O murmúrio das urnas no Uruguai

Imagem: Nikolai Kolosov/ Montevidéu/ Uruguai
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Por EMILIO CAFASSI*

O Uruguai votou, mas o que restou foi um sussurro de desencanto, e uma direita que aprendeu a vencer

1.

No domingo passado, as urnas voltaram a falar no Uruguai, mas desta vez seu murmúrio pareceu abafado, mais como o eco de uma advertência do que o clamor de uma afirmação coletiva. As eleições departamentais de 2025 traçaram um mapa de contrastes e recuos, onde a política de proximidade, incorporada no quarteirão e no bairro, parecia tingida de um ar de descontentamento, ou talvez de desencanto.

Os números, despojados de retórica, revelam o que os discursos geralmente escondem: um declínio significativo da Frente Ampla (FA) na maioria dos departamentos — incluindo seus redutos históricos —, o surgimento da “Coalizão Republicana” (CR) em novas trincheiras departamentais e o recorrente oxímoro ao qual apelamos, atordoados pelo silêncio.

Montevidéu e Canelones, outrora o coração fervoroso do progressismo, viram um aumento notável nessa expressão de descontentamento ou indiferença: votos em branco ou nulos atingiram 7,8% na capital (contra 4,9% em 2020) e subiram para 11,2% em Canelones (contra 8,7% anteriormente).

Em dez dos dezenove departamentos, essa forma de renúncia cívica se espalhou. Não foi apenas uma eleição fria: foi uma eleição coberta de desencanto. Parece que a onda global de despolitização — e até mesmo de “antipolítica” — está começando a superar parcialmente a contenção dos quebra-mares cívicos orientais.

Na capital, o clima eleitoral parecia abafado, como se a cidade estivesse ignorando o calendário institucional. No interior, porém, havia áreas onde as disputas municipais despertavam paixões em vez de convicções. Mas mesmo aí a indiferença teve sua parcela: Maldonado (7,2%), Colônia (6,6%), Lavalleja (6,4%), Rocha (6,2%) e San José (7,6%) testemunharam o crescimento desse voto que não escolhe, que suspende o julgamento, que talvez espere ou que simplesmente se afasta.

A participação permaneceu alta (86,6%), assim como em 2020. Mas essa consistência não deve enganar: a frequência obrigatória não garante o comprometimento. O ato de votar persiste, mas em muitos casos é desprovido de decisão. Há aqui um sinal que merece mais do que uma análise técnica: um pensamento político que não se contenta em contar o que se perde ou ganha, mas questiona o que se esvai.

Talvez meu espanto seja uma analogia simplista com a ênfase que atribuo em meu livro, Panela de pressão, à altíssima taxa de abstenção nas eleições de meio de mandato na Argentina em 2001, que meses depois se tornaram a maior revolta popular que desafiou o estado de sítio e depôs cinco presidentes em apenas alguns dias. Não pretendo extrapolar, mas pode valer a pena considerar os sintomas antes que as tendências se estabeleçam.

2.

Nesse cenário de mudanças, a Coalizão Republicana surgiu não como um teste, mas como um ator com vontade de permanecer. Em Montevidéu, Canelones e Salto — onde o acordo foi finalizado — conseguiu consolidar ou conquistar governos municipais importantes, como 18 de Mayo, Toledo e Atlántida, que haviam sido tomados da FA. A direita, onde se une, avança, mesmo deixando escombros e feridos pelo caminho.

Mas, além dos números, a eleição deixou uma lição que os próprios líderes dos partidos nacionalistas e colorados são rápidos em verbalizar: não há espaço para dispersão se alguém quiser contestar o poder local. Río Negro e Lavalleja, onde a fragmentação impediu a vitória, tornaram-se exemplos pungentes. Salto, por outro lado, destacou-se como prova contundente: com a coligação unificada, 57,7% dos votos foram suficientes para desbancar a Frente Ampla, que ficou com 38,1%.

A direita parece ter entendido que a aritmética não é apenas uma questão de adição, mas também de símbolos. A Coalizão Republicana é hoje mais que um slogan: uma amálgama oportunista, distribuidora de cargos e favores, de clientelismo indisfarçável, buscando apelar para aqueles que não se sentem representados por velhos emblemas ou por sua nostalgia ideológica em nome de algum pragmatismo.

Talvez o mais preocupante seja que enquanto as dúvidas se multiplicam à esquerda, as certezas florescem à direita. A coalizão não apenas gerencia: ela aprende. E seu aprendizado parece apontar inequivocamente para um 2030 com uma fórmula única para todos os 19 departamentos. Talvez o aviso mais claro dessas eleições não venha do que a Frente perdeu, mas do que o partido no poder projeta ganhar. Pelo menos esclarece a tendência em direção a um novo sistema bipartidário.

Embora a Frente Ampla tenha sido o partido mais votado em 12 departamentos, só conseguiu vencer a Coalizão Republicana em Montevidéu e Canelones. Nos outros 17 departamentos, a coalizão teórica governista (a soma de todos os slogans conservadores) superou a Frente Ampla, com diferenças que em alguns casos foram avassaladoras, como em Rivera, onde a vantagem ultrapassou 40%. Um número forte o suficiente para quebrar as expectativas geradas pelo desempenho louvável da Frente Ampla no interior durante o segundo turno que levou Orsi à presidência da República.

As derrotas em Artigas, Salto e Soriano acenderam o alarme. Apesar das investigações judiciais, acusações e escândalos envolvendo os candidatos do partido governista nesses departamentos, a queda de votos — embora significativa — não foi suficiente para reverter os resultados: 10.000 votos a menos em Artigas e 5.000 em Soriano. A sanção existiu, mas em terras onde o Partido Nacional governa com raízes caudilhas, não foi suficiente para fazer a balança pender.

Ainda mais perturbador foi o apoio partidário explícito a figuras controversas, o que levanta uma questão ética e estratégica sobre a relação entre cidadania, governança e justiça. A tabela anexa compara os votos positivos entre o desempenho do primeiro turno nacional e os departamentais. Nos três casos em que a direita concorreu como Coalizão Republicana unificada, foram tomados os valores do segundo turno. O declínio em quase todos os casos é eloquente, assim como o desaparecimento das expressões alternativas insignificantes que foram propostas em 2004.

A Frente Ampla, que conseguiu recuperar Río Negro e pela primeira vez considerou a possibilidade de governar Lavalleja, viu, no entanto, desaparecer Salto, um departamento de importância demográfica e simbólica, onde a Coalizão Republicana conseguiu sua primeira administração departamental completa. Esse “roque” entre Salto e Río Negro foi uma das poucas mudanças significativas, mas não foi pouca coisa: mostra que as alternâncias permanecem abertas ao longo da costa, enquanto as hegemonias se consolidam no norte e no leste, onde o PN continua sendo uma potência quase inabalável. No momento do envio destas linhas, Lavalleja não estava definida.

Em Artigas, Soriano e Salto — três departamentos marcados por escândalos de corrupção, indiciamentos e renúncias — os eleitores optaram por candidatos direta ou simbolicamente ligados a essas práticas. Emiliano Soravilla, patrocinado pelo clã Caram — cujas principais figuras foram condenadas por corrupção — assumirá como prefeito após declarar abertamente que governará ao lado da desqualificada Valentina dos Santos, a quem já prometeu nomear secretária-geral.

Guillermo Besozzi, acusado de uma série de crimes, de usar uma tornozeleira eletrônica e de cumprir uma pena parcial de prisão até três dias antes da eleição, mesmo assim ganhou um segundo mandato em Soriano. Albisu, forçado a renunciar devido a contratações irregulares em Salto Grande, foi nomeado prefeito de Salto sob a égide da Coalizão Republicana.

