Por CLÓVIS ROBERTO ZIMMERMANN*
Durante o governo de Bolsonaro, houve uma tentativa de restaurar o poder das elites, aumentando as desigualdades sociais, enquanto se promovia a liberdade individual como uma fachada
1.
Enquanto muitos autores defendem a tese de que o neoliberalismo teria como propósito ideológico central o desmonte do Estado e de seus investimentos em políticas sociais, o geógrafo britânico David Harvey (2008) defende a tese de que a principal contribuição do neoliberalismo teria sido a restauração do poder de classe das elites.
Nos países capitalistas avançados, a política redistributiva implementada pelas instituições da classe trabalhadora, especialmente sindicatos e partidos políticos de esquerda tiveram uma influência muito relevante no aparato de Estado. Isso implicou na ampliação dos gastos públicos e na criação do Estado de bem-estar social, em intervenções ativas do Estado na economia e em algum grau de planejamento do desenvolvimento
Isso segundo o autor teria promovido uma economia social e moral (sustentada à vezes por um forte sentido da identidade nacional) por meio das atividades de um Estado intervencionista. Em virtude disso o Estado se transformou num campo de força, internalizando relações de classe.
Segundo David Harvey (2008), Margaret Thatcher buscou desesperadamente desmantelar o Estado de bem-estar social, estendendo para todas as áreas o ideal da responsabilidade pessoal (por exemplo, através da tentativa de privatização da assistência de saúde) e reduzir ao mínimo as obrigações do governo. Os resultados disso é que atacar áreas como a educação, a assistência à saúde, a assistência social. as universidades, a burocracia do Estado e o judiciário foi uma tarefa que se mostrou bem difícil.
Margaret Thatcher teve dificuldades em combater atitudes arraigadas e muitas vezes tradicionais de classe média alta de seus principais apoiadores e por isso não conseguiu avançar tão bem. Para o autor, depois de vários anos de desgastantes e confrontos em seu próprio partido e na mídia, a direita inglesa conseguiu implantar “modestas reformas neoliberais”.
O autor chama a atenção para o fato de que a teoria neoliberal possui um talento especial em oferecer uma máscara benevolente, plena de palavras que soam prodigiosamente positivas, como liberdade de ação, liberdade de pensamento e escolha, para ocultar a realidade extremamente desagradável da restauração ou reconstituição do poder de classe nua e crua, tanto no plano local como no transnacional, porém mais especificamente nos principais centros financeiros do capitalismo global.
2.
No Brasil, o governo de Jair Bolsonaro procurou durante todo o seu mandato como presidente do Brasil desmontar as políticas sociais, intentando realizar uma redução substancial nos orçamentos de políticas e programas sociais além de tentar efetuar a remoção, abolição de políticas existentes (regime de capitalização na previdência, future-se na educação).
Em consequência disso, diversos movimentos sociais se organizaram em protestos contra o desmonte de políticas públicas propostas pelo governo de Jair Bolsonaro assim como na defesa da dignidade humana e da democracia. Entre as principais ações pode-se incluir protestos, campanhas de conscientização, articulação internacional e pressão sobre instituições públicas.
Contudo, comparado com a ditadura de Augusto Pinochet no Chile, que no início dos anos 1980 iniciou um ciclo de privatizações dos serviços sociais, Jair Bolsonaro não conseguiu realizar mudanças institucionais expressivas. No Chile, ocorreu a privatização dos fundos previdenciários com a instituição do regime de capitalização e de serviços educacionais (cobrança de mensalidades nas universidades públicas). Jair Bolsonaro em comparação não consegui realizar nenhuma mudança institucional expressiva nessas áreas centrais da política social.
Por outro lado, dados da CEPAL exibido na tabela abaixo demonstram claramente que os governos de direita tanto de Michel Temer como de Jair Bolsonaro trabalharam na restauração do poder de classe, aumentando as desigualdades sociais. Bolsonaro ofereceu uma máscara benevolente, com a defesa da liberdade individual, liberdade de ir e vir, de escolha, para ocultar a realidade extremamente desagradável da restauração do poder das elites abastadas do Brasil.
Exemplo disso é que durante o governo Bolsonaro não houve um reajuste do salário mínimo, algo vigente nos governos do PT, que permitia um reajuste real do piso nacional, combinando reajuste pela inflação e crescimento do PIB. Consequentemente vários reajustes em outros benefícios também não surtiram efeito. O aumento real também não ocorreu em 2017 e 2018, anos que houve retração do PIB.
