]
Ora, essa figura monstruosa é uma categoria da ciência econômica, que tem veracidade, porque vem a ser – como diz Karel Kosik – “uma forma histórica de objetivação do homem”: “O homo oeconomicus é o homem como parte do sistema, como elemento funcional do sistema e, como tal, deve estar provido das características fundamentais indispensáveis ao seu funcionamento. A hipótese de que a ciência dos fenômenos econômicos esteja baseada na psicologia (…) aceita acriticamente a aparência fenomênica da realidade. (…) Se o homo oeconomicus é uma abstração, trata-se, entretanto, de uma abstração razoável”.[viii]
Em sequência, vai-se procurar mostrar aqui que o homo oeconomicus da economia política clássica, mais verdadeiro do que aquele da teoria neoclássica, forma uma unidade existencial com o homo alienatis[ix] da metapsicologia de Jacques Lacan, ao qual ele chama de sujeito barrado, constituindo-se de vero como um sujeito assujeitado ao sistema da relação de capital.
Por homo alienatis se entende aqui o “sujeito” alienado ao objeto “a”, ou seja, ao objeto metafísico, supostamente perdido, que funciona como causa última do desejo humano em geral e que o torna insaciável. Ora, no segundo capítulo de O capital, essa classe de “sujeitos” é apresentada como formada por “personagens econômicos encarnados por pessoas [que] nada mais são que personificações das relações econômicas”.[x]
Para atingir esse objetivo, é preciso fazer uma apresentação crítica do que ele denomina, numa perspectiva estruturalista, de discurso do capitalista. Busca-se fornecer, portanto, uma prova heurística de que o duplo significante abaixo apresentado faz sentido.
Note-se que ele está aqui apresentado por meio de uma espécie de razão problemática, em que a posição superior é ocupada pelo significante da aparência e a posição inferior é ocupada pelo significante da essência. A barra que separa os dois significantes que formam essa unidade contraditória indica que a verdade do “sujeito” que está à luz precisa ser investigada e descoberta em sua caverna escura com o farol da crítica. Trata-se de um modo sintético de dizer que o primeiro significante apresenta e oculta o segundo, de tal modo que essa unidade de significação expressa a duplicidade consciente/inconsciente.
Em palavras, o homo oeconomicus vulgar é em essência o homo alienatis.
A verdade do “sujeito racional aparente” da economia política vem a ser, em última análise, um “sujeito” alienado ao sistema econômico, organização social em que impera a relação de capital, tal como sugere Karel Kosik. Ora, essa sua dimensão oculta foi tematizada pelo psicanalista que nunca se esforça para ser claro, Jaques Lacan, por meio de uma extensão dos quatro discursos fundamentais da psicanálise.
Veja-se, para tanto, que o termo discurso tem em seu corpus teórico um sentido específico. Eis que consiste num modo de estabelecer interação social com base na mediação possível da linguagem e que costuma ser representado esquematicamente por uma estrutura de posições que contém significantes e direções. Lacan propõe que os discursos são maneiras de usar a linguagem para estabelecer vínculos sociais, assim como para obter consistência em tais relacionamentos. No seu entender, o discurso se funda sempre na estrutura significante, ou seja, numa organização de significantes (ou ainda, para ser mais explícito, na parte material das palavras).
Nesse sentido, discurso privilegiado do capitalismo – que Lacan chama de discurso do capitalista –, ou seja, aquele que prevalece e domina no modo de produção capitalista, é representado por quatro significantes organizados em um matema (termo do léxico lacaniano), tal como se mostra abaixo:
Nesse matema, S1 é chamado de significante mestre e ele indica a capacidade de mando e, mais do que isso, de comando própria daquele que ocupa essa posição num contexto social; por exemplo, ele indica do senhor escravagista se o contexto for o escravismo enquanto gênero de um tipo de sociabilidade de exploração. O significante S2 representa um meio de gozo, algo ou alguém de que se serve o S1 para obter satisfação. Nesse mesmo contexto social, ele indica o escravo que, com o seu saber sobre como produzir bens e serviços, é capaz de atender ao desejo do senhor escravagista.
Já “a” indica o objeto metafísico do desejo que, por isso mesmo, não se satisfaz em ser isso ou aquilo, um bem ou outro, mas se projeta como uma má infinitude, indicando assim que o desejo que o visa é insaciável. Na teorização de Lacan, o objeto “a” é aquilo que apresenta o fundamento primeiro do ser humano em geral em sua máxima abstração – e não uma injunção histórica, um resultado aparente da sociabilidade fundada na relação de capital. Finalmente, $ é o sujeito do inconsciente tal como concebido por Lacan, o qual aqui se reinterpreta, de modo vero, como um não-sujeito, mas como um alienado, um assujeitado. Ao mesmo tempo que é a verdade do S1, ele está situado numa posição arredia ou excêntrica em relação aos outros significantes.
Contrariando Stuart Mill, Lacan põe implicitamente o homo oeconomicus como o homem tout court. Contrariando Lacan, aqui se pensa que esse homo é apenas uma objetivação histórica. Nesse sentido, o homo alienatis $ vem a ser o “sujeito” alienado ao capital e o objeto “a” consiste, então, simplesmente, na subjetivação do valor que se valoriza, ou seja, numa imago do capital posta teoricamente na psique dos indivíduos sociais. Por isso mesmo, o objeto “a” pode ser representado na aparência do sistema (reduzida e pensada como um discurso) por uma cadeia infinita de mercadorias.
De qualquer modo, eis abaixo o matema do discurso do capitalista, que por ser um mero discurso apresenta o capitalismo apenas na esfera da circulação mercantil. De qualquer modo, aqui o matema original é reapresentado assumindo certa liberdade de expressão, com a finalidade de adequá-lo ao contexto da economia política clássica.
