O heliocentrismo e seu negacionismo

Bill Woodrow, Falaropo de Wilson (94_03), 1994
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Por JOSÉ RICARDO FIGUEIREDO*

Depois do heliocentrismo ter sido visto como tema legítimo de debate entre os escolásticos no século XIII e a teoria de Copérnico ter sido vista com simpatia no Vaticano, houve uma radicalização do dogma geocentrista

São bem conhecidos a condenação da Igreja Católica ao heliocentrismo de Copérnico e o julgamento de Galileu. Entretanto, nem sempre o geocentrismo havia sido dogma católico, tal como se tornou nos séculos XVI e XVII. O que explicaria este retrocesso dogmático?

Como se sabe, prevaleceu na Antiguidade e no período medieval entre árabes, persas e europeus o geocentrismo, apoiado na filosofia de Aristóteles (384-322 a.C.) e na astronomia de Claudio Ptolomeu (90-168 d.C.). Em Aristóteles, a Terra ocupava o centro do Universo, cercada pelas esferas dos sete planetas, no sentido antigo, Lua, Mercúrio, Vênus, Sol, Marte, Júpiter e Saturno, e pela “Oitava Esfera”, a das estrelas mais distantes. O espaço sublunar seria o lócus dos fenômenos irregulares, transitórios, corruptíveis, e seria formado pelos quatro elementos terra, água, ar e fogo, enquanto o espaço celestial seria o lócus de movimentos circulares, regulares e perfeitos, formado por uma quintessência distinta dos elementos terrestres.

O astrônomo Cláudio Ptolomeu, em sua obra conhecida pelo nome árabe Almagesto, trata destes astros, com a mesma concepção geral, mas baseado em medições, e a perfeição idealizada não se confirma plenamente. A maior dificuldade do geocentrismo (R. Rigitano, comunicação pessoal) sempre foram Mercúrio e Vênus: enquanto os planetas externos Marte, Júpiter e Saturno, em sua órbita em torno do Sol, efetivamente dão volta em torno da Terra, os planetas internos, Mercúrio e Vênus, não. A astronomia ptolomaica considerava-os através de artificiosos epiciclos, ciclos sobre ciclos. Para acomodar os dados das órbitas dos astros em geral a círculos, outro artifício eram as equantes, pontos em torno dos quais os astros se moveriam, e que não seriam precisamente o centro da Terra [1].

Por conta mesmo destas dificuldades, já na Antiguidade houve defensores do heliocentrismo, como Filolao de Creta, Nicete de Siracusa e Aristarco de Samos (310-230 a.C.), que atribuíram à Terra movimentos diários e anuais em torno do Sol [2].

Entre os escolásticos, a legitimidade da discussão foi expressa em 1277 por Etienne Tempier, arcebispo de Paris. Admitiram um movimento rotacional para a Terra, não necessariamente ligado ao ciclo diário, Guilherme de Ockhan (1285-1347), Jean Buridan (1301-1358), Alberto da Saxônia (1316-1390), e particularmente Nicolau de Oresme (1320? – 1382), qualificado por Dugas como predecessor de Copérnico, embora seu Tratado sobre os Céus e o Mundo não tenha sido publicado, e não deva ter influenciado Copérnico.

Oresme asseverara que “nenhuma observação poderia demonstrar que os Céus se movem com um movimento diurno, e que a Terra, não”, argumentando em termos da relatividade do movimento: “Se um homem fosse colocado no Céu … se este homem … puder ver a Terra claramente, e apanhar as montanhas, os vales, rios, cidades e castelos, parecerá a ele que a Terra se move diuturnamente, tal com a nós na Terra, o Céu parece mover-se.” Oresme também responde a argumentos baseados em citações das Escrituras interpretando a Bíblia de forma não literal. A respeito da citação de que “O sol nasce e se põe, e volta a seu lugar … Deus estabeleceu o mundo da Terra que não será movido”, responde que as Escrituras são consistentes com a fala dos seres humanos comuns. Acerca do episódio em que o Sol parara no tempo de Josué, retomando sua jornada ao tempo do rei Ezequias, diz ele que isso era ilusão e que, na verdade, a Terra parara.

Influência direta sobre Copérnico teria a obra Epitome (1496) de Johannes Müller von Königsberg, ou Regiomontanus (1436-1476), que sumarizou o conteúdo do Almagesto, adicionou observações mais recentes e teceu comentários críticos, em particular sobre uma previsão não confirmada: pelo modelo ptolomaico, a distância da Lua à Terra deveria variar muito, de forma que seu tamanho aparente deveria variar muito mais do que se observa [1].

Nicolau Copérnico (1473-1543) foi cônego católico, administrador, médico e astrônomo. Não muito depois de 1510 fez circular entre amigos o manuscrito Commentarioulus (Pequeno comentário). O manuscrito foi objeto de uma palestra no Vaticano assistida pelo Papa Clemente VII e vários cardeais, um dos quais, Nicholas von Schönberg, escreveu a Copérnico estimulando a publicação. Entretanto, este só iria publicar sua teoria após a cooperação de Georg Joachim de Porris, cognominado Rheticus (1514-1574), professor de matemática da Universidade de Wittenberg, que escreveu o panfleto introdutório Narratio Prima (Primeiro relato, 1540).

Copérnico redigiu o seu relato completo De revolutionibus orbium caelestium (Das revoluções dos corpos celestes, 1543), dedicando-o ao Papa Paulo III, e incluindo a carta de apoio do cardeal von Schönberg. Na sua obra, Copérnico desenvolveu um estudo dos vários sistemas de mundo desde a Antiguidade. Utilizou observações astronômicas próprias, mas, principalmente, incorporou dados da Astronomia ptolomaica convertidos à nova formulação. Partiu de Mercúrio e Vênus para demonstrar a centralidade do Sol para os planetas.

Rheticus entregou a edição do De revolutionibus ao clérigo luterano Andreas Osiander que, sem comunicar ao autor, incluiu um prefácio não assinado dizendo que o livro não trataria de uma descrição real do Universo, mas de “um cálculo coerente com as observações”. De revolutionibus foi publicado no ano do falecimento de Copérnico, 1543. Segundo Ronan [3], “supõe-se que uma cópia do texto o tenha alcançado no leito de morte”. (Pode-se também supor que Copérnico tenha enfartado ao ver o que Osiander fizera com sua teoria.). Ronan avalia que este acréscimo indevido tenha sido motivado pela forte desaprovação de Lutero (1483-1546) à discussão introduzida por Rheticus: “O louco vai virar toda a ciência da Astronomia de cabeça para baixo. Mas, como declara o Livro Sagrado, foi ao Sol e não à Terra que Josué mandou parar”. (O reformador não precisa ser original). Depois da publicação, o livro de Copérnico foi também combatido por outro reformador, Melanchton (1497-1560).

Tycho-Brahe (1546-1601) ocupa um lugar destacado na astronomia pela precisão dos instrumentos que criou e pela riqueza de observações que registrou, que posteriormente embasariam as leis de Kepler. O sistema-mundo proposto por Tycho-Brahe mantinha a Terra como centro do Universo e centro dos movimentos do Sol, da Lua e da “Oitava Esfera”, mas os outros cinco planetas girariam em torno do Sol. É apresentado como “hipótese completamente de acordo com o fenômeno e os princípios matemáticos sem ser repugnante à física e sem incorrer em censuras da teologia”. Era assim, explicitamente, uma solução de compromisso entre a precisão do sistema de Copérnico e a aprovação religiosa do sistema de Ptolomeu.

Johannes Kepler (1571-1631) trabalhou como assistente de Tycho-Brahe. Evitava polemizar, apresentando de forma neutra os sistemas-mundo de Ptolomeu, Copérnico e Tycho-Brahe. Ele realizou suas próprias medições, e foi herdeiro dos registros de Brahe, a partir dos quais deduziu suas três leis. A lei das áreas e a lei do movimento elíptico dos planetas foram publicadas em 1609, a lei que relaciona os períodos de circulação e a distância ao Sol, em 1619.

Galileu Galilei (1564-1642) consolidara-se em mecânica ao apontar a solução do problema dinâmico, que tem história específica. Para Aristóteles, os movimentos forçados exigiam causa permanente, de forma que a velocidade de um corpo relacionar-se-ia à força nele aplicada. Esta concepção tinha dificuldade de explicar o movimento de uma flexa, ou mesmo de uma pedra, depois que se separam do arco ou da mão que as projetaram. Entre árabes e europeus da Idade Média desenvolveu-se a idéia do impetum, que se esvairia no movimento. Galileu apresentou a primeira formulação da idéia moderna de quantidade de movimento, que se mantém por inércia ou varia em decorrência de força externa.

Bernal [4] destaca a originalidade de Galileu por fundar o método experimental. Os sábios do século XIII até haviam empregado experimentos ilustrativos, mas Galileu realizava experimentos exploratórios e de caráter quantitativo, adequados para uma formulação matemática dos fenômenos.

A contribuição de Galileu ao heliocentrismo foi associada a uma luneta que construiu em 1609. Com ela observou satélites acompanhando Júpiter ao longo de sua trajetória anual, sugerindo o mesmo para a Lua em relação à Terra. Observou fases de Vênus e manchas solares, que permitiram mostrar a rotação destes astros e subsidiar a hipótese de rotação da Terra. Foi forçado a retratar-se de sua visão em sua primeira acusação pela Inquisição em 1615. Entretanto, publicou em 1632 seu Quatro diálogos sobre os dois principais sistemas do mundo, aqueles de Copérnico e Ptolomeu. Foi novamente forçado a renunciar a seus princípios e condenado a prisão domiciliar perpétua.