Do ponto de vista simbólico, governos do PT vinham sofrendo ataques por ampliar o poder de compra da população, possibilitando dentre outras coisas acesso ao transporte aéreo, algo que incomodou muito à nossa elite. Nesse sentido, não é de estranhar que as elites econômicas apoiaram Jair Bolsonaro tanto do ponto de vista eleitoral como de sustentação de seu governo.
O que chama a atenção no gráfico abaixo é que em 2020 tivemos uma redução da desigualdade em plena pandemia da Covid 19. Essa redução pode ser explicada pela introdução do programa Auxílio Emergencial, um benefício de R$ 600 (ou R$ 1200 para mães chefes de família) concedido pelo governo para mais de 50 milhões de cidadãos de baixa renda para minimizar os impactos econômicos do coronavírus.
Da mesma forma, em 2022, tivemos outra redução da desigualdade, dessa vez em função do aumento do valor e da quantidade de beneficiários do programa Auxílio Brasil, programa de transferência de renda instituído para substituir o nome do Bolsa Família durante o governo de Bolsonaro em outubro de 2021.

Por ser um Programa de ampla visibilidade e importância do ponto de vista social e eleitoral, o Bolsa Família foi alvo de uma expansão expressiva, tendo uma expansão de 14.184.940 beneficiários em dezembro de 2021 para 20.975.152 famílias em dezembro de 2022, ou seja, 6.790.212 novos beneficiários. O valor médio do benefício aumentou de R$ 191,86 no ano de 2020 para R$ 678,36 em dezembro de 2022.
É evidente que essa expansão, a única explicita sob o governo de Jair Bolsonaro, teve motivações político eleitorais, cujo objetivo central era evitar a derrota eleitoral. O caráter eleitoreiro dessas medidas assim como a diminuição de impostos de combustíveis é visível na medida que essas mudanças tinham o prazo de validade somente até o final do ano eleitoral de 2022.
Segundo um levantamento do jornal Brasil de Fato somente depois do segundo turno das eleições de 2022, o governo de Jair Bolsonaro tomou medidas para efetuar pagamentos a caminhoneiros e taxistas; o desconto, pela Caixa Econômica Federal de até 90% em dívidas de 4 milhões de devedores; incluiu 477 mil famílias no Auxílio Brasil além da ampliação do público de outros benefícios sociais.
Vale lembrar também que essas medidas tinham impacto sobre uma camada da população que, em sua maioria, não votava em Jair Bolsonaro. O caráter eleitoreiro dessas medidas fica claro, pois a maioria desses benefícios terminaram no final do ano de 2022.
3.
Assim sendo, fica claro que os governos de direita no Brasil tiveram a intenção de restaurar o poder de classe das elites, mas em virtude da mobilização política, a consequente queda de popularidade e o instinto de sobrevivência política de Jair Bolsonaro pearam muito mais do que a defesa da ideologia neoliberal.
Ao invés de desmontar as políticas sociais, Jair Bolsonaro se rendeu no final do mandato à lógica eleitoral, procurando evitar a derrota política (blame avoidance), contudo sem o devido sucesso. Estudos futuros podem ajudar a entender em que medida os ataques às eleições, à democracia em geral e as tentativas de golpe de Estado por parte de Jair Bolsonaro indicam que sob regimes democráticos é mais difícil o desmonte de políticas públicas na intenção de implantar um Estado mínimo.
Estudos futuros também podem ajudar a pensar a relação entre o neoliberalismo, especialmente na América Latina e a defesa de um giro autoritário por parte dos neoliberais.
*Clóvis Roberto Zimmermann é professor de sociologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Referências
BOSONI, Giorgio Boccardo. 30 años de política neoliberal en Chile. Privatización de servicios públicos: su historia, impacto sobre las condiciones de vida y efectos sobre la democracia. Fundación Nodo XXI, Santiago do Chile 2020.
BROWN, Wendy. En las ruinas el neoliberalismo. El ascenso de las políticas antidemocráticas en Occidente.Traficantes de Sueños, Futuro Anterior y Tinta Limón Madrid, 2021.
HARVEY, David. O neoliberalismo – história e implicações. São Paulo: Loyola, 2008.
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