O Iluminado

Imagem: Marco Buti
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Por FREDIC JAMESON*

Comentário sobre o filme de Stanley Kubrick

Os cineastas mais interessantes da atualidade – Robert Altman, Roman Polanski, Nicholas Roeg, Stanley Kubrick – todos praticam, cada qual a seu modo, o genre, porém num sentido historicamente novo. Eles permutam gêneros, tal como os modernistas clássicos permutavam estilos. Não se trata, como no modernismo clássico, de uma questão de gosto pessoal, mas antes de um resultado de limitações objetivas no âmbito da produção cultural recente.

A explicação de T. W. Adorno acerca do futuro do “estilo” na literatura e na música contemporâneas propõe o conceito de pastiche para descrever o uso que Stravinsky, Joyce ou Thomas Mann faziam de estilos superados e linguagens artísticas do passado como veículos para novas produções. Para Adorno há que diferenciar radicalmente pastiche de paródia, pois esta pretende ridicularizar e depreciar estilos ainda vigentes e influentes. Embora o pastiche implique a existência daquela mesma distância que se mantém em relação ao instrumento ou à técnica artística acabada, ele pretende mais precisamente a exemplo da imitação dos mestres antigos ou mesmo no caso da falsificação revelar o virtuosismo do aprendiz em vez do absurdo do objeto (nesse sentido pode-se dizer que a obra da fase madura de Picasso constitui-se de muitas falsificações magistrais do própria “Picasso”).

No caso do pastiche, duas são as determinações fundamentais da situação na qual ele parece ter surgido: a primeira é o subjetivismo, a ênfase demasiada e a supervalorização da singularidade e da individualidade do próprio estilo – o modo de expressão particular, o “mundo” singular de um dado artista, o centro nervoso sensorial quase único deste ou daquele novo nome a reivindicar atenção artística. Mas, à medida que o individualismo começa a se atrofiar num mundo pós-industrial, enquanto a mera diferença de individualidades idiossincráticas progressivamente transforma-se sob seu próprio impulso em repetição e mesmice, à medida que as permutações lógicas de inovação estilística se esgotam, a busca de um estilo singularmente característico e a própria categoria de “estilo” adquirem uma aparência ultrapassada.

Enquanto isso, tanto para o produtor quanto para o consumidor, o preço a ser pago por um sistema estético radicalmente novo num mundo onde a inovação e a mudança de estilo tornaram-se a lei (o exemplo de Adorno é o aparato dodecafônico de Schoenberg) torna-se progressivamente oneroso. O resultado, na esfera da alta cultura, foi o momento do pastiche, em que artistas vigorosos, agora carentes de formas e conteúdo, canibalizam o museu e usam as máscaras de maneirismos extintos.

O momento do pastiche dos gêneros no cinema, entretanto, distingue-se daquele em muitos aspectos: primeiramente, não se trata aqui da alta cultura, mas antes da cultura de massa, a qual tem outra dinâmica e está muito mais imediatamente sujeita aos imperativos do mercado. Aí também Adorno referia-se ao declínio de um momento clássico do modernismo propriamente dito, ao passo que os avanços cinematográficos aqui considerados, posto que acontecem no capitalismo tardio ou na atual sociedade de consumo, devem ser compreendidos em função de uma situação cultural muito diferente, a saber, em função do que poderia ser chamado de pós-modernismo.

As tentativas dos primeiros grandes cineastas no sentido de abrir uma brecha para uma produção individual característica – categorias de obra-prima, de estilo individual, de controle unificado por uma única personalidade marcante – são rapidamente bloqueadas pelo próprio sistema comercial, que as reduz a inúmeras ruínas trágicas e a lendas truncadas (Stroheim, Eisenstein), redirecionando essas energias criativas para as produções medíocres de Hollywood.

Tais produções são, naturalmente, filmes de gênero; contudo, o importante para nós é que, com o advento da sociedade da mídia e da televisão (às quais equivalem inovações cinematográficas tão características quanto a chegada da tela ampla), até mesmo a possibilidade do próprio filme de gênero tradicional desaparece. Esse final da idade de ouro do filme de gênero (musicais, westerns, film noir, a farsa ou comédia clássica hollywoodiana) coincide então, previsivelmente, com sua codificação e sistematização na assim chamada teoria do auteur, em que as várias produções de padrão médio ou de categoria B são agora valorizadas como fragmentos e janelas que dão para um mundo genérico, a um só tempo característico e esclarecedor.

Ninguém cuja vida e imaginação foram marcadas e inflamadas pelas imagens notáveis do film noir ou contagiadas pelos gestos inesquecíveis do western pode por um instante duvidar que isto é verdade; todavia, o momento no qual a vitalidade estética mais profunda do genre torna-se perceptível e consciente de si mesma pode também coincidir com o momento no qual o genre naquele antigo sentido não é mais possível.

O final do gênero, portanto, abre um espaço no qual, ao lado tanto de cineastas de vanguarda, que desenvolvem seus trabalhos independentemente do mercado, quanto daqueles poucos “estilistas” do tipo mais antigo que sobreviveram (Bergman, Kurosawa), grandes sucessos de bilheteria tornam-se agora intimamente ligados aos best-sellers e desdobramentos em outras ramificações da indústria cultural. Os cineastas mais jovens portanto não podem mais seguir a trajetória de um Hitchcock, do artesão de thrillers de categoria B ao “maior diretor do mundo”, nem mesmo copiar o modo magistral pelo qual Hitchcock amplia a estrutura genérica anterior, em um filme como Um Corpo que Cai (Vertigo, 1958), de forma a chegar perto de uma obra-prima “que expressa” uma arte de um outro tipo.