Bernal [3] avalia que o Santo Ofício foi relativamente benigno com Galileu, que tinha sólido prestígio científico e amigos poderosos. Outros não tiveram a mesma sorte. O filósofo e místico Giordano Bruno (1548-1600) foi condenado à fogueira por heliocentrismo e outras heresias. Giovanni Domenico Campanella, ou Tommaso Campanella (1568-1639), que entre muitas outras obras publicou Apologia pro Galileo, mathematico Florentino (Frankfurt, 1622), esteve preso por 27 anos em Nápoles, sem deixar de ser perseguido depois. O próprio livro de Copérnico foi condenado oficialmente pela Congregação dos Cardeais Inquisidores em 1616.

Na dinâmica de Galileu, a idéia de inércia era estendida de forma imprecisa para os movimentos circulares, como se as trajetórias circulares dos astros ocorresse por inércia. Estes movimentos foram melhor compreendidos por Christiaan Huyghens (1628-1697), que restringiu o movimento inercial ao movimento retilíneo uniforme, e para os movimentos curvos formulou a teoria da força centrífuga, a tendência dos corpos para fora das curvas em velocidade. Isaac Newton (1642-1727) reformulou a concepção de Huyghens, em termos recíprocos de força centrípeta, a que mantém o movimento circular ou curvo [5], de forma que os movimentos retilíneos e curvos são descritos pela mesma lei geral. Partindo destes princípios, Newton demonstrou que a lei de atração gravitacional entre os corpos, pela qual a força de atração recíproca é proporcional às suas massas e inversamente proporcional ao quadrado das distâncias, tinha como conseqüências necessárias as três leis observadas por Kepler. Esta unificação das mecânicas celestial e terrestre foi um gigantesco passo científico, a partir do qual não haveria espaço para o geocentrismo em qualquer ambiente acadêmico.

Em síntese, depois do heliocentrismo ter sido visto como tema legítimo de debate entre os escolásticos no século XIII e, no começo do século XVI, a teoria de Copérnico ter sido vista com simpatia no Vaticano, houve uma radicalização do dogma geocentrista na Igreja Católica ao longo dos séculos XVI e XVII, refletido nos processos contra Giordano Bruno, Campanella e Galileu, assim como nos cuidados de Tycho-Brahe e de Kepler ao exporem suas realizações. O que teria causado tal radicalização dogmática?

Para Gribbin [1]: “a Igreja Católica se voltava contra o sistema copernicano do Universo porque este foi tomado pelo herético Giordano Bruno”. Com ele concorda Ronan [4], para quem a mudança fora devida, “em grande parte, ao aberto apoio à teoria heliocêntrica pelo turbulento e arrogante Giordano Bruno”. Para estes autores, Bruno seria adepto do hermetismo, associado a graves heresias, a ponto dos autores parecerem concordar com sua condenação à fogueira. Mas não explicam porque as demais heresias de Bruno exacerbariam a gravidade do heliocentrismo, e nem, se o problema era Bruno, porque sua condenação à morte não satisfez aos inquisidores.

Uma hipótese mais convincente é sugerida por Dugas [2], observando que a Igreja Católica no século XIII, “tolerante por causa de seu poder, teve a sabedoria de afastar questões a priori contra qualquer desvio do geocentrismo”. Ao contrário, a Igreja Católica dos séculos XVI e XVII tinha seu poder ameaçado pela Reforma. Como se viu pelas críticas de Lutero e de Melanchton, a Igreja Católica arriscava-se a ser acusada de herética se endossasse seu filho Copérnico, tendo contra si o senso comum. O dogmatismo e a radicalização não surgiam do debate científico nem do debate teológico, mas do confronto político.

*José Ricardo Figueiredo é professor aposentado da Faculdade de Engenharia Mecânica da Unicamp. Autor de Modos de ver a produção do Brasil (Autores Associados\EDUC). [https://amzn.to/40FsVgH]

Bibliografia


[1] Gribbin, J., Science A History 1543-2001, Penguin Books.

[2] Dugas, R., A History of Mechanics, Dover Publications, New York, 1988.

[3] Bernal, J. D., História Social de la Ciencia, v.1, La ciência en la historia, Ediciones Península, Barcelona, 1967.

[4] Ronan, C. A., História Ilustrada da Ciência, v.III Da Renascença à Revolução Científica, Zahar, Rio de Janeiro, 1983.

[5] Crowe, M. J. Mechanics from Aristotle to Einstein, Green Lion Press, Santa Fe, New Mexico, 2007.


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