Por LORENZO VITRAL*
O comportamento dúbio de FHC
Foi fácil perceber uma avaliação positiva, ou até algum entusiasmo, por parte de amplos setores de esquerda, do encontro, registrada numa imagem que já nasce célebre, entre os ex-presidentes Lula e FHC. Ora, no cálculo político de Lula e do PT, o reconhecimento de Fernando Henrique de que ele, Lula, poderá ter o principal papel na reconstrução civilizatória do Brasil após a abominável experiência fascista nos moldes bolsonaristas, aponta para a adesão de setores do « centro » a uma frente política que poderá garantir a vitória.
A adesão, ainda que bastante nuançada de FHC, me fez relembrar momentos da trajetória política do professor uspiano. Admito que ele teve meu voto (e foi o último) em sua primeira eleição como presidente : fascinava-me, na época, a possibilidade, à maneira grega, de um rei-filósofo conduzir os destinos da nação ; para mim, era como se a razão tivesse enfim vencido ; além disso, restara a decepção de sua derrota para Jânio, figura nefasta da política brasileira, na eleição para a prefeitura de São Paulo.
Apesar do papel fundamental do seu governo na engenharia econômica que domou a inflação e deu início ao saneamento das contas públicas, as decepções não demoraram a surgir : a atitude do governo na greve dos petroleiros já anunciava as reais escolhas do governo e, como é amplamente sabido, ao longo dos anos FHC, os escândalos de corrupção, abafados pelo famoso « engavetador » geral da república e pelo controle do congresso, se sucederam, o que foi perolado pela compra de votos de congressistas para a aprovação da ementa constitucional que permitia a reeleição. O amigo Gianotti, como um Maquiavel bananeiro, era encarregado de produzir artigos de jornal em que defendia o que ocorria apelando para uma certa legitimidade da amoralidade na política. Valia com força o enunciado de Hobbes de que a condição humana nos permite a ter direito, se nada nos interrompe, a todas as coisas que quisermos.
Como um adendo, mas fundamental para nós aqui, o rei-filósofo permitiu que o ministro Paulo Renato perseguisse e sucateasse a Universidade Pública. Vigorava a política da privatização das Universidades explicitada por José Serra: haveria 4 ou 5 Universidades de excelência, que acolheria elites intelectuais, e as demais se limitariam a formar mão-de-obra para o mercado de trabalho. Os que viveram essa época vão se lembrar dos formulários GED que éramos a obrigados a preencher para conseguirmos garantir nossos salários. Ficou claro que a turma do PSDB, parte originária da Universidade, se serviu da Instituição para chegarem onde sempre quiseram estar, ou seja, no poder. É provável que nunca tenha passado pela cabeça deles que a escolha de ser professor e pesquisador de uma Universidade Publica no Brasil não é encarada apenas como um emprego : é uma opção de vida que, na imensa maioria das vezes, é exercida com muita dedicação e prazer. Dito de outra forma, não se escolhe essa profissão para ficar rico.
O tempo e as mágoas passaram – a possibilidade do rei-filósofo era uma idealização de juventude – mas sempre me intrigou a seguinte questão : tendo em vista a origem universitária de FHC e de outros membros do PSDB, a partir de que momento, ele resolveram aderir ao dito sartriano de que para fazer política é preciso por a mão na merda ? Como explicar a necessidade das fazendas no noroeste mineiro ; o nebuloso apartamento da avenue Foch ; a conta suíça, fartamente noticiada nos jornais, administrada pela filha de José Serra…?
Apesar do interesse político da questão, o que me perturba, na verdade, é sua dimensão psicológica. Considera-se, nas categorias psicanalíticas, que perverso é uma estrutura psíquica, formatada, portanto, na primeira infância. Se assim é, eles sempre o foram e apenas conseguiram nos (ou me) enganar, o que faz parte do quadro, por um bom tempo ou decidiram « chutar o pau da barraca » a partir de algum momento, ou seja, a moralidade privada cristã se torna de fato desprezível a partir do momento em que a condição humana segundo Hobbes se impõe ?
De toda maneira, muito do comportamento dúbio de FHC desses últimos tempos pode ser mais bem compreendido a partir daí : a ele não é permitido, por razões óbvias, assumir uma postura moralista lacerdista, mas, ao mesmo tempo, é preciso fazer « semblent » de que condena, em ocasiões escolhidas com cuidado, « excessos » com dinheiro publico ou arroubos judiciais como os que vivenciamos. É um equilíbrio delicado que lhe deve consumir muita energia. Já o outro escolheu fingir que não existe…
Podemos agora voltar à imagem do encontro que dá título a este texto. FHC teve de dar um passo na boa direção; poderia cair de vez da corda bamba. E nós nos regogizamos com seu movimento. É como se quiséssemos acreditar no restinho do rei-filósofo que deve ainda, se Deus quiser, morar dentro dele.
*Lorenzo Vitral é professor titular de linguística da Faculdade de Letras da UFMG.