A produção metagenérica torna-se, conscientemente ou não, a solução para esse dilema: os filmes de guerra (Mash, 1970, de Altman; Glória Feita de Sangue [Paths of Glory, 1957], de Kubrick), os filmes macabros (O Bebê de Rosemary [Rosemary’s Baby, 1968], de Polanski; O Iluminado [The Shining, 1980], de Kubrick; Inverno de Sangue em Veneza [Don’t Look Now, 1973], de Roeg; A Dança dos Vampiros [The Fearless Vampire Killers, 1967], de Polanski), os thrillers (Chinatown, 1974, de Polanski; O Grande Golpe [The Killing, 1956], de Kubrick; Performance, 1970, de Roeg), os westerns (Jogos e Trapaças – Quando os Homens São Homens [McCabe and Mrs. Miller, 1971] e Buffalo Bill and the Indians, 1976, de Altman; Duelo de Gigantes [The Missouri Breaks, 1976], de Penn), e ficção científica (2001 – Uma Odisseia no espaço [2001, 1968] e Dr. Fantástico [Dr. Strangelove, 1964], de Kubrick; O Homem que Caiu na Terra [The Man Who Fell to Earth, 1976], de Roeg; Quinteto [Quintet, 1979], de Altman), os musicais (Nshille, 1975, de Altman), o “teatro do absurdo” (Armadilha do Destino [Cul-de-sac, 1966], de Polanski), os filmes de espionagem (Bad Timing, 1980, de Roeg) – todos esses filmes utilizam uma estrutura predeterminada de gêneros herdados como um pretexto para uma produção que não é mais pessoal ou estilística no sentido anterior do modernismo.

Este é geralmente descrito em termos de reflexibilidade, da auto-referencialidade e do debruçar da produção artística sobre seus próprios processos e técnicas. Nesse caso, porém, poderíamos indicar um tipo de reflexibilidade bem diferente para esse novo momento – às vezes denominada “intertextualidade” (embora eu acredite que tal designação seja antes um problema do que uma solução) – que apresenta equivalentes bem distintos na produção literária pós-modernista (Pynchon, Sollers, Ashbery), tanto na arte conceitual quanto no fotorrealismo, e naquela grande renovação do rock no fim dos anos 1970 e início dos 1980, na maioria das vezes acobertada sob o termo rock “new wave” e saturada de referências às formas de rock mais antigas, ao mesmo tempo que é eletrizante, a despeito de qualquer produção estéril recente de show ou alusões de grupies.

É igualmente possível abordar o momento do filme metagenérico através de uma versão degradada que lhe é contemporânea mas que pode ser entendida como o seu oposto, a expressão do mesmo impulso histórico numa forma não reflexiva. Eis aí toda a amplitude da “cultura da nostalgia” contemporânea, chamada pelos franceses de la mode rétro – partiche que, num equívoco de categorização, em que conteúdo e forma são confundidos, propõe-se reinventar o estilo não de uma linguagem da arte, mas de todo um período (os anos trinta em O Conformista [Il Conformista, 1970], de Bertolucci, os anos 50 em American Graffiti, 1973, de Lucas; a virada do século americana em um romance como Ragtime, 1975, de Doctorow). A exemplo da prática do pastiche que Adorno estigmatizou no trabalho de um Stravinsky, tais celebrações do estilo imaginário de um passado real constituem os inúmeros sintomas da resistência da matéria-prima contemporânea à produção artística. Essa resistência é geralmente reforçada pelas vendas ideológicas que cobrem os olhos dos produtores contemporâneos, mas é sugestivamente quebrada quando esses artistas se dispõem a incluir um futuro no seu presente e a registrar o ímpeto nascente da ficção científica ou utopia dentro da lógica de suas próprias formas.

O inautêntico, no que se refere ao cinema e aos textos de nostalgia – ainda que fosse interessante ver o que Altman poderia ter feito com Ragtime –, pode ser mais bem dramatizado de outro modo, que eu chamarei o culto da imagem luxuosa, o modo pelo qual uma tecnologia totalmente nova (lentes de grande abertura angular, filme sensível à luz) estendeu a sua generosa indulgência ao cinema contemporâneo. Seria ingrato almejar de vez em quando algo mais feio e menos competente ou hábil, mais desajeitado e simples, como a produção caseira, do que aquelas assombrosas tomadas de ornatos entrelaçados e iluminados pela luz do sol ou de vasos com flores de intensa delicadeza de matiz que vemos na ela e que teriam feito os impressionistas cerrarem seus estojos de tinta em sinal de frustração? Espero que não seja moralista admitir que de vez em quando essa beleza absoluta pode parecer obscena, a forma definitiva do consumo de mercadorias sistematizadas – a transformação dos nossos sentidos em firma que negocia o espírito por reembolso postal, o empacotamento final da Natureza em celofane, do tipo que qualquer loja elegante desejaria exibir em sua vitrina.

A objeção é, em realidade, histórica, pois certamente houve momentos históricos e situações em que a conquista da beleza foi um ato de apropriação política: a intensidade alucinatória da cor borrada em meio ao entorpecimento cinzento da rotina, o gosto doce-amargo do erótico num mundo de corpos exaustos e embrutecidos. O “sublime” dos anos 60, a redescoberta contracultural do êxtase, não foi tampouco necessariamente algo antipolítico, uma vez que tais intensidades, como uma punhalada além da dor e do prazer, dirigiram-se essencialmente contra a imagem. É o triunfo da imagem nos filmes de nostalgia que ratifica o triunfo de todos os valores da sociedade de consumo contemporânea, ou seja, do consumo na era do capitalismo tardio.

Reflitam, por outro lado, sobre o “belo” na obra de Kubrick: ainda nos lembramos obsessivamente do som do Danúbio Azul a embalar a aeronave que gira vagarosamente a caminho da Luz em 2001, bem como de Musak num elevador de classe alta, confortando e tranquilizando não somente os burocráticos passageiros oficiais que ali estavam, mas também a nós mesmos, espectadores desse futuro tecnocrático do nosso próprio presente acima de todo conflito nacional. A banalização da valsa pela alta cultura expressa assim tanto o barateamento desse harmonioso mundo global governado pelas Nações Unidas quanto o tédio da superficialidade de seus habitantes: trata-se de um exemplo didático daquele mecanismo significante que o Barthes das Mitologias chamou de “conotação”, de acordo com a qual a linguagem e as categorias formais do meio de expressão artística constituem a sua mais profunda mensagem, e a própria qualidade da imagem em si emite um significado que secretamente supera o teor imediato ou aparente do seu conteúdo.

Tampouco seria a operação conotativa sempre inautêntica, como é na publicidade, segundo Barthes, ou no ideologema da Beleza, ao qual nos referimos acima: em Saint Genêt, por exemplo, Sartre demonstrou que o uso que Genet faz da imitação, sua deliberada projeção estilística espalhafatosa do kitsch, do extravagantemente verborrágico, sua inclusão intencional do “mau-gosto” nas conotativas de suas sentenças floreadas foi um ato protopolítico, ou seja, a inversão do ressentimento em um ato de vingança contra seus respeitáveis leitores (o estilo junk de Dreiser, que expressa, por sua própria falsidade, a verdade da mercantilização que surge em sua época, pode ser tido como um caso semelhante).

Na verdade, a autenticidade do uso que Kubrick faz dessa conotação da alta cultura pode ser usada como parâmetro contra ele próprio, quando, num filme ideológico (e reacionário, antipolítico) como Laranja Mecânica (A Clockwork Orange, 1971), a conotação se atenua em denotação explícita, e os mesmos materiais culturais elevados são ali usados instrumentalmente para se considerar de uma perspectiva didática o tédio e a intolerância de uma utopia conquistada, à qual somente a violência pode trazer alívio. Tal afirmação sobre o futuro deve ser claramente distinguida da conotação paralela da imagem em 2001, no qual o conteúdo de ficção científica é um veículo para uma mensagem sobre o nosso próprio presente tecnológico e sobre a suprema habilidade tecnológica de Kubrick – tão estéril e lobotomizada quanto uma viagem à Lua.

Beleza e tédio: essa é então a sensação imediata da monótona e insuportável sequência que abre O Iluminado e da bela tomada aérea da trilha através da sublime e estonteante paisagem natural de cartão postal de uma América “intacta”, tanto quanto do magnífico hotel, cujo esplendor tradicional da virada do século é minado pela mais vulgar concepção de “luxo” nutrida pela sociedade de consumo, e em particular pelo espaço moderno do escritório do gerente e o inevitável pseudocafé servido por sua secretária.

Em Hitchcock, tais figuras menores eram ainda concebidas como idiossincráticas, como interessantes/divertidas (e isso não somente porque ele as observava do seu ponto de vista britânico: o humor britânico característico dos primeiros filmes é estruturalmente reinventado como um novo padrão de atitudes autenticamente americanas no período hollywoodiano): temos assim em Um Corpo que Cai a gerente da hospedaria em São Francisco que de repente se ergue detrás da escrivaninha aparentemente vazia com a desculpa de que estava “lubrificando as folhas de sua planta de borracha”; ou o xerife da cidadezinha em Psycho (Psicose), que sardonicamente silaba através da fumaça do seu charuto o nome do detetive da cidade grande desaparecido (“Arbo-gast”); ou, no final do mesmo filme, o psiquiatra penal cujo dedo indicador erguido corrige pretensiosamente as primeiras impressões ingênuas do seu público provinciano legalista (“Travestido? Não exatamente!”).

Nada de semelhante em Kubrick: essas pessoas superficiais, quer a caminho da Lua ou se aproximando do término de uma outra estação no maravilhoso hotel no meio do nada, são padronizadas e sem interesse, seus sorrisos rítmicos tão constantes quanto a frequente retomada de fôlego de um locutor de rádio. Se Kubrick se diverte ao organizar um contraponto entre essa benevolência facial obrigatória e inexpressiva e a história horrenda, que o gerente é finalmente obrigado a revelar; trata-se aí de um entretenimento bem pessoa que, em última instância, não beneficia ninguém. Enquanto isso, os grandes acordes de Brahms agitam o ar fresco nas imagens externas de O Iluminado e reforçam a sensação já familiar de asfixia cultural.

É possível, naturalmente, que essas distensões áridas e triviais sejam características básicas do gênero do próprio filme de terror, que (a exemplo da pornografia) acaba por se reduzir à alternância estéril do choque e da sua ausência. Tal colocação desajeitada se deve ao fato de que o momento que se alterna – a mera ausência do choque – é hoje despojado até mesmo daquele conteúdo e significado inerente ao que costumava ser descrito como tédio. Considere, por exemplo, as primeiras ondas de filmes de terror e ficção científica dos anos 50, cujo “tempo de paz” ou contexto “civil” – geralmente a pequena cidade americana, numa remota paisagem do Oeste – significava um provincianismo que não mais existe na sociedade de consumo atual.

Aquela Georgetown de O Exorcista (The Exorcist, 1973) de Friedkin não é mais desinteressante naquele sentido socialmente carregado, mas simplesmente trivial; o vácuo de sua vida diária torna-se o inexpressivo silêncio de fundo a partir do qual o sinistro bater de asas no sótão será percebido. E, obviamente, essa mesma trivialidade da vida diária no capitalismo tardio é, ela própria, a situação desesperadora contra a qual surgem todas as soluções formais, as estratégias e os subterfúgios, tanto da alta cultura quanto da cultura de massa. Afinal, como projetar a ilusão de que as coisas ainda acontecem, que eventos existem, que ainda há histórias a contar, numa situação em que a especificidade e a irrevogabilidade de destinos individuais e da própria individualidade parecem ter evaporado? Essa impossibilidade do realismo – e, mais genericamente, a impossibilidade de uma cultura viva que fale para um público unificado a respeito de experiências comuns – determina as soluções metagenéricas com as quais começamos. Ela também justifica o surgimento do que poderia ser chamado de narrativa falsa ou imitativa, a transformação ilusória em uma superfície narrativa aparentemente linear e unificada do que é, em realidade, uma colagem de materiais e fragmentos heterogêneos, dos quais os mais surpreendentes são segmentos cinéticos ou fisiológicos inseridos em textos de caráter bem diferente.

Assim, nos momentos mais problemáticos de dispersão formal do belo poema Paterson, de William Carlos Williams, sobre a impossibilidade de uma literatura ou cultura americana, blocos de sensações físicas não reduzidas – mais explicitamente a própria cachoeira – são inseridos, como se o corpo e as suas sensações inexpressivas, porém existentes, constituíssem o mais elementar tribunal de apelo. Também, em Kubrick, a ausência de vida na baixa temporada do hotel é caracteristicamente pontuada pelas percepções sensoriais favoritas desse auteur [1], de tal modo que o incansável pedalar da criança no seu velocípede através dos corredores vazios é transformado em um verdadeiro Grand Prix, uma implacável sonda espacial que se movimenta no interior de um túnel, como um veículo estelar sob uma chuva de meteoros.

Tais embelezamentos da linha narrativa – micropráticas do “sublime” no sentido do século XVIII, mas também intimamente relacionadas, como sintomas formais, às sequências grandiosas em Hitchcock (a oscilação paralela dos dois periquitos em Os Pássaros [The Birds, 1963], que indicam as curvas e as voltas da rodovia como um mostrador em miniatura) – marcam a separação de Fantasia e Imaginação na produção cultural contemporânea e permanecem como muitos outros sinais diversos da heterogeneidade de conteúdos em que a vida moderna se fragmentou.

Quanto à criança em si, sua “história” não é meramente um pretexto para tais exercícios perceptivos e cinematográficos mais puros, senão, de um modo mais geral, para um jogo com os signos genéricos, o que nos leva ao cerne dessa forma peculiar. Os signos iniciais já foram indubitavelmente instituídos pela publicidade e marketing do filme (e pela reputação do best-seller do qual ele foi adaptado): eles serão reforçados pelas sequências iniciais, que os confirmam e nos levam a crer que o garoto será o centro da narrativa (afinal, seus poderes telepáticos dão nome ao filme). Apressamo-nos em acatar ordens e passivamente/obedientemente revestimos essas primeiras visões alarmantes com o devido pressentimento: os poderes da criança (e a sua aparente possessão por um alter ego sobrenatural) pressagiam um inverno muito pouco reconfortante nos meses que estão por vir.

De qualquer modo, já tivemos experiência suficiente com crianças horríveis (The Bad Seed, 1956, de Leroy, Village of the Damned, 1960, de Rilla) para sermos capazes de identificar a maldade nua e crua quando alguém a revela diante de nós. Ao lado disso tudo, a fraqueza fatal da personagem de Jack Nicholson é insuspeitavelmente diagnosticada como algo mais normal e reconfortante, o alcoolismo (incluindo qualquer outra instabilidade moral que se queira). Tais pretextos prosseguem pelo menos até o ponto em que o velho cozinheiro (Scatman Crothers) reconhece o menino e explica seus poderes para ele; não há, contudo, tempo para que o tema da telepatia se desenvolva em qualquer um dos seus significados tradicionais.

A telepatia tem sido objeto de representações sinistras: notavelmente no romance Dying Inside, de Silverberg, 1972, que considera esse motivo tão sério a ponto de indagar – em meio a uma Manhattan depressivamente contemporânea – que problemas um “dom” como esse poderia ocasionar para o seu infeliz possuidor. Entretanto, de modo geral, a telepatia na ficção científica recente tem tornado possível a representação antecipatória da comunidade utópica do futuro e uma inimaginável mutação evolucionária em relações coletivas (como no clássico romance More than Human, 1953, de Theodore Sturgeon). Na melhor das hipóteses, O Iluminado recapitula muito tenuemente essa ressonância utópica na amizade protetora entre a criança assustada e o velho cozinheiro-chefe negro (e através deste último na justaposição momentânea da comunidade do gueto negro à sociedade branca atomizada do hotel luxuoso ou à unidade trivial da família burguesa).

Mas o ponto principal sobre telepatia em O Iluminado é que esse é um fio condutor enganoso; e que é, portanto, compatível com o jogo dos sinais genéricos anteriormente mencionado, que essa confusão deliberada acarrete a interpretação errônea do gênero do filme durante a sua primeira meia hora. O modelo para esse tipo de substituição genérica é certamente Psicose de Hitchcock (cuja sequência da escada é citada pelo menos duas vezes em O Iluminado), no qual uma narrativa comum de desfalque é desenvolvida com o intuito único de ser abruptamente extinguida, ao lado da própria heroína, por uma narrativa de crime bem diferente. (Em Psicose, entretanto, a relação entre os dois gêneros, entre o crime público determinado pelo socialmente aceitável, ou o motivo do dinheiro “racional” e o impulso privado ou psicótico, é ainda possivelmente uma justaposição significativa, uma mensagem em si mesma, e que tinha sido mais abertamente dramatizada em M, O Vampiro de Düsseldorf [M], de Fritz Lang, de 1931.).

Aqui, a mudança de gênero tem uma aparência menos coerente e parece ocorrer dentro do motivo da possessão; no entanto, acontece que estávamos procurando pela mensagem no lugar errado: em vez do garotinho, “possuído”, de algum modo sinistro, pelo seu espectral companheiro de brincadeiras, é o pai alcoólatra e sua fraqueza que abrem um vácuo para o qual vertem todos os tipos de impulsos maléficos inicialmente indeterminados. Contudo, essa também é em si mesma um outro tipo de interpretação genérica errônea, que se apodera de alguns dos sinais e convenções do novo gênero do filme do sobrenatural para projetar uma antecipação de alguma possessão verdadeiramente diabólica que está por vir.

O Iluminado não é, entretanto, um filme do sobrenatural nesse sentido: vou demonstrar que ele marca o retorno e a reinvenção de um subgênero muito mais velho, com suas leis e conteúdo específicos, a saber, o subgênero da história de fantasmas, que por motivos históricos tem sido cada vez menos praticado. Contudo, até mesmo a incerteza genérica inicial é parte da reflexividade do empreendimento metagenérico: a liberdade de Kubrick para reinventar as várias convenções genéricas está na razão direta de sua distância de todas elas e de sua própria obsolescência histórica no novo mundo da televisão, da tela ampla e dos grandes sucessos de bilheteria. É como se, para readquirir alguns dos seus velhos poderes, gêneros clássicos como esse precisassem nos apanhar de surpresa e exercer suas convenções retroativamente. Até mesmo um pastiche relativamente direto de um subgênero mais velho como o Chinatown garante seus efeitos ambiguamente por detrás da aparência protetora do cinema nostalgia.

A característica dependência contingente e constitutiva da história de fantasmas do lugar físico e, em particular, de uma casa específica é o que a torna anacrônica. Indubitavelmente, em algumas formas pré-capitalistas, o passado se agarra obstinadamente a espaços ao ar livre como uma forca sobre a colina ou um cemitério sagrado; mas, na idade de ouro desse gênero, o fantasma está em harmonia com uma construção de certa antiguidade, da qual ele é o pesadelo, fazendo alusão à incompreensível sucessão de gerações de moradores numa espécie de retorno do reprimido da consciência da classe média.

Assim, não é a morte como tal, mas a sequência dessas “gerações mortais” que constitui o escândalo despertado novamente pela história de fantasmas para uma cultura burguesa que suprimiu triunfalmente o culto aos antepassados e a memória objetiva do clã ou da família agregada, condenando assim seu ciclo vitalício ao do indivíduo biológico. Não haveria nenhum outro edifício mais apropriado para expressar isso do que o próprio grande hotel, com suas sucessivas temporadas, cujos ritmos diversos marcam a transformação do lazer das classes ociosas americanas da segunda metade do século XIX nas férias da sociedade de consumo atual. O Jack Nicholson de O Iluminado não está possuído pela maldade em si nem pelo “demônio” ou alguma força oculta semelhante, mas simplesmente pela História, pelo passado americano que deixou seus vestígios sedimentados nos corredores e nas suítes desmembradas desse asfixiante edifício monumental, que projeta de modo peculiar sua pós-imagem formal e vazia no labirinto externo (sugestivamente, o labirinto é adicionado pelo próprio Kubrick).

Nesse nível, contudo, o gênero ainda não transmite uma mensagem ideológica coerente, como atesta o original medíocre de Stephen King: a adaptação de Kubrick, na verdade, transforma essa dominação vaga e global de todas as vozes fortuitas da história americana num comentário histórico específico e articulado, como veremos em breve.

Entretanto, mesmo essa sensação difusa da presença e da ameaça da História e do passado como tais basta para revelar o parentesco genérico entre a história de fantasmas e aquele gênero mais velho com o qual e contra o qual ela tão frequentemente se define constitutivamente, ou seja, o romance histórico. O que é este, na verdade, senão uma tentativa de ressuscitar os mortos, para encenar uma fantasmagoria alucinatória, na qual os fantasmas de um passado derrotado se encontram novamente numa festa a fantasia, surpreendidos pelo olhar moral do espectador contemporâneo voyeur? Um romance como o Strange Case of Charles Dexter Ward, de H. P. Lovecraft, pode então ser lido como a construção de uma ligação chocante entre os dois gêneros, suprindo um comentário perturbador e reflexivo sobre as intenções e objetivos secretos do historiador narrativo ou do romancista histórico.

Desse modo, Lovecraft – tão possuído como qualquer historicista pelo passado local e cósmico da Providence onde foi criado [2] – resolve apresentar uma dramatização literal da clássica visão de Michelet do historiador como o guardião e o reanimador das gerações dos mortos: e os mais pavorosos momentos da sua fábula, nos quais figuras da “História mundial”, como Benjamin Franklin, são arrancadas desnudas de seus túmulos e interrogadas por seus torturadores, apresentam um comentário sobre a hybris do historiador e a sua crença supersticiosa na possibilidade de representação do passado.

Não é por acaso, portanto, que ao lado da meta-história de fantasma de O Iluminado a própria de Kubrick apresente uma das mais brilhantes (e problemáticas) realizações contemporâneas do ideal de representação do romance histórico propriamente dito no filme Barry Lyndon (1975). As próprias imagens desse filme parecem extrair o mistério que cerca os corpos pintados do efeito privilegiado do pó sobre as faces rosadas de suas jovens personagens; o simulacro permanece, no seu todo, como uma ilustração didática virtual a confirmar a explicação de Lukács do romance arqueológico como uma forma terminal da evolução do romance histórico propriamente dito: o momento no qual o outrora gênero novo começa a perder a sua vitalidade social como expressão viva da historicidade de uma burguesia triunfante e consciente de sua classe e passa a sobreviver como uma concha formal curiosamente gratuita, cujo conteúdo é relativamente indiferente.

Lukács gostava de citar o comentário do grande romancista de Berlim, Theodor Fontane, a respeito da extensão e dos únicos limites dentro dos quais a autêntica ficção histórica tornou-se possível: você não deve situar seu romance, dizia Fontane, num período mais remoto do que aquele da experiência de vida dos seus próprios avós, observação pela qual ele parece ter tentado sublinha a relação constitutiva entre a imaginação histórica e a presença viva daqueles mediadores sobreviventes, cujas anedotas, unidas a um passado determinado, revelam uma zona de tempo social dali por diante acessível à fantasia, ao mesmo tempo que ancora essa zona em restrições referentes à experiência de indivíduos reais. O desaparecimento da figura dos avós em uma cultura suburbana atomizada deve então ter um efeito significativo sobre a amnésia social, a perda de um sentido do passado, na sociedade de consumo e, também, sobre a natureza cada vez mais problemática do romance histórico como forma.

O pré-requisito básico de que haja uma família agregada torna-se assim o sintoma e a alegoria da sobrevivência de relações sociais “orgânicas”, daquilo que Raymond Williams chama “comunidade cognoscível” [3] (quer sob a forma de um povoado, da cidade clássica ou ainda da vitalidade de grupos nacionais). Ao nosso próprio clima teórico, tão profundamente marcado pela revolução do Simbólico e da descoberta da Linguagem, poderíamos certamente querer adicionais a necessidade de uma continuidade de discurso do passado representado até o presente do público leitor do romance histórico.

Os romances do Império Romano em inglês, ou o exemplo maior de Lukács do romance arqueológico, a Cartago que fala francês no Salammbô de Flaubert, são contradições de termos, muito mais que curiosidades. Possivelmente o “inglês” do século XVIII de Barry Lyndon seja ainda uma outra dessas línguas mortas. Meu argumento não é de que Barry Lyndon não seja um artefato de grande qualidade e de impressionante virtuosismo: um grande filme, por que não? Certamente, um grande filme de Kubrick. Em verdade, um grande número de interpretações está disponível para formular a sua relevância e o seu possível apelo ao espectador contemporâneo como nós: você pode vê-lo como poderosa propaganda contra a guerra; como um estudo do poder da prostituição, de manipulação, do pathos do desperdício, daquilo que é usado e posto de lado como um sapato velho; como uma expressão mais profunda, num nível psicanalítico, das ansiedades causadas pela mutilação e castração… certamente, todos os grandes temas que um artista contemporâneo deveria ter o direito de desenvolver sem justificativas adicionais.

No entanto, todos esses temas funcionam como se mantivessem uma distância do próprio objeto, cuja perfeição em si como pastiche intensifica as nossas dúvidas constantes em relação à natureza gratuita de todo empreendimento. Qual a razão desse toque do século XVIII em meio a uma indústria cultural do fim do século XX? E nesse caso, por que tudo o mais não deu assim tão certo (uma era elisabetana de Kubrick, uma revolução americana de Kubrick e um Ivanhoé de Kubrick)? Trata-se de uma dúvida insidiosa cuja contaminação ameaça transcender a questão específica do conteúdo do romance histórico como tal e problematizar as matérias-primas de toda produção cultural contemporânea.

Sem um passado, será que é possível continuar a recorrer a um presente mútuo? E quanto ao tema, por que deveria a escolha de uma pequena cidade do Sul, uma universidade da Califórnia, ou a Manhattan dos anos 70, ser menos arbitrária como um ponto de partida, numa cultura multinacional fragmentada, do que os principados londrinos ou alemães desse século XVIII? Na verdade, a teoria do pastiche, com a qual começamos, surgiu da crise generalizada na produção cultural atual como um todo e não do estudo dos dilemas do romance histórico.

O Iluminado pode ser lido como uma análise tanto das questões levantadas pelo seu filme anterior quanto daquela impossibilidade da representação histórica, com a qual a perfeição atingida por Barry Lyndon tão dramática e paradoxalmente nos confronta. Em primeiro lugar, os motivos convencionais do thriller de suspense ou sobrenatural tendem a nos distrair do fato óbvio de que, a despeito do que mais ele seja, O Iluminado é também a história de um escritor fracassado.

O original de Stephen King era muito mais aberta e convencionalmente um romance sobre um artista cujo herói já é um escritor de algumas realizações e um poète maudit americano clássico cujo talento é a um só tempo atormentado e estimulado pelo alcoolismo. O herói de Kubrick, no entanto, já é um comentário reflexivo a respeito desse estereótipo que se tornou convencional (Hemingway, O’Neill, Faulkner, os beats, etc.): o seu Jack Nicholson não é um escritor, não no sentido de alguém que tem algo a dizer ou gosta de trabalhar com palavras, mas antes alguém que gostaria de ser um escritor, alguém que vive um sonho do que seja o escritor americano, no sentido de um James Jones ou Jack Kerouac.

Contudo, mesmo essa fantasia é anacrônica e nostálgica; todas aquelas fendas inexploradas do sistema, que permitiram que os lumpens dos anos 1950 se tornassem, por sua vez, símbolos do “Grande Escritor Americano”, têm desde então sido absorvidas no espaço selado e delimitado da sociedade de consumo. (Ou, se você preferir, as experiências até então desconhecidas e sem registro que os beats conseguiram descobrir às margens do sistema – ao lado da própria figura e papel do escritor beat como tal – tornaram-se elas próprias uma parte da cultura e de seus estereótipos: a exemplo da literatura negra e feminina, o que nunca foi visto é que possibilita a produção de uma nova linguagem – “a cultura afirmativa” recupera então o tempo perdido o mais rapidamente possível, incorpora todas essas coisas naquilo que todos conhecem, delineia o inexplorado, transforma tudo aquilo ainda não definido por falta de palavras em imagens consumíveis).

O próprio conteúdo do star system, como ele se inscreve no filme de Kubrick, e o conteúdo semiótico de “Jack Nicholson” como herói pós-contemporâneo confirmam isso pela distância mantida em relação à geração mais velha, a dos novos rebeldes (Brando, James Dean, Paul Newman e até mesmo, transitoriamente, Steve McQueen).

Por outro lado, quer a personagem de Jack Nicholson seja capaz ou não de escrever, e ela certamente escreve, como demonstra o momento mais eletrizante do filme, ele inquestionavelmente produz o que os pós-estruturalistas chamam “du texte” (mesmo que você tenha ímpetos de relembrar o comentário de Truman Capote sobre On the Road – “that’s not writing, that’s typing!”). No entanto, o texto em questão é explicitamente sobre trabalho: é uma espécie de marco zero em torno do qual o filme se organiza, um tipo final de afirmação auto-referencial vazia sobre a impossibilidade da produção cultural ou literária.

Se se imagina que esse tipo de produção deva sempre pressupor a existência de uma comunidade que funcione como suporte identificada ou não, consciente de si própria, ou, ainda, prestes a atingir tal consciência através dessa própria expressão cultural que atesta, ex post facto, que ela sempre esteve lá), fica claro então por que “Jack” não tem nada a dizer: até mesmo seu núcleo familiar foi reduzido a uma espécie de isolamento total, à coexistência fortuita de três indivíduos que dali por diante não representam nada a mão ser eles mesmos, sendo que suas relações mútuas são (violentamente) questionadas.

Do mesmo modo, qualquer possibilidade que essa família pudesse ter tido de desenvolver, no espaço social da cidade, uma solidariedade coletiva com outras pessoas igualmente marginalizadas é automaticamente excluída pelo isolamento total do grande hotel no inverno. Somente o companheirismo telepático da criança, posto que ele estabelece um vínculo com o motif da comunidade negra, oferece uma figura espectral de relações sociais mais amplas.

Entretanto, é precisamente nessa situação que o impulso em direção à comunidade, o desejo da coletividade, a inveja de outras coletividades bem desenvolvidas surgem com toda a força do retorno do reprimido: e é isso, em última instância, que O Iluminado parece abordar. Onde procurar por essa “comunidade cognoscível”, à qual a fantasia de relações coletivas, ainda que excluída, poderia se vincular? Certamente, tal comunidade não poderia se localizar na burocracia gerencial do próprio hotel, tão multinacionalizado e padronizado quanto a comunidade de um quarto ou uma cadeia de motéis; tampouco devemos considerar os veranistas da atual estação de férias, de partida, cada qual a caminho de sua própria casa, rumo às suas residências privadas. A única direção a seguir é aquela que conduz ao passado; e este é o momento no qual a adaptação que Kubrick faz do romance original converte-se num poderoso ato simbólico articulado e inteligível.

Pois, enquanto o romance representa o “passado” como uma confusão de vozes fantasmagóricas de todas as gerações antepassadas que participaram da história do hotel, o filme de Kubrick isola em primeiro plano um único período, multiplicando sinais que vão sendo progressivamente unificados: smokings, carros conversíveis, garrafinhas de uísque, cabelo com brilhantina partido ao meio… A própria incoerência desses elementos do filme reforça essa mensagem coerente e emergente: desse modo, na grande cena da alucinação, quando o salão de bailes está animado com os foliões de uma outra era, entre os quais a triste figura deslocada de Jack Nicholson, de jaqueta esporte e com a barba por fazer, o tão esperado momento da verdade acontece, e o público demonstra seu espanto quando as convenções da história de fantasmas são quebradas e o herói penetra fisicamente seus ambientes fantasmagóricos e colide com o corpo material do garçom, cuja bebida ele derrama.

O público compreende imediatamente que esse garçom só pode ser a personagem ainda não mencionada: o antigo porteiro da noite, cujo pavoroso assassinato-suicídio num inverno anterior já havia sido revelado. A aparente incoerência é que o porteiro da noite – saído de um passado recente, cujos impulsos psicóticos e violência familiar tendemos a imaginar como paralelos aos da própria personagem de Nicholson – não deve ter sido, independentemente do que ele de fato tenha sido, nada semelhante a essa figura amável e prestativa do empregado bem barbeado, cuja monótona cortesia projeta sua malevolência através da falta de expressividade. Até mesmo a imagem de seu predecessor, o precursor da própria possessão de Nicholson e o formato maligno do seu próprio destino, foi reescrita em termos de um passado mais remoto e do estilo de uma geração anterior.

Trata-se da geração dos anos 1920, pela qual o herói é perseguido e possuído. A década de 1920 foi o último momento em que uma genuína classe média ociosa americana teve uma vida pública agitada e glamurosa, na qual a classe dominante projetou uma consciência de classe e uma imagem não apologética de si própria e desfrutou de seus privilégios sem culpa, abertamente, munida das emblemáticas cartola e taça de champanhe, sobre o palco social bem à vista das outras classes.

A nostalgia de O Iluminado, o desejo do coletivo, assume a forma peculiar de obsessão com o último período no qual a consciência de classe está à mostra: até mesmo o motivo do empregado ou criado pessoal expressa o desejo de uma hierarquia social extinta, que não é mais bem-vinda na atmosfera multinacional espúria em que Jack Nicholson é empregado por uma organização não identificada para um serviço trivial. Isso é claramente um verdadeiro “retorno do reprimido”: um impulso utópico que se presta muito precariamente à celebração complacente e edificante, que acha sua expressão no próprio esnobismo e na consciência de classe que inocentemente acreditamos estar por ele ameaçados.

A lição de O Iluminado, que é sua profunda análise e “formulação” das fantasias de classe da sociedade americana contemporânea, perturba igualmente a Esquerda e a Direita. A sua estrutura genérica – a história de fantasma – desmistifica implacavelmente o cinema nostalgia como tal, o pastiche, e revela o conteúdo social concreto do último: o aparentemente belo simulacro desse ou daquele passado é aqui desmascarado como possessão, como o projeto ideológico de retorno às certezas claras de uma estrutura social mais visível e rígida; e essa é uma perspectiva crítica que inclui, mas também transcende, o apelo mais imediato até mesmo daqueles filmes de suspense com os quais O Iluminado poderia momentaneamente ter sido confundido.

Tais filmes pareciam na verdade reviver e encenar um mundo maniqueísta, no qual o bem e o mal existem, no qual o demoníaco é uma força ativa, no qual – com a orientação e a dose de atenção devidas – poderíamos discernir o que está a serviço do Senhor do que não está. Tais filmes podem ser vistos como expressões e sintomas: e num clima social a respeito do qual ouvimos que há um poderoso reflorescimento fundamentalista e religioso em ação, podemos acreditar que eles documentem um importante desenvolvimento na consciência social de hoje e se prestem essencialmente à função de diagnóstico.

Há, contudo, outra possibilidade: a saber, tais filmes não expressariam tanto uma crença quanto a projeção do desejo de acreditar e a nostalgia por uma era em que qualquer crença pareceria plausível. Possivelmente, a idade de ouro dos filmes de ficção científica da década de 50, com seus homens-vagens e monstros devoradores de cérebro, atestou uma autêntica paranoia coletiva, aquela das fantasias do período da Guerra Fria, fantasias de influência e subversão que reforçaram o próprio clima ideológico por elas reproduzido. Tais filmes projetaram a figura do “inimigo” no individualmente monstruoso, sendo a organização coletiva desta concebida, na melhor das hipóteses, como uma cadeia subumana biológica ou instintiva, como a da dinâmica de um formigueiro. (O inimigo interno é então, paradoxalmente não diferenciado: os “comunistas” são pessoas como nos mesmos, exceto pelo olhar vazio e um certo automatismo que denuncia a apropriação de seus corpos por forças alheias.)

Mas no mundo atual, onde a informação sobre o planeta tornou-se bem mais difundida através dos meios de comunicação e onde, com o grande movimento de descolonização dos anos 1960, as coletividades mais reprimidas começaram a se expressar através de sua própria voz e a projetar exigências de assuntos verdadeiramente revolucionários, não é mais possível representar a alteridade desse modo. É inconcebível que o inconsciente político da América atual ainda imagine os russos como o mal, no sentido de uma alteridade alienígena e sem semblante das fantasias anteriores: na melhor das hipóteses, desajeitados e cruéis, como em avaliações recentes da invasão do Afeganistão.

Quanto à outrora multidão de chineses sem rostos, eles são agora os nossos fiéis aliados e reintegraram aquela velha fantasia de guerra de “amizade” entre a China e a América, enquanto nossos outrora inimigos vietnamitas – de qualquer modo, não mais uma ameaça ideológica global – gozam do relutante prestígio do vencedor. O Terceiro Mundo, geralmente imobilizado numa situação pós-revolucionária por ditaduras militares, corrupção, e pobreza econômica, não mais oferece elementos adequados às fantasias da América sitiada e isolada do mundo, submersa pelas ondas crescentes dos militantes das classes menos favorecidas.

Essa é a situação na qual a nova onda de filmes do sobrenatural (que pode ser datada de 1973, o ano tanto de O Exorcista I quanto da crise econômica global que marcou o fim da década de 60 como tal) pode mais precisamente ser vista como a expressão da nostalgia por um sistema no qual o Bem e o Mal são categorias bem-definidas: ela não expressa uma nova psicologia da Guerra Fria, mas antes o desejo e o remorso pelo período da Guerra Fria no qual as coisas ainda eram simples, nem tanto a crença em forças maniqueístas quanto uma suspeita permanente de que tudo seria tão mais fácil se pudéssemos acreditar nelas.

O Iluminado, por sua vez, ainda que não seja um filme do sobrenatural, abrange mesmo assim o novo gênero ideológico do sobrenatural de uma perspectiva crítica mais ampla, nos permitindo reinterpretar essa melancolia ainda “metafísica” do Mal absoluto nas condições muito mais materialistas de anseio pelas certezas e satisfações de um sistema de classe tradicional.

Esse é, na verdade, o constrangimento que O Iluminado reserva para o público de esquerda, tão acostumado a comemorar a consciência de classe como se o seu ressurgimento fosse politicamente positivo em toda parte e não incluísse formas de nostalgia pela hierarquia e dominação alegorizada na “possessão” de Jack Nicholson, ainda exercida pelo sistema social da década de 20, descrito à moda de Veblen.

Na verdade, questões legítimas e não passíveis de resposta podem muito bem ser levantadas a respeito do status “crítico” – para não mencionar o imediatamente “político” – desse filme ostensivamente de entretenimento, e em particular sobre a eficácia dessa desmistificação da nostalgia social para o público em geral. Atrás de tais noções de desmistificação e do “crítico” permanecem os modelos não examinados da psicanálise freudiana e de uma confiança no poder da autoconsciência e da reflexibilidade em geral para transformar, modificar, ou mesmo “curar” as tendências e posições ideológicas que foram, dessa forma, trazidas à luz da consciência.

Essa confiança está pelo menos deslocada numa atmosfera onde ninguém mais acredita na capacidade real da consciência individual e na qual os próprios ideólogos da “teoria crítica” – a Escola de Frankfurt – deixaram para trás, em trabalhos como a Dialética negativa, testamentos da descrença na possibilidade da “teoria crítica” do nosso tempo fazer algo mais além de manter o negativo e o teor crítico (da própria teoria crítica) ainda vivos em nossas mentes.

Não importa qual seja o seu valor crítico; O Iluminado, de qualquer modo, “resolve” suas contradições num espírito muito diferente. Se a posse pelo passado oferece um comentário implícito do projeto histórico de Kubrick em Barry Lyndon, o final de O Iluminado, através de uma citação sinistra, lança uma nova luz no 2001, cujo tema aparente era o salto evolucionário rumo ao futuro. Os conteúdos manifestos da prática metagenérica daquela coisa bem diferente, o gênero da ficção científica, derivaram-se, naturalmente, de Arthur C. Clark, cuja Star Child produziu ainda uma outra variante do tema favorito desse autor, qual seja, a mutação qualitativa no desenvolvimento humano e a noção de um tipo de “fim de infância” da história da humanidade.

Mesmo naquela época, entretanto, duvido que qualquer espectador daquilo que Annette Michelson significativamente chamou “a última parada do homem em sua viagem rumo à descorporificação e ao renascimento” – o quarto bem-decorado, embora formal e anônimo, no qual o último astronauta vivencia o ciclo biológico do envelhecimento e morte ao renascimento cósmico – possa ter recebido essas imagens com irrestrito entusiasmo. A própria esterilidade da decoração e o abandono implacável dos momentos adicionados ao ciclo de vida do indivíduo parecem proporcionar, no plano das imagens, um comentário desagradável que se contrapõe à mensagem ideológica otimista do filme.

Assim, o final de O Iluminado torna aquele comentário explícito e identifica o motivo operacional da Star Child como o da repetição, com todas as suas insinuações de fixações traumática e do desejo de morte. Na verdade, o grande labirinto no qual o Nicholson possuído é finalmente encurralado, e no qual ele morre congelado, abala o clímax vulgar do romance de Stephen King, com a destruição do próprio hotel pelo incêndio, porém reescreve mais insistente a face embrionária da Star Child pronta para nascer da face imóvel esbugalhada do Nicholson congelado numa temperatura abaixo de zero, a qual é finalmente substituída por uma fotografia de época do seu avatar aristocrático no ambiente da era das classes ociosas.

O prenúncio antecipatório de um futuro inimaginável é então abertamente substituído pelo horrível aprisionamento em monumentos da alta cultura (o salão de festas, o próprio labirinto, a música clássica), que se tornaram as células aprisionadoras da repetição e o espaço de onde o passado nos domina. Resta saber se O Iluminado conseguiu exorcizar o passado para Kubrick, ou para qualquer um de nós.

*Fredic Jameson é diretor do Centro de Teoria Crítica da Duke University (EUA). Autor, entre outros livros, de Archaeologies of the Future: The Desire Called Utopia and Other Science Fictions (Verso).

Tradução: Neide Aparecida Silva

Referência


O Iluminado (The Shining)

EUA, 1980, 146 minutos

Direção: Stanley Kubrick

Roteiro: Stanley Kubrick e Diane Johnson, baseado no romance homônimo de Stephen King

Elenco: Jack Nicholson, Shelley Duvall, Scatman Crothers e Danny Lloyd

Notas

[1] Ver Annette Michelson, “Bodies in Space: Film as ‘Carnal Knowledge’”, em Artforum, fev. 1969.

[2] Para uma interpretação socialista de Lovecraft, ver Paul Buhle, “Dystopia as Utopia: Howard Philips Lovecraft and the Unknown Content of American Horror Literature”, em Minnesota Review, n. 6, primavera 1976.

[3] Ver a obra de Raymond Williams e, em especial, The Country and the City (Londres, Chatto & Windus, 1973).

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