O mito da transição energética

Imagem: Pok Rie
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Por JEAN-BAPTISTE FRESSOZ*

As grandes indústrias intensivas em energia estão confortáveis com o slogan da transição energética

Sans transitionune nouvelle histoire de l’énergie (Sem transição. Uma nova história da energia) contesta a crença corrente. Na obra, publicada pela Editora Seuil, pega-se a famosa frase de Fredric Jameson: “É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo” e se dá um passo além: “É mais fácil escapar do capitalismo do que da economia dos combustíveis fósseis”. Ao mesmo tempo, a necessidade e a possibilidade de uma transição energética para fontes de emissão zero parece o único caminho viável.

Parece que estamos diante de uma repetição do que já aconteceu com a madeira, com o carvão e com o petróleo: a cada 50 anos, um deles substituiu o anterior para se tornar a fonte dominante de energia. É isso o que mostram os gráficos dos livros de história da energia. Agora é a vez das fontes de energia limpa.

Esses gráficos descrevem o percentual que corresponde a cada fonte de energia dentro do total de energia consumida. Foi só na década de 1970 que a história da energia começou a ser contada em termos tão relativos. No passado, os valores absolutos, ou seja, quantas toneladas de madeira, carvão ou petróleo eram consumidas, eram usados para avaliar o uso de diferentes fontes.

E se olharmos para os valores absolutos, perceberemos que não há nenhuma fonte de energia para a qual possamos falar de um “pico”. Vê, também, que nenhum deles parou de crescer em termos de consumo. O carvão pode deixar de ser o número um em poucos anos. Até agora, nunca houve uma “transição energética” de uma fonte para outra em escala global.

Em vez de “transição”, fala-se de “simbiose” energética. Esse é o outro ponto que precisa ser enfatizado na historiografia da energia. Essas fontes foram vistas como entidades separadas: no início, a madeira era dominante, depois foi substituída pelo carvão, que por sua vez foi sucedido pelo petróleo.

Mas essa narrativa obscurece as correlações entre as curvas, que mostram um entrelaçamento muito mais acentuado de diferentes fontes de energia: assim, por exemplo, o carvão foi crucial na produção de todo o aço que tornou necessária a economia baseada no petróleo.

E, por sua vez, o carvão depende da madeira: o Reino Unido consumiu mais madeira de carpintaria em 1900 do que queimou em 1800. Assim, as diferentes fontes estão em simbiose entre si. Há também simbiose em termos de produtos, em que as diferentes matérias-primas estão cada vez mais entrelaçadas.

Estamos a ganhar em eficiência energética por meio de produtos cada vez mais complexos e cada vez mais difíceis de reciclar. Isso está acontecendo com smartphones e, da mesma forma, com carros elétricos. E o problema dessa simbiose está crescendo.

Uma transição energética é realmente possível. Essa ideia deve muito a um cientista italiano, o físico Cesare Marchetti. Na década de 1970, ele foi um dos primeiros a aplicar as chamadas curvas “logísticas” às transições energéticas, segundo as quais muitos fenômenos seguem uma progressão em forma de “S”. Pense na propagação de uma epidemia: no início o crescimento é lento, depois acelera na fase intermediária e, finalmente, estabiliza.

Cesare Marchetti pensava que isso também poderia ser aplicado ao uso de fontes de energia. Hoje, contudo, é criticado por essa visão mecanicista da história da energia. Mas é interessante notar que Cesare Marchetti trouxe as curvas S para explicar o fato de que o surgimento de uma nova tecnologia ou fonte de energia não é tão rápido, porque leva décadas para superar a inércia de um sistema industrial.

Em comparação com seus contemporâneos, que achavam viável uma transição rápida, ele foi considerado um “pessimista”, prevendo que não poderíamos ficar sem carvão até o ano 2000 – uma data distante no tempo. Sua previsão foi desmentida pelos fatos. A voz mais pessimista dos anos 1970 agora nos parece otimista demais.

A transição energética põe em causa os lucros das grandes indústrias intensivas em energia. Embora possa parecer contraintuitivo, a indústria está confortável com o slogan da transição energética. Hoje, todas as grandes empresas prometem caminhar para a neutralidade carbônica.

Quem o iniciou isso foi Edward David, diretor de pesquisa da Exxon e ex-conselheiro científico de Richard Nixon, que em 1982 colocou a questão nestes termos: o efeito estufa é inegável, mas o que virá primeiro, o desastre climático ou a transição energética? Os cientistas do clima argumentaram que os primeiros efeitos do aquecimento global seriam sentidos no início dos anos 2000 e que a situação seria catastrófica em 2080.

Em vez disso, assume-se que a transição energética durará 50 anos. Assim, a inevitabilidade da transição tornou-se uma desculpa para a inação de curto prazo. O economista e prêmio Nobel William Nordhaus chegou a teorizar um adiamento da transição para o mais tarde possível para que ela pudesse ser realizada com as tecnologias mais avançadas que, sem dúvida, podem chegar até lá. A sabedoria convencional era que os reatores nucleares autoalimentados logo seriam desenvolvidos.

O mito da transição energética serviu para deixar de lado outras estratégias de combate às mudanças climáticas. Basta ler o último relatório do Grupo III do IPCC: foram analisados cerca de 3.000 cenários e nenhum deles sequer contempla o decrescimento. É estranho que, por um lado, se fale de uma crise existencial, mas nem sequer se admita como hipótese.

A transição energética permite imaginar uma economia em crescimento sem emissões, e isso enterra a questão da redistribuição de riqueza. Também não nos permite avaliar o valor dos bens que produzimos: o cimento, um material altamente emissor, pode ser usado para efeitos positivos para infraestruturas nos países em desenvolvimento ou para bens supérfluos no mundo rico, mas esse debate não é permitido.

Inicialmente, o Grupo III do IPCC era composto principalmente por economistas, e agora eles são principalmente modeladores. Estamos a confiar o problema aos peritos e a excluir os cidadãos do debate.

Existe essa consciência entre os movimentos ambientalistas. Muitos ambientalistas também falam da transição energética. Sim, a maioria dos movimentos há muito argumenta que a tecnologia sozinha não resolverá o problema das mudanças climáticas. Mas há muitos ambientalistas de mentalidade neoliberal que abraçaram a retórica da transição, apostando fortemente na energia solar. O problema é que estamos percebendo que descarbonizar a economia é uma tarefa muito mais difícil do que fazer a transição para energias renováveis.

*Jean-Baptiste Fressoz é professor da École des Hautes Etudes des Sciences Sociales de Paris (EHESS). É autor, entre outros livros, de L’Apocalypse joyeuse : Une histoire du risque technologique (Seuil).

Tradução: Eleutério F. S. Prado.

Publicado originalmente no portal Sinpermiso.


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