Por LEONARDO SACRAMENTO*
Tolera-se o negro, desde que aponte sua práxis para o embranquecimento
Antônio Risério faz parte de movimentos identitários brancos. Embora brancos e supremacistas, esses grupos apoiam-se na miscigenação, entendida como o meio da formação do brasileiro médio, que seria branco porque teria passado por um amplo processo de embranquecimento ao longo de gerações. A miscigenação seria o meio da formação de um novo brasileiro, branco, mas detentor, por meio da incorporação genético-cultural, dos supostos legados dos africanos e dos indígenas.
Esse grupo se reestrutura entre 2007 e 2008, quando foi aprovada a Lei de Cotas, o Estatuto da Igualdade Racial e a Lei 10.639 (História da África e dos afro-brasileiros). Esse grupo promoveu o lançamento de alguns livros e de um manifesto em 2006, liderado por Demétrio Magnoli e Caetano Veloso,[i] amplamente repercutido pelo jornal O Globo, Folha de São Paulo e O Estado de São Paulo. Magnoli iniciara uma cruzada contra as cotas raciais, lançando o livro Uma gota de sangue, em 2009. Na prática, das partes que cabem ao Brasil, seu livro é uma defesa de Gilberto Freyre e uma refutação anticientífica e negacionista dos estudos que comprovariam o racismo no Brasil, dando a entender que a racialização seria uma importação biologizante ante o povo brasileiro. A melhor forma de superar o racismo seria negar de forma idealista o conceito de raça. Seu livro acabou se tornando objeto de estudos da reação conservadora da época, a despeito das pretensões de ineditismo intelectual do autor.
Destacam-se no ano de 2008 uma coletânea de textos Divisões perigosas: políticas raciais no Brasil contemporâneo e o livro Cidadania no Brasil: o longo caminho, esse de José Murilo de Carvalho. Nos dois livros cria-se, como reação branca da classe dominante e de sua intelectualidade oficial, o mito de Palmares escravagista, popularizado depois por Narloch (outro articulista da Folha e isso não é uma coincidência). Não há um dado sequer, absolutamente nada, apenas uma citação autoral de um parágrafo. Porém, na imprensa, o mito foi criado como reação às políticas afirmativas e à ascensão de movimentos sociais negros vinculados à africanidade. Um ano depois, José Murilo de Carvalho escreveria uma introdução para Cartas de Erasmo, de José de Alencar, pela Academia Brasileira de Letras, na qual afirmara que Alencar não lhe pareceria escravagista, apenas conservador – outra citação autoral, desta vez de uma linha. Assim como o livro publicado um ano antes, também não explicava, apesar das 400 páginas das cartas do romancista defendendo abertamente o escravagismo e de um retumbante consenso científico.
Tolera-se o negro, desde que aponte sua práxis para o embranquecimento. Para esses grupos, vinculados a uma herança freyriana, a africanidade organizada em movimentos políticos passou a ser considerada uma cultura exógena à formação do brasileiro. Da mesma forma, a luta política fincada no rompimento da ideia de miscigenação passou a ser considerada estrangeirismo. Destacam-se nesse grupo os defensores do legado dos bandeirantes, inclusive dentro de parte da esquerda. Nesse momento também foi publicado Não somos racistas, de Ali Kamel, o árabe que se embranqueceu – o “somos” indica que ele se vê como um branco não racista. Chamo esse processo de mulatismo, a emulação sistêmica de ascensão social por meio do embranquecimento e da assunção da cultura europeizante.
No caso, o Kamel embranquecido defende a miscigenação como legado brasileiro que serviria de modelo civilizacional. O método desses grupos é simples e comum: o racismo é uma chaga norte-americana; no Brasil, se há racismo, seria um racismo cordial que apontaria para uma Democracia Racial. Para chegarem a esse “resultado”, negam os dados ou utilizam-nos para fazer com que a realidade se encaixe, como fez Risério[ii] com suas citações sem sentido, as quais seriam facilmente contestadas em uma simplória banca de TCC em algum curso que exige apenas um artigo.
A miscigenação como “legado” também é defendida por tropicalistas, como Caetano Veloso, que em 2006 lançou uma música chamada “O herói”, posicionando-se contra a assunção da negritude em detrimento do mulatismo – é o mesmo ano do manifesto contra o Estatuto da Igualdade Racial. Assim como Risério, seu conterrâneo baiano, dizia que o movimento negro da época consistia em um estrangeirismo indevido à nacionalidade brasileira. Dizia Caetano: “Já fui mulato, eu sou uma legião de ex-mulatos, quero ser negro 100%, americano, sul-africano, tudo menos o santo que a brisa do brasil briga e balança”. Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo para publicidade do disco novo, Caetano defendeu: “Eu acho que, no fim das contas, esse movimento, quando chegar à sua plenitude, se não houver um desvio alienante, vai reencontrar esses conteúdos brasileiros, por causa de nossa muito profunda miscigenação e da tradição de não manifestar o ódio racial”.[iii] No Roda Vida, em dezembro de 2021, ele reproduziu essa besteira. Quem decide qual é a nacionalidade brasileira? Um doce para quem acertar!
O medo do “ódio racial” tem fundamentação histórica, a despeito das pretensões intelectuais de ineditismo de Caetano e Risério. Basicamente é o medo branco diante da onda negra, como lembrou Celia Maria Marinho de Azevedo em seu brilhante Onda negra, medo branco. Sempre houve tolerância sadia com a Guerra contra as Drogas e a emergência de grupos supremacistas ao longo da história. O problema é outro! Em Cartas de Erasmo, sobre a emancipação, José de Alencar discorre sobre o “ódio da raça”, devendo a escravidão continuar até que os brancos fossem maioria, o que deveria ser conseguida por meio da imigração europeia. Portanto, a sistematização orgânica do “medo do branco ao ódio racial” data de 1867, sem entrar no mérito do “medo haitiano” que percorreu todo o século XIX. José Murilo de Carvalho não leu ou ignorou?
Risério representa um “incômodo” generalizado entre os brancos da classe dominante e da classe média, sobretudo a autoproclamada intelectual. Daí o seu incrível espaço, com direito à representação gráfica, no jornal. Por ironia, um dia depois de seu texto, descobre-se a existência de centenas de células neonazistas no Brasil. O dado não foi amplamente repercutido na Folha, que agora ganha com um falso debate terraplanista.
A emulação à miscigenação é um legado do romantismo brasileiro e do cientificismo neocolonial dos séculos XIX e XX, em que no Brasil surgiria um novo povo. A formação desse novo povo seria acelerada pela miscigenação e pela imigração europeia, pois esse povo seria branco, mas mantenedor de elementos considerados positivos das outras raças, como a “força dos africanos” – por isso se justificaria, do ponto de vista evolucionista, a escravidão. A Democracia Racial é uma consequência dessa construção, em que Gilberto Freyre, assim como Kamel, escreve na primeira pessoa a relevância “da mulata que nos tirou o primeiro bicho-do-pé de uma coceira tão boa. Da que nos iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da cama-de-vento, a primeira sensação completa de homem”. É o que chamo de “estupro civilizatório” para a formação do brasileiro. Gilberto era branco e escrevia para um público branco.
O supremacismo branco foi plenamente aplicado no século XX, com a criação de medidas segregacionistas, sobretudo no estado de São Paulo, como proibição de matrícula escolar, colônias agrícolas para trabalhos forçados, vedação de emprego concomitante a cotas e auxílios financeiros para brancos e imigrantes europeus, proibição de entrada em clubes e praças etc. No interior do estado de São Paulo, hoje se pode garantir e provar que havia espaços racialmente segregados até 1980, pelo menos.
José de Alencar foi um grande promotor da ideia do novo brasileiro branco, que envolveu Humboldt, para quem na América surgiria uma nova língua, e José de Vasconcelos, fascista mexicano que se radicaria na Argentina no século XX, que defendeu a criação de uma nova raça “cósmica”. Esse filósofo foi o filósofo de cabeceira de Minotti Del Pecchia, Plínio Salgado e Cassiano Ricardo. Todos eles assinaram um manifesto chamado Verde-Amarelo (Nhengaçu), uma cisão da Semana de Arte Moderna de 1922 – esquecida até o Tropicalismo, que a recuperou como forma de legitimação de um legado supostamente brasileiro que possuiria e levaria adiante. Essa cisão depois criaria outra, entre Bandeirantistas e Integralistas. O que havia em comum entre ambos? A formação do brasileiro branco que, segundo projeções apresentadas pelo Brasil em 1911 no Congresso Mundial das Raças, em Londres, ocorreria plenamente em 2012, quando desapareciam todos os negros. Os atuais movimentos identitários brancos e supostamente nacionalistas recuperaram parte dessa construção, como o Quinto movimento, do qual faz parte Aldo Rebelo, outro branco, o nosso Policarpo Quaresma que enxerga Floriano Peixoto em todas as esquinas. Aldo é outro que atualmente empreende uma cruzada contra o “identitarismo negro”. O “identitarismo negro” seria nada mais que o fantasma de Floriano Peixoto, um traidor da nacionalidade tipicamente brasileira escolhida por Aldo, Risério, Demétrio, Kamel, Caetano e outros.
A ascensão dos movimentos sociais negros a partir de 2000 criou uma das maiores crises identitárias na classe dominante e na classe média tradicional: a crise do mulatismo e do apadrinhamento, como demonstraram Roger Bastide e Florestan Fernandes nos idos longínquos de 1950. Esse contexto se expressou na crise institucional do controle pela classe dominante e pela classe média sobre os mecanismos de ascensão do negro por meio do embranquecimento e do apadrinhamento. No Censo da década de 2000, negros cresceram aproximadamente 27%. Nasceram muito mais negros do que brancos em 10 anos? Não! Negros de pele clara passaram a se posicionar como negros, e não mais como brancos ou com coloração intermediária apontada para a branquitude. Essa é a crise identitária branca, que acomete inclusive parte pequena da esquerda, como se viu no caso de Borba Gato e sua crítica ao “identitarismo negro norte-americanizado”. A mera crítica ao “identitarismo negro” abraça a pauta da extrema-direita, essa sim mergulhada abertamente no identitarismo branco, com abraços e beijos a grupos neonazistas.
Risério representa uma vertente radicalizada desse segmento incomodado, sem chão, e em crise com os instrumentos simbólicos e sociais de controle construídos historicamente sobre os negros. Seus livros são imprestáveis, cientificamente falando. Escreve-os como escreveu o artigo. Aponta fatos tão desconexos e particulares que visivelmente adapta a realidade à sua identidade. A Bahia é o estado que mata mais pretos (quase 100% dos mortos pela polícia são pretos), mas o problema para ele são os brancos nos EUA que seriam atacados por milicias negras.
A Folha também representa esse segmento. Por isso dá espaço. Eu era conselheiro universitário da USP em 2007 e acompanhei manifestos de professores e jornalistas do jornal contra cotas na universidade, o bastião do conservadorismo da classe dominante paulista. Lembro do Departamento de Antropologia ter uma posição radicalmente contrária às cotas – deveríamos estudar o que acontece com a Antropologia para arrebanhar tantos conservadores. Querem entender o que está acontecendo? Mirem-se nos anos de 2006 a 2009, momento em que Risério, junto com os outros que citei no texto, iniciou a sua cruzada contra os movimentos “identitários negros” supostamente importados com o seu livro A utopia brasileira e os movimentos negros, mais uma defesa da mestiçagem como legado brasileiro.
Risério é outro branco – incrível como brancos da classe dominante e da classe média tradicional são defensores da mestiçagem, mesmo não possuindo, em sua grandíssima maioria, nenhuma “mistura racial”! É justamente essa perda dos mecanismos tradicionais de controle ideológico e social sobre os trabalhadores negros que mais preocupa a classe dominante e a classe média tradicional. Para contornar, entregaram-se ao bolsonarismo como forma de reaver o que consideram ter perdido – todos os citados contribuíram para o bolsonarismo, nem que seja indiretamente. Aldo, pelo menos, não se entregou totalmente. Apenas flerta com Mourão em defesa da mineração em terras indígenas contra as ONGs estrangeiras e da sua teoria das três raças, proferida em palestra em 2017, em que indígenas seriam “indolentes” e africanos “malandros”.[iv]
*Leonardo Sacramento é doutor em educação pela UFSCar. Professor de educação básica e pedagogo do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo. Autor do livro A universidade mercantil: um estudo sobre a universidade pública e o capital privado (Appris).
Notas
[i] Disponível em https://congressoemfoco.uol.com.br/projeto-bula/reportagem/a-integra-do-manifesto-contra-as-cotas-raciais/.
[ii] Artigo do autor disponível em https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/01/racismo-de-negros-contra-brancos-ganha-forca-com-identitarismo.shtml.
[iii] Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u64131.shtml.
[iv] Disponível em https://congressoemfoco.uol.com.br/area/pais/mourao-diz-que-pais-herdou-indolencia-do-indio-e-malandragem-do-negro/.