As urnas não puniram: apenas alguns milhares de votos foram perdidos. Mas o que deveria chocar a consciência democrática não é apenas a impunidade prática, mas a naturalização cultural do conluio. A corrupção, se for “doméstica”, se ajudar a pagar um funeral ou a conseguir um emprego, deixa de ser crime e vira folclore. O adversário não é o corrupto, mas sim quem o denuncia. E assim, pouco a pouco, a política vai se esvaziando até que reste apenas a casca do seu ritual.

3.

A cartografia municipal também não trouxe surpresas, mas sim confirmações. A Frente Ampla demonstrou mais uma vez suas raízes essencialmente metropolitanas: dos 32 municípios conquistados — o mesmo número de 2020, apesar do aumento de prefeituras em disputa — 24 estão concentrados em Montevidéu e Canelones. O crescimento territorial da esquerda parece interrompido, encapsulado em seus redutos históricos.

Por sua vez, o Partido Nacional consolidou sua hegemonia em muitos dos novos municípios, estendendo seu domínio local para além da narrativa nacional. Em alguns departamentos, não houve eleição alguma: um terço do eleitorado não conseguiu nem votar em seu prefeito, um reflexo claro do ritmo lento do processo de municipalização e da maturidade institucional desigual do país.

Abaixo da superfície dos slogans, os setores também se mediram. Em Montevidéu, a Lista 1 do Partido Nacional — símbolo da unidade branca dentro da Coalizão Republicana — recebeu a maioria dos votos, embora tenha perdido 9.000 votos em comparação a 2020. Dentro da Frente Ampla, o MPP emergiu como o claro vencedor interno: sua lista 609 cresceu 40% em comparação à eleição anterior, tornando-se o principal apoiador da vitória de Mario Bergara.

Em contraste, o Partido Comunista e o Partido Socialista caíram acentuadamente: o primeiro caiu 38%, e o segundo, 40%, revelando uma reorganização interna que ainda não se estabilizou. Canelones confirmou essa tendência: o MPP voltou a liderar, tanto dentro da FA quanto entre todas as listas, com mais de 41.000 votos. A PCU manteve os números, e o PS voltou a dar sinais de recuo. À direita, o Vamos Uruguai — setor colorado liderado por Bordaberry — posicionou-se fortemente, mas sem ofuscar a influência dominante do nacionalismo.

O resultado não apenas demonstra a força dos setores, mas também indica a direção futura das alianças. Enquanto a Coalizão Republicana vivencia uma disciplina crescente à direita, a competição interna por narrativa e liderança está se aprofundando na esquerda. Ainda não é uma crise, mas é uma bifurcação na estrada. E o que está em jogo não é apenas a máquina eleitoral, mas a alma política de cada projeto.

E enquanto a arquitetura partidária está sendo reconfigurada e os slogans são forçados em sua busca por eficácia, há um fato que permanece — imutável, sombrio — em segundo plano: das 19 prefeituras do país, apenas uma será chefiada por uma mulher. Mais uma vez, a política subnacional é confirmada como domínio do poder masculino. Nem mesmo a ampliação do número de municípios conseguiu quebrar essa hegemonia: de 136 prefeituras, apenas 38 serão ocupadas por mulheres.

A Frente Ampla, que historicamente levantou a bandeira da igualdade e incluiu um caráter antipatriarcal em seu programa de fundação, também não escapou dessa reflexão: suas candidatas eram minoria, e sua representação executiva era marginal. A paridade continua sendo um horizonte discursivo, não uma conquista. Em um país que nunca elegeu uma presidente mulher, onde os tetos de vidro são camuflados como consenso partidário, essa democracia liberal e fiduciária, eufemisticamente chamada de representativa, continua sofrendo com sua dívida de gênero. E cada eleição que não corrige essa injustiça, a perpetua.

*Emilio Cafassi é professor sênior de sociologia na Universidade de Buenos Aires.

Tradução: Artur Scavone.

Para obter o quadro de distribuição elaborado pelo autor com base em dados da contagem final de 2024 e da contagem primária de 2025, clique neste link.


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