O identitarismo e seus paradoxos

image_pdf

Por MARILIA AMORIM*

Quando se privilegia o pertencimento a um coletivo, há indivíduo, mas não há sujeito

A luta contra toda forma de desigualdade e de preconceito legitima-se por si própria e não demanda justificação. Entretanto, encontrar a melhor forma de levá-la adiante nem sempre é tarefa fácil. Sobretudo quando se trava no âmbito do discurso uma vez que esse é, por natureza, complexo e sujeito a interpretações diversas.

Gostaria de trazer aqui três exemplos que permitem a meu ver problematizar certas formas de combate escolhidas.

O primeiro deles é o mais recente e mais próximo do público leitor. Leio no 247,[i] site progressista de notícias, o seguinte título de matéria: “Lula estuda indicar Jorge Messias para o STF e advogada negra para comandar AGU”. O título é em negrito e letras grandes, o que o diferencia do subtítulo: “O presidente Lula também tem cogitado atender aos apelos de aliados para nomear Cláudia Trindade para substituir Messias no comando da AGU”.

O projeto enunciativo do título é claro: afirmar a identidade do gênero feminino e da raça negra referida a alguém que poderá vir a ocupar um alto cargo de poder. Nesse projeto, busca-se estabelecer uma relação de igualdade entre os dois futuros indicados do presidente Lula e assim, entre brancos e negros e entre homens e mulheres.

Mas será mesmo que esse título é discursivamente igualitário? De Claudia Leite cujo currículo vasto e proeminente é descrito na reportagem, apenas se diz que é uma mulher advogada e negra. Sem nome próprio, o termo que a designa está posicionado como substituível: outras advogadas negras poderiam estar nesse lugar. O homem tem nome, mas ela não. Só tem direito ao nome no subtítulo, em letra menor e sem negrito.

A rigor, para haver equivalência dos termos e equilíbrio em sua relação, o título deveria ser: “Lula estuda indicar Jorge Messias para o STF e Claudia Leite para comandar a AGU.” Ou então: “Lula estuda indicar advogado branco para o STF e advogada negra para comandar a AGU.”

Naturalmente, o efeito de sentido desses enunciados alternativos não seria o mesmo do original. Na primeira alternativa, o título perderia seu apelo imediato para o público militante. Mas convém questionar: pautar uma fala inteiramente pelo apelo à militância não pode gerar um efeito paradoxalmente discriminatório para o público mais amplo de leitores?

A segunda alternativa produziria um efeito de sentido curioso: ela indicaria o contrário da ideia de igualdade. Se o STF é hierarquicamente superior à AGU, a discriminação estaria se confirmando – para o posto mais alto, um homem branco; para um posto abaixo, uma mulher negra. Embora interessante pelo que revelaria, ao mencionar apenas a cor dos candidatos, o enunciado pecaria pelo reducionismo extremo.

Vejamos o segundo exemplo. Na Universidade de Paris, recebi por e-mail um convite para integrar a banca de seleção de professores para uma universidade de outra região da França. Sendo prática corrente na vida acadêmica, respondi com um aceite de princípio e indaguei sobre a área de especialização do concurso. Surpreendi-me com a resposta porque se tratava de área totalmente alheia ao meu campo de pesquisas. Respondi que não poderia aceitar já que não teria nenhuma competência para julgar os candidatos.

Ao receber uma nova mensagem que reiterava o convite, resolvi procurar um colega de departamento com notório conhecimento na temática em questão. Perguntei se aceitaria integrar a referida banca e ele me autorizou a dar seu endereço para que lhe escrevessem formalizando o convite. Enviada minha nova mensagem, recebo então a resposta que me surpreendeu mais ainda que o convite: meu colega não poderia ser convidado porque era preciso completar a cota de mulheres que, segundo as novas regras universitárias, deveria integrar todas as bancas e demais comissões de especialistas.

Em suma, pouco importava se a mulher em questão nada entendia do assunto. Minha trajetória de pesquisadora e professora não era um critério para ser escolhida. Apenas importava ser do sexo feminino. Desse modo, meu lugar de fala enquanto mulher estaria assegurado. Só que, de fala esse lugar não seria, uma vez que eu nada saberia dizer.

Imagino a cena em que eu entraria muda e sairia calada da banca do concurso. Ou em que eu gaguejaria algumas besteiras apenas para justificar minha presença. Tanto em um caso como em outro, alguns colegas poderiam cochichar entre eles: “mas quem é essa mulher? de onde saiu ela???” E certamente alguém saberia responder: “ela está aqui porque é mulher; veio preencher a cota”. Mesmo assim, eu exerceria o poder de julgar e selecionar candidatos, com alta probabilidade de cometer injustiças.

O último exemplo é um diálogo fictício, extraído do filme Tàr de Todd Field (2022). A professora que faz uma “master class” na famosa Juilliard School de New York é uma maestrina renomada no âmbito da música erudita e de concerto. Lídia Tàr, lésbica e feminista, discute com Max, um aluno que recusa a música de Johann Sebastian Bach porque encara esse “pai de vinte filhos” como nada mais do que um macho branco, cisgênero e misógino. Trecho do diálogo: “Max: – “Os machos brancos, compositores cisgêneros não fazem minha cabeça”. Lídia: –Não seja tão apressado na sua indignação. O narcisismo das pequenas diferenças leva a uma conformidade entediante. O problema (…) é que se o talento de Bach se reduz para você a seu sexo, seu país natal, sua religião, sua sexualidade, etc. o seu o será também”.

Penso que os três exemplos mostram o paradoxo da designação identitária. Ao designar alguém pela sua identidade coletiva, um problema se coloca. Sem designação pelo nome próprio, há o apagamento do sujeito com sua história, sua experiência e suas realizações em suma, tudo que constitui sua singularidade. Quando se privilegia o pertencimento a um coletivo, há indivíduo, mas não há sujeito.

O coletivo é uma instância necessária porque é ela que pode travar as lutas e os embates do poder. Então, a depender da situação, esse apagamento da singularidade é natural e desejável porque cada um está ali em razão e em nome de seu pertencimento ao coletivo. Imaginemos como exemplo uma passeata de determinada categoria profissional. Se a algum indivíduo é dada a palavra, ele o faz enquanto representante e porta voz.

Entretanto, o indivíduo é alçado à condição de sujeito toda vez que ele não é substituível por qualquer outro que compartilhe sua identidade coletiva. São as situações em que ele é escolhido, indicado, eleito, etc. em função de algo que lhe é próprio. Algo pelo qual responde e assina com seu nome próprio.

Se o fato de ser escolhido fortalece a luta do grupo em questão, isso não faz de seu lugar uma mera representação do coletivo a que pertence. Há que ser afirmado e reconhecido o seu valor único. Caso contrário, se o efeito da luta coletiva é um apagamento dos sujeitos, qual o sentido dessa luta?

*Marilia Amorim é professora aposentada do Instituto de Psicologia da UFRJ e da Universidade de Paris VIII. Autora, entre outros livros, de Petit traité de la bêtise contemporaine (Érès de Toulouse) (https://amzn.to/48du8zg).

Nota


[i] Edição de 29 de agosto de 2023, 18h06 min Atualizado em 29 de agosto de 2023, 19h12 min.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
O segundo choque global da China
06 Dec 2025 Por RENILDO SOUZA: Quando a fábrica do mundo também se torna seu laboratório mais avançado, uma nova hierarquia global começa a se desenhar, deixando nações inteiras diante de um futuro colonial repaginado
2
Energia nuclear brasileira
06 Dec 2025 Por ANA LUIZA ROCHA PORTO & FERNANDO MARTINI: Em um momento decisivo, a soberania energética e o destino nacional se encontram na encruzilhada da tecnologia nuclear
3
Simulacros de universidade
09 Dec 2025 Por ALIPIO DESOUSA FILHO: A falsa dicotomia que assola o ensino superior: de um lado, a transformação em empresa; de outro, a descolonização que vira culto à ignorância seletiva
4
A guerra da Ucrânia em seu epílogo
11 Dec 2025 Por RICARDO CAVALCANTI-SCHIEL: A arrogância ocidental, que acreditou poder derrotar a Rússia, esbarra agora na realidade geopolítica: a OTAN assiste ao colapso cumulativo da frente ucraniana
5
Asad Haider
08 Dec 2025 Por ALEXANDRE LINARES: A militância de Asad Haider estava no gesto que entrelaça a dor do corpo racializado com a análise implacável das estruturas
6
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
7
Uma nova revista marxista
11 Dec 2025 Por MICHAE LÖWY: A “Inprecor” chega ao Brasil como herdeira da Quarta Internacional de Trotsky, trazendo uma voz marxista internacionalista em meio a um cenário de revistas acadêmicas
8
Raymond Williams & educação
10 Dec 2025 Por DÉBORA MAZZA: Comentário sobre o livro recém-lançado de Alexandro Henrique Paixão
9
Considerações sobre o marxismo ocidental
07 Dec 2025 Por RICARDO MUSSE: Breves considerações sobre o livro de Perry Anderson
10
O agente secreto
07 Dec 2025 Por LINDBERG CAMPOS: Considerações sobre o filme de Kleber Mendonça Filho, em exibição nos cinemas
11
Impactos sociais da pílula anticoncepcional
08 Dec 2025 Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: A pílula anticoncepcional não foi apenas um medicamento, mas a chave que redefiniu a demografia, a economia e o próprio lugar da mulher na sociedade brasileira
12
Insurreições negras no Brasil
08 Dec 2025 Por MÁRIO MAESTRI: Um pequeno clássico esquecido da historiografia marxista brasileira
13
As lágrimas amargas de Michelle Bolsonaro
07 Dec 2025 Por CAIO VASCONCELLOS: Estetização da política e melodrama: A performance política de Michelle como contraponto emocional e religioso ao estilo agressivo de Jair Bolsonaro
14
A armadilha da austeridade permanente
10 Dec 2025 Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Enquanto o Brasil se debate nos limites do arcabouço fiscal, a rivalidade sino-americana abre uma janela histórica para a reindustrialização – que não poderemos atravessar sem reformar as amarras da austeridade
15
O empreendedorismo e a economia solidária – parte 2
08 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Quando a lógica do empreendedorismo contamina a Economia Solidária, o projeto que prometia um futuro pós-capitalista pode estar reproduzindo os mesmos circuitos que deseja superar
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES