O feminismo em “Pobres criaturas”

Imagem: Divulgação
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por NATHALIE REIS ITABORAÍ*

No mês da celebração das lutas feministas, um filme certamente para se ver, mas menos para se divertir e mais para se indignar

Mulheres foram (e ainda são) frequentemente comparadas a crianças, uma forma usual de negar sua autonomia (recurso historicamente empregado também contra indígenas e escravizados, para negar-lhes a capacidade de tomar decisões e ter posse plena de suas vidas). A narrativa apresentada no filme Pobres criaturas (direção de Yorgos Lanthimos, baseado no livro homônimo de Alasdair Grey, escrito em 1992) permite uma discussão do patriarcado e das formas de dominação em geral, ao levar ao extremo o poder que é exercido sobre as mulheres e crianças na sociedade, ali tratadas como menores.

A partir daqui, o texto conterá spoilers, por isso é recomendado assistir ao filme antes de acabar de ler. Esclareço também que não pretendemos julgar a qualidade estética do filme indicado ao Oscar, mas tão somente usar a história ali contada para uma reflexão sobre as desigualdades que pesam, há séculos, sobre mulheres e meninas.

A trama começa com um experimento científico em que o cérebro de uma criança é colocado no corpo de uma mulher adulta (encontrada pouco depois de morrer) que é reanimada. Têm-se assim os processos habituais de socialização de uma criança só que em um corpo adulto. É curioso, e cômico por vezes, para o público ver uma mulher adulta aprendendo a comer, andar, falar, e também aprendendo as regras da sociedade. A história dá muito destaque à descoberta da sexualidade e aos questionamentos da protagonista sobre poder e as expectativas masculinas, parecendo por vezes endossar o lema feminista “nossos corpos nos pertencem”, uma ironia, pois a história se inicia com o não pertencimento sequer dos corpos da criança e da mulher que juntas formam a protagonista.

A trama vai muito rápido das birras infantis diante da autoridade do “pai” até a formação de uma mulher adulta, consciente e decidida para tomar conta de sua vida, um processo que levaria pelo menos cerca de 20 anos, mas que, a julgar pelo não envelhecimento da personagem, se passou em dois a três anos.

Embora as respostas da protagonista aos homens e os seus supostos questionamentos da moral e sociedade vigentes possam, num olhar rápido, causar certa identificação e simpatia feministas, há uma evidente simplificação, e mesmo distorção, da ideia de emancipação das mulheres. Se o experimento em questão for tomado a sério, temos uma sucessão brutal de crimes contra a mulher e a criança: uma criança cujo cérebro foi retirado e implantado no corpo de sua mãe (que saberemos estava grávida e teria se matado por não suportar a dominação conjugal sob a qual vivia) – e podemos supor que poderia ter vivido em seu próprio corpo ao invés de ser parte de um experimento científico macabro; e esta criança num corpo de mulher adulta é oferecida em casamento (aliás, uma bandeira importante do feminismo no mundo é impedir o casamento infantil que expressa uma submissão extrema de meninas) e depois é permitida viajar com um homem que mal conhece, sendo destacada na narrativa sua intensa experiência sexual, sem evidenciar a extrema vulnerabilidade em que ela se encontra, do ponto de vista não apenas da sexualidade, mas também da autonomia material (sendo o dinheiro oferecido pelo seu criador-tutor roubado pelo amante, vivenciando ela a prostituição, que é extremamente romantizada pelo olhar masculino que domina a obra) e do direito de ir e vir (é presa pelo tutor, pelo amante e pelo ex-marido quando a reencontra).

Nesta saga patriarcal, o sofrimento feminino e infantil é inexistente ou minimizado, e a figura do criador-tutor é idealizada ao extremo (sintomaticamente é chamado “God”). Concessões são feitas ao fato de God ter crescido sob um pai igualmente tirano que usou seu corpo em experimentos científicos, o que ele replica, fazendo experimentos com outros corpos femininos jovens ou adultos nos quais implanta cérebros de crianças (o que a própria protagonista, já consciente do ocorrido, observa quando se vê diante de outro corpo feminino em situação semelhante à sua, repetindo o ciclo), uma expressão da dominação (pela ciência) sobre corpos femininos e infantis que cheira à pedofilia, se postularmos que o desejo do pedófilo se refere menos ao corpo infantil em si do que à completa submissão e não oposição a seus anseios de dominação que (o cérebro de) uma criança oferece.

Assim, a primeira camada do filme oferece uma celebração fácil sobre uma suposta resposta feminista à sociedade, fazendo rir dos questionamentos e das pretensões frustradas de controle do amante e do marido sobre a mulher, mas ao aprofundar em outras camadas, tem-se um retrato brutal da dominação patriarcal, legitimada no perdão da protagonista ao “pai” criador-tutor. Se a narrativa ficcional seria no todo impossível de acontecer na realidade, seus fragmentos são bastante frequentes e iluminam aspectos dos muitos crimes contra crianças e mulheres sustentados pelo patriarcado.

Se a superfície do filme oferece diversão e entretenimento, as camadas profundas mostram o quanto são importantes as lutas em defesa dos direitos das mulheres e das crianças. No mês da celebração das lutas feministas, é um filme certamente para se ver, mas menos para se divertir e mais para se indignar.

*Nathalie Reis Itaboraí é doutora em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da UERJ. É autora do livro Mudanças nas famílias brasileiras (1976-2012): uma perspectiva de classe e gênero (Garamond). [https://amzn.to/4caDzl9]

Referência


Pobres criaturas (Poor Things)
EUA, Reino Unido e Irlanda do Norte, 2023, 141 minutos.
Direção: Yorgos Lanthimos.
Elenco: Emma Stone, Willem Dafoe, Christopher Abbott, Mark Ruffalo.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
José Costa Júnior Lucas Fiaschetti Estevez Valerio Arcary Gilberto Maringoni Benicio Viero Schmidt Paulo Nogueira Batista Jr Lorenzo Vitral Atilio A. Boron Denilson Cordeiro Jean Pierre Chauvin Liszt Vieira Bruno Fabricio Alcebino da Silva Michael Löwy Luiz Marques Marcelo Módolo Renato Dagnino Celso Frederico Luiz Roberto Alves José Dirceu Eleutério F. S. Prado Bernardo Ricupero Yuri Martins-Fontes Armando Boito Ricardo Antunes Fábio Konder Comparato Marjorie C. Marona Ronaldo Tadeu de Souza João Adolfo Hansen Francisco Fernandes Ladeira Marilena Chauí Alysson Leandro Mascaro Remy José Fontana Paulo Capel Narvai Michael Roberts Bento Prado Jr. Thomas Piketty Luís Fernando Vitagliano Manchetômetro Ari Marcelo Solon Luiz Eduardo Soares Rafael R. Ioris Alexandre de Freitas Barbosa Ladislau Dowbor Salem Nasser Ricardo Fabbrini Igor Felippe Santos Leonardo Avritzer André Márcio Neves Soares Gabriel Cohn João Paulo Ayub Fonseca André Singer Rubens Pinto Lyra Celso Favaretto Luciano Nascimento Alexandre de Lima Castro Tranjan Marcos Silva Paulo Fernandes Silveira Eduardo Borges Vanderlei Tenório Francisco Pereira de Farias Leonardo Sacramento Paulo Sérgio Pinheiro Claudio Katz Jorge Branco Fernão Pessoa Ramos Ronald Rocha Mariarosaria Fabris Michel Goulart da Silva Everaldo de Oliveira Andrade José Geraldo Couto João Carlos Loebens Marcelo Guimarães Lima José Luís Fiori Gilberto Lopes Andrés del Río Anselm Jappe Marcos Aurélio da Silva Daniel Costa Eugênio Trivinho Marcus Ianoni Otaviano Helene Flávio Aguiar Tales Ab'Sáber Luiz Carlos Bresser-Pereira Sandra Bitencourt Walnice Nogueira Galvão Ricardo Musse Rodrigo de Faria Francisco de Oliveira Barros Júnior Tarso Genro Dennis Oliveira Daniel Brazil Luiz Renato Martins Andrew Korybko Samuel Kilsztajn Dênis de Moraes Luiz Werneck Vianna Flávio R. Kothe Slavoj Žižek Leda Maria Paulani Eliziário Andrade João Feres Júnior Alexandre Aragão de Albuquerque Plínio de Arruda Sampaio Jr. Ricardo Abramovay Henry Burnett Caio Bugiato Elias Jabbour Maria Rita Kehl Osvaldo Coggiola Mário Maestri Heraldo Campos Paulo Martins Carla Teixeira Valerio Arcary Boaventura de Sousa Santos Luiz Bernardo Pericás Daniel Afonso da Silva Priscila Figueiredo Lincoln Secco Kátia Gerab Baggio Airton Paschoa Chico Whitaker Juarez Guimarães João Sette Whitaker Ferreira José Micaelson Lacerda Morais Jorge Luiz Souto Maior Berenice Bento Manuel Domingos Neto Vladimir Safatle Luis Felipe Miguel João Lanari Bo Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Eleonora Albano Antonio Martins Bruno Machado Leonardo Boff Vinício Carrilho Martinez Marilia Pacheco Fiorillo José Raimundo Trindade Annateresa Fabris Fernando Nogueira da Costa Henri Acselrad Érico Andrade João Carlos Salles Jean Marc Von Der Weid Afrânio Catani Ronald León Núñez Gerson Almeida Julian Rodrigues Milton Pinheiro Carlos Tautz Tadeu Valadares Antônio Sales Rios Neto José Machado Moita Neto Matheus Silveira de Souza Eugênio Bucci Chico Alencar Antonino Infranca Sergio Amadeu da Silveira

NOVAS PUBLICAÇÕES