Note-se que as posições $, S2, a, S1 do matema em sua forma bem abstrata correspondem, respectivamente, a consumidor, força de trabalho, mercadoria e dinheiro como capital em sua forma mais concreta. Antes de explicar o que significa essa estrutura de posições ocupadas por significantes, veja-se o que diz um lacaniano ilustre, Antonio Quinet, sobre esse discurso que tem por referência o capitalismo.
Leia-se, pois, o trecho citado abaixo em que se introduziu alguns esclarecimentos críticos entre chaves, os quais mudam propositalmente até mesmo o teor das afirmações imprecisas do autor: “Na verdade, é um discurso que exclui o outro do laço social [direto, mas não de todo laço já que este, no caso, está reificado], pois o sujeito [leia-se esse termo com aspas] só se relaciona com os objetos-mercadoria comandado pelo significante-mestre [dinheiro como] capital. É um discurso que não faz laço social [direto] – como se verifica em seu matema, em que não há relação [de interação] entre o agente e outro a quem esse discurso se dirige. No lugar da verdade encontra-se o capital (S1) como significante-mestre desse discurso; o sujeito [leia-se pondo aspas] é reduzido a um consumidor ($) de coisas ou gadgets (a) [ou seja, as mercadorias] produzidas pela [força de trabalho com uma determinada] ciência [e tecnologia] (S2)”.[xi]
Veja-se, agora, que esse matema está estruturado na forma de um circuito, o qual está indicado pelas flechas que nele constam. Estas últimas formam em conjunto uma infinitude, ou seja, um circuito fechado na forma de um ∞ – um par de óculos em que se enxerga, não por acaso, o infinito matemático. Ora, isso ocorre porque sobre esse circuito abstrato está impressa a lógica de desenvolvimento infinito do capital, mas não como ela está apresentada em O capital, ou seja, na esfera da produção, mas na esfera da circulação mercantil em que o fulcro do sistema se desvanece.
Em consequência, essa lógica pode ser lida da seguinte forma: o consumidor, que é um homo oeconomicus insaciável, impulsiona o dinheiro como capital ao investimento; este último, por sua vez, impulsiona a produção que, na perspectiva da economia política clássica, depende crucialmente do trabalho, que opera com determinados meios de produção e com uma tecnologia incorporada e não incorporada também determinada.
O trabalho consiste na realização da força de trabalho, uma potência que transforma as coisas por meio do trabalho concreto. Desse trabalho resulta uma infinidade de mercadorias, as quais são valores de uso e valores de troca. E elas são infinitamente compradas pelo consumidor, fechando assim o circuito.
Portanto, por meio desse discurso, vê-se que o motor da dinâmica do capitalismo se encontra no próprio homo oeconomicus tal como reza parte da economia política clássica e certamente a economia vulgar – e não no sistema econômico do próprio capital tal como se encontra em Marx. Ora, essa visão do capitalismo que encontra o seu fulcro numa suposta natureza do ser humano, que seria um egoísta irrecuperável e um consumidor insaciável não pode ser encontrada, pelo menos sem reservas e sem vacilações, em filósofos morais como Adam Smith e John Stuart Mill e até mesmo em especuladores realistas como David Ricardo. Todos eles sabem que a fonte do dinamismo do capitalismo se encontra não no indivíduo, mas na sociedade.
Ora, terminando esta nota, é difícil não chegar à conclusão de que o discurso do capitalista de Jacques Lacan é uma mistificação estruturalista que, implicitamente, torna o sistema da relação de capital um bem social infinitamente durável.
Para não ser muito duro na avaliação dessa formulação do psicanalista mais famoso depois de Freud é com uma citação de Pietro Bianchi que se encerra este artigo: “Lacan, de fato, não parece ter compreendido adequadamente a análise marxista (…). A prova disso se encontra quando Lacan tenta traduzir o funcionamento dos discursos numa análise do capitalismo como uma formação histórica com o infame quinto discurso – o discurso do capitalista. Nessa ocasião, Lacan apresenta um relato profundamente não marxista, baseado num impulso de consumo presumivelmente infinito e maníaco, desencadeado pelo capitalismo, que ignoraria o limite intransponível da falta e da castração”.[xii]
*Eleutério F. S. Prado é professor titular e sênior do Departamento de Economia da USP. Autor, entre outros livros, de Da lógica da crítica da economia política (Lutas Anticapital).
Notas
[i] O termo, como se sabe, foi introduzido originalmente por Antoine de Montchrestien, em 1615, em seu livro Tratado de Economia Política.
[ii] Stuart Mill, John – Da definição de Economia Política e do método de investigação própria a ela. In: Os pensadores, vol. XXXIV, Bentham e Mill. São Paulo: Abril Cultural, 1974, p.
[iii] Op cit., p. 298.
[iv] Idem, p. 301.
[v] Idem, p. 304.
[vi] Idem, p. 298.
[vii] Idem, p. 301.
[viii] Kosik, Karel – Dialética do concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969, p. 83 (https://amzn.to/48oIJrF).
[ix] Prado, Eleutério F. S. – A construção do homo alienatis. Sítio da internet: A terra é redonda, 03/09/2023.
[x] Marx, Karl – O capital – Crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 80.
[xi] Quinet, Antonio – Psicose e laço social – esquizofrenia, paranoia e melancolia. Rio de Janeiro: Zahar, 2009, p. 39 (https://amzn.to/452W5H4).
[xii] Bianchi, Pietro – From representation to class struggle. In: Journal of the Jan van Eyck Circle for Lacanian Ideology Critique, 2012, p. 114-126.
A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA