Por RAFAEL GALVÃO DE ALMEIDA*
Bucha mostra a verdadeira face do discurso anti-globalista
Na minha adolescência, eu lia muito Mídia sem máscara, Olavo de Carvalho, livros de ex-comunistas, ex-satanistas, e outros sites de conspiração – de fato, aprendi inglês porque o conteúdo em português não bastava. Eu me lembro até hoje da frase do filósofo ex-comunista Bernard-Henri Lévy, “aplique o socialismo em qualquer país e você terá um gulag no final”. Lembro de vários argumentos bizarros, desde o clássico de que microchips eram a marca da besta até um particularmente estranho que dizia que a gravidade não existia, bastava olhar para o nível da água e que era, na verdade, uma conspiração da agenda gay. Todas essas conspirações tinham em comum era o fato de que estavam lutando contra a Nova Ordem Mundial e o marxismo cultural, representada pelo globalismo de George Soros.
Após entrar para a faculdade e percebendo que a maioria daquelas pessoas não sabiam do que estavam falando,[i] foquei em outras coisas e achei que nunca mais teria que lidar com isso e ter de ouvir novamente o termo “globalismo”. Ledo engano.
A ascensão do novo conservadorismo fez com que esses discursos se propagassem. Logo, várias pessoas começaram a lutar contra o “globalismo”. No maior grupo de Facebook de economia, quase toda semana tinha alguém postando sobre o George Soros, de como ele estava financiando um movimento globalista. Aos poucos, o discurso anti-globalista começou a se espalhar. As igrejas, principalmente, começaram cada vez mais a falar sobre marxismo cultural através de seminários. Hoje, essas coisas são discutidas abertamente na política.
Isso começou a ocorrer em vários países, além do Brasil: nos Estados Unidos com o movimento QAnon, na Alemanha com o seu Querdenker, entre outros. A pandemia revelou muitos deles, com suas teorias conspiratórias. Praticamente todos os países do mundo têm seu movimento conservador apoiado nessas teorias.
Mas pode se dizer que a Rússia foi um dos mais bem-sucedidos. Devastada pelo desastre econômico pós-soviético patrocinado pelo Ocidente, ideologias conspiratórias encontraram terreno fértil na Rússia de Putin. Como demonstrou Benjamin Teitelbaum, em Guerra pela eternidade, um ocultista ambicioso chamado Aleksandr Dugin cresceu em poder na Rússia de Putin, com sua ideologia eurasiana, amparado pelas ambições imperiais russas.
Em um mundo normal, Dugin era para ser um excêntrico que deveria sobreviver defraudando pessoas que acreditam em astrologia em algum canto obscuro do país, assim como Olavo de Carvalho e Steve Bannon. Mas ele se tornou um dos principais filósofos de Putin porque, para o Capital, um excêntrico é essencialmente um ativo sem risco: se não der certo, pode-se simplesmente negar qualquer relação ou fazer algum ato performativo de baixo custo (como uma nota à imprensa anunciando corte de relações), mas se der certo, tem-se um perfeito intelectual orgânico/soldado ideológico motivado ao seu lado.
Dugin fala coisas agradáveis às elites russas. Ele olha para um passado glorioso de uma Rússia pura. A Rússia deu uma guinada à direita, com repressões sociais e amparada pelo foco em suprir matérias-primas para a Europa e, com isso, crescia e se expandia militarmente. Após intervenções na Chechênia, Geórgia, Síria, a Rússia invade a Ucrânia, amparada pela ideologia eurasiana.
Inicialmente o que se pensava que seria uma guerra rápida, tornou-se um lamaçal para o exército russo. Soldados russos sem nenhuma experiência foram jogados pelos seus comandantes contra um exército ucraniano muito mais motivado e que se tornava cada vez mais amparado pelo Ocidente. Com isso, os russos recuaram de Kiyv e agora tentam segurar território no sul da Ucrânia, cada vez mais isolados pela comunidade internacional.
Isso é um golpe profundo para a visão de mundo russa. O afundamento do cruzador Moskva foi um golpe pesado. Mas deve se prestar atenção para a retórica russa em relação à Ucrânia. Não é somente as falsas acusações de nazismo, mas a ideia de que a Rússia deve liderar uma cruzada contra a “satânica nova ordem mundial”. Isso está escrito nos livros-textos de seus oficiais. A Igreja Ortodoxa Russa abençoa a guerra e, neste ponto, não é nada mais que um departamento de propaganda do governo russo. Ela também promove o discurso anti-globalista e anti-marxismo cultural.[ii]
E deu no que deu. Com o abandono do objetivo de conquistar Kyiv, as forças russa recuam, revelando a extensão dos crimes de guerra. Matança indiscriminada, estupros, rapto de cidadãos ucranianos, queima de livros em ucraniano, supressão da língua ucraniana. Um caso terrível foi quando uma ligação interceptada de uma esposa de um soldado russo dando uma licença para estupro ao marido.
Ainda assim, apesar da ofensiva ter fracassado no objetivo principal de instalar um regime fantoche na Ucrânia e das sanções, a aprovação de Putin pelos russos continua alta. A mídia estatal russa fica espalhando histórias de que o massacre de Bucha foi uma farsa, que o exército russo está vencendo e faz parte do plano do mestre Putin – os ucranianos merecem o que está acontecendo, porque o inimigo da OTAN é terrível demais e eles devem ser incorporados à Rússia pela força. Se isso não é imperialismo, não sei mais o que é.[iii]
Um inimigo como o globalismo e o marxismo cultural é um inimigo terrível demais. Eles querem destruir a família e o mundo, praticar sua pedofilia impune e tomar seu adenocromo para sempre. E por ser terrível demais, o pior crime que se pode cometer é ficar inerte. Assim, entra-se em um vale-tudo divino. Por isso o discurso anti-globalista é parte fundamental da máquina de guerra russa. Esse mesmo discurso faz parte das máquinas políticas de governos conservadores.
Uma boa parte dos conservadores apoia Putin. Até o início da guerra, Donald Trump, cuja base de apoio compartilha do movimento QAnon, sempre elogiou Putin, até no início da guerra – apenas quando percebeu que Putin estava sofrendo baixas demais é que ele passou a ter uma postura mais crítica, o que faz parte do seu teatro[iv]. A Fox News, também demonstrou apoio quase que incondicional a Putin, com Tucker Carlson – o âncora mais popular da rede – lançando dúvidas sobre o massacre em Bucha.
Marine Le Pen prometeu apoiar Putin se eleita. Contra a maioria da União Europeia, o presidente húngaro Viktor Orban demonstrou simpatias com Putin. A direita cristã americana se viu com afinidades com a Igreja Ortodoxa Russa e o pastor Franklin Graham, um dos mais tenazes guerreiros culturais desta ala, nunca escondeu sua simpatia pelo patriarca Kiril, tornando-se um servo da política ao invés de Deus, desonrando o legado do seu pai, Billy Graham. E é claro, o governo Bolsonaro se recusa a condenar a Rússia.
Por falar em Brasil, na mesma semana em que o massacre em Bucha foi descoberto, Eduardo Bolsonaro zomba de Miriam Leitão, como se o sofrimento dela não valesse nada – ou pior, que ela merecesse. Agora pergunto, além obviamente da escala, existe diferença entre a intenção de Eduardo Bolsonaro e a ação dos soldados russos cometendo crimes de guerra? Eles são da mesma laia, a tendência é Bolsonaro invejar o controle absoluto que Putin tem na Rússia, já que no Brasil existe oposição mais bem articulada.
O conservadorismo é um fracasso acadêmico, porque o que os conservadores querem conservar, como colocou aptamente Corey Robin em The reactionary mind, não são os valores e práticas tradicionais, mas uma estrutura de privilégios da qual eles se julgam merecedores. Por isso, ele precisa recorrer a teorias da conspiração, ao discurso de doutrinação[v] e, obviamente, ao discurso anti-globalista.
Precisa incutir o medo na população, o medo de perda de privilégios que tem como alvo principal as pessoas mais velhas, o medo de que elas irão perder os benefícios que elas lutaram tanto para conquistar. Talvez o leitor já tenha ouvido falar da frase “se você não é socialista antes dos 25, você não tem coração; se você é socialista depois dos 25, você não tem cérebro” e de suas variantes, mas vendo essa guerra posso finalmente entender a lógica por trás disso: o medo de perder benefícios e privilégios – que muitas vezes foram obtidos por meio da exploração estrutural, tal como a direita francesa sendo herdeira dos franceses expulsos da Argélia que exploraram comercialmente a colônia por anos e tiveram que sair com a independência – é o que guia esse tipo de lógica.
Isso ocorre por que eles vão usurpar o que é de direito dessas pessoas. E eles podem ser qualquer coisa: ucranianos, imigrantes, esquerdistas, judeus, índios, negros, o que for conveniente. Eles são um inimigo terrível demais para lidar de forma limpa, por isso qualquer ação contra eles é justificada. Por isso que a propaganda russa convenceu uma boa parte do povo russo a apoiar a guerra. Por isso que a direita americana está numa batalha para banir livros das escolas. Por isso que se Israel iniciar uma campanha de extermínio total dos palestinos, os evangélicos americanos e brasileiros irão celebrar como obra de Deus[vi]. É assim como o discurso anti-globalista evolui de fóruns obscuros de internet para uma força política e traz todas as suas pragas consigo.
O discurso anti-globalista cria um inimigo demasiadamente conveniente. A luta contra esse inimigo santifica qualquer ação contra ele, desde calúnias até assassinatos e estupros. No fim, parafraseando Lévy acima, aplique esse conservadorismo em qualquer país e no final você terá Bucha, Srebenica e, ultimamente, Auschwitz.
*Rafael Galvão de Almeida é doutor em economia pela UFMG.
Notas
[i] Eu não sei vai fazer sentido para os leitores não-cristãos, mas isso ocorreu quando eu cheguei nas últimas duas páginas de um dos livros desses ex-satanistas: ele escreveu que, quando estava sofrendo por causa dos satanistas, ele clamou a Deus e Deus respondeu a ele que ele não deveria reclamar, pois Jesus também sofreu na mão dos demônios no inferno. Eu sabia que isso era uma doutrina errada, mas quando li isso, eu quase que jogo o livro no chão. O autor estava dizendo que Deus estava confirmando uma doutrina errônea. A partir daquele dia passei a ler tudo com mais cuidado.
[ii] Teólogos ortodoxos denunciaram a teologia de “Mundo Russo” como herética e imperialista.
[iii] Por isso que a esquerda deve resistir à tentação de tomar o partido da Rússia contra os Estados Unidos. A Rússia sempre foi um país imperialista, algo percebido por Lênin, e foi assim também durante a era da União Soviética. Não se luta contra imperialismo com mais imperialismo.
[iv] Vários líderes conservadores, por outro lado, uniram-se contra a Rússia, como Boris Johnson, Andrzej Duda e Recep Erdoğan, o que demonstra a frivolidade de uma “Internacional Conservadora”: no momento em que eles se tornam um inconveniente para a política doméstica e os “valores tradicionais” de cada nação, eles estão dispostos a sacrificar uns aos outros.
[v] Quando movimentos como o Escola Sem Partido reclamam de doutrinação, na verdade eles estão reclamando que a doutrinação não é feita do jeito deles.
[vi] Digo isso como experiência própria em relação ao nível de apoio que considero incondicional demais da teologia pré-milenista em relação a Israel. Eu me lembro da época em que tinha Facebook, uma missionária brasileira entre os palestinos escreveu que o governo israelense também discrimina os palestinos não-islâmicos, incluindo palestinos evangélicos e ela foi chamada das coisas mais vis por outros cristãos por não ter dado apoio incondicional à Israel.