O homem do casaco alemão

Wassily Kandinsky, Black and Violet, 1923.
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por BERNARDO AJZENBERG*

Comentários sobre o livro de Júlio Ambrozio

Um defunto na orla carioca e um rapaz esquisito que lhe surrupia os documentos. Assim começa O homem do casaco alemão, novela breve que mistura investigação policial e existencialismo, com tratamento estilístico enxuto, econômico, minimalista.

O protagonista se chama Antônio Arapuca do Alto. Como um zumbi macunaímico, de posse dos tais documentos ele sai à cata dos parentes do morto. Paralelamente, uma dupla de policiais mambembes inicia a investigação dita oficial do caso, que se desenrola entre o Rio e a serrana Petrópolis.

As pistas são inconclusas, o movimento da apuração é lerdo e, ao final, depois de acompanharmos as peripécias de classe média baixa de Arapuca, nem sequer sabemos qual é a conclusão correta.

Isso não deve desanimar o leitor, no entanto, já que o principal elemento da obra de Júlio Ambrozio não está nas tramas ou no suspense que poderia advir de um enredo como esse. Está, sim, na maneira elíptica de sua expressão, no modo de construir diálogos e descrições como se tivesse à mão uma peneira de palavras. Só o essencial sobrevive à filtragem da escrita desse autor.

Tal enfoque formal certamente dificulta a compreensão do livro numa primeira leitura, mas aos poucos, despojando-se de uma fruição mais tradicional, terá valido a pena, para o leitor, adentrar esse universo narrativo limpo e desadjetivado.

Veja, como exemplo, a seguinte descrição: “O automóvel cruzou a contramão, subindo no canteiro. O nevoeiro sobejava. Alaor puxou o freio. Firmou as vistas. Empunhou a escopeta, forçando o trinco. O calor assava a grama e fervia o lago. O delegado derivou a mão para o interior do paletó. Tomou da garrafinha de todo dia. Enxugou a boca e entroncou a voz…”.

Ou então a montagem deste diálogo entre Arapuca e uma mulher de nome Zilá Bauer, com quem ele transa, na casa dela, situada “bem na curva do elevado”:

“Fitou a parede. E falou:
– Este aqui, é qual?
Os carros seguiam.
– Esse? Ah, é meu sobrinho.
Como sempre o fizeram.
– Zilá, por que não teve um miúdo?
Uma ambulância acuou”.

Ambrozio, petropolitano, não resistiu à tentação de construir, em O homem do casaco alemão um delegado “erudito” que faz referências a Verlaine, Hammet, Stefan Zweig e a outros nomes da cultura universal. Apesar de soar artificial e repetitivo, esse recurso não chega, porém, a comprometer o livro.

Fica marcada, sim, a ousadia de seu método ressequido e árido de composição. A certa altura, por exemplo, Arapuca simplesmente desaparece, de um modo súbito que não vale explicitar aqui para não entregar o jogo do autor, deixando-nos com a sensação de estar visualizando fotogramas espalhados pelo ar.

Típico, talvez, de uma época meio besta, de generalizada fragmentação, em que, expressão dela, a narrativa se dilui diante dos nossos olhos, como as ondas na areia de Copacabana. Se houver um morto no meio da praia, então, melhor ainda.

*Bernardo Ajzenberg é jornalista e escritor. Autor, entre outros livros, de Minha vida sem banho (Rocco).

Publicado originalmente no jornal Folha de S. Paulo, em 16 de março de 1997.

Referência


Júlio Ambrozio. O homem do casaco alemão. São João del Rey. Ed. Ponte da Cadeia, 85 págs.

 

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • A colonização da filosofiamar estacas 14/11/2024 Por ÉRICO ANDRADE: A filosofia que não reconhece o terreno onde pisa corrobora o alcance colonial dos seus conceitos
  • A massificação do audiovisualcinema central 11/11/2024 Por MICHEL GOULART DA SILVA: O cinema é uma arte que possui uma base industrial, cujo desenvolvimento de produção e distribuição associa-se à dinâmica econômica internacional e sua expansão por meio das relações capitalistas
  • O entretenimento como religiãomóveis antigos máquina de escrever televisão 18/11/2024 Por EUGÊNIO BUCCI: Quando fala a língua do rádio, da TV ou da Internet, uma agremiação mística se converte à cosmogonia barata do rádio, da televisão e da internet
  • Ainda estou aqui — habeas corpus de Rubens Paivacultura ainda estou aqui 2 12/11/2024 Por RICARDO EVANDRO S. MARTINS: Comentário sobre o filme dirigido por Walter Salles
  • Os concursos na USPMúsica Arquitetura 17/11/2024 Por LINCOLN SECCO: A judicialização de concursos públicos de docentes na USP não é uma novidade, mas tende a crescer por uma série de razões que deveriam preocupar a comunidade universitária
  • A execução extrajudicial de Sílvio Almeidaqueima de livros 11/11/2024 Por MÁRIO MAESTRI: A denúncia foi patrocinada por uma ONG de raiz estadunidense, o que é paradoxal, devido à autoridade e status oficial e público da ministra da Igualdade Racial
  • O porto de Chancayporto de chankay 14/11/2024 Por ZHOU QING: Quanto maior o ritmo das relações econômicas e comerciais da China com a América Latina e quanto maior a escala dos projetos dessas relações, maiores as preocupações e a vigilância dos EUA
  • A falácia das “metodologias ativas”sala de aula 23/10/2024 Por MÁRCIO ALESSANDRO DE OLIVEIRA: A pedagogia moderna, que é totalitária, não questiona nada, e trata com desdém e crueldade quem a questiona. Por isso mesmo deve ser combatida
  • Ainda estou aquicultura ainda estou aqui 09/11/2024 Por ERIK CHICONELLI GOMES: Comentário sobre o filme dirigido por Walter Salles
  • Antonio Candido, anotações subliminaresantonio candido 16/11/2024 Por VINÍCIUS MADUREIRA MAIA: Comentários sobre os mais de setenta cadernos de notas feitos por Antonio Candido

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES