O país meia-boca

Imagem: Magda Ehlers
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por JOSÉ MICAELSON LACERDA MORAIS*

Com Bolsonaro temos a “coroação” de um anti-Estado-Nação.

Por que Bolsonaro representa o coroamento do Brasil? Por que, pelo contrário, não significa o seu pior pesadelo? Inicialmente, cabe destacar que estas duas questões não são mutuamente excludentes, caso consideremos a nossa formação, o desenvolvimento da nossa institucionalidade e sua sociabilidade subjacente. O futuro da nossa formação não poderia ter reservado algo diferente do que nos tornamos, ou seja, a causalidade social é “dependente de trajetória”.

É importante frisar que isso não é meramente uma questão de destino. Antes tem a ver com dois grandes conjuntos de mediações históricas e suas inter-relações: (1) de ordem interna (institucionalização da vida nacional); e (2) de ordem externa (papel do país na divisão internacional do trabalho). Retomando Caio Prado Júnior, “O ‘sentido’ da evolução brasileira que é o que estamos aqui indagando, ainda se afirma por aquele caráter inicial da colonização”.

Ao longo do século XX foram elaboradas diversas teorias e modelos tanto para entender quanto para transformar nossa condição (colonial-subdesenvolvida). Entre elas destacamos o pensamento crítico latino-americano tanto de cunho estruturalista quanto marxista. Contribuições analíticas importantes nos permitiram entender de forma sistematizada a nossa formação social e sua dinâmica.

Destacamos a concepção centro-periferia e a teoria da deterioração dos termos de troca da Cepal, a tendência ao desequilíbrio externo, o enfoque estruturalista da inflação, a teoria do subdesenvolvimento de Celso Furtado, a “Escola de Campinas” com a tese das desproporções cíclicas e do capitalismo tardio, a originalidade do pensamento de Francisco de Oliveira, a teoria da dependência e da superexploração do trabalho, entre outras.

Assim, do ponto de vista lógico-histórico-formal estabelecemos um conjunto de conhecimentos, necessários e suficientes, para dar vazão ao nosso processo civilizatório. Todavia, o conjunto das condições históricas anteriormente referidas (mediações internas e externas), exerceram força direcional, no sentido de uma “trajetória dependente”, muito mais intensa que qualquer ação/processo político, institucional e de sociabilidade, que nos removesse da condição colonial (subdesenvolvimento e dependência). E, assim, o sentido da colonização, de Caio Prado, ainda carrega força suficiente para explicar Bolsonaro, não como um acidente, mas como o coroamento de uma anti-Estado-Nação.

Entre 1980, ano de criação do PT e, 1988, ano do estabelecimento da Constituição cidadã, muitas lutas foram travadas no caminho do ideário democrático. A organização de movimentos sociais, o fortalecimento de sindicatos, o processo de transição para um regime democrático, tudo parecia convergir para uma transformação objetiva da sociedade brasileira. Finalmente, poderíamos deixar para trás o anátema do “sentido” da colonização A democracia e a institucionalização dos poderes soberanos, das políticas públicas, dos partidos políticos e da política, pareciam promissoras.

No entanto, não conseguimos avançar para além da ampliação dos direitos de cidadania, ainda que de forma bastante tosca, pois a nossa redemocratização conservou e deu novo sentido a um tipo de relação de poder político (dentro e entre os três poderes) extremamente nefasto a qualquer pretensão de construção de uma sociedade mais justa e igualitária. Prova cabal disso foi o “Esquema PC”, já no primeiro governo eleito pelo povo desde 1960, de Fernando Collor de Mello, em 1990. A nossa redemocratização, o Estado, os três poderes e o sistema político partidário, já renasciam impregnados de um fisiologismo político nefasto, próprio de uma sociedade de passado nacional colonial subdesenvolvida e dependente (este último no sentido estruturalista e marxista).

Entre 1992, governo Itamar Franco e, 2002, ano de eleição de Lula, tivemos uma das mais grotescas construções politicas possíveis dentro de um sistema democrático: a combinação da instituição de um Estado neoliberal com a sofisticação de um fisiologismo estatal-político-partidário próprio a ele. Fechamos os olhos a tal condição, pois tínhamos à frente uma nova esperança: o primeiro governo de um operário de orientação socialista. Mas, no contexto de um mundo neoliberal e de fisiologismo estatal-político-partidário que caminhos tomaria o governo petista? De enfrentamento? Para nossa decepção, não.

O caminho tomado foi o de adequação. No campo econômico a ortodoxia econômica prevaleceu e o crescimento econômico foi muito mais resultado de uma conjuntura externa favorável (efeito China) que a qualquer medida de transformação da estrutura produtiva e tecnológica brasileira. No campo social a redução da pobreza e da desigualdade, apesar de importantes, guardou mais relação com medidas tipo assistencialistas e eleitoreiras que com uma alteração no perfil ocupacional da população, por exemplo (a pobreza deixou de ser vista como um produto do nosso capitalismo periférico e tornou-se uma questão administrativa de governo). Finalmente, no campo político o escândalo do Mensalão mostrou que nem o governo do PT poderia se desvincular de um dos traços mais nefastos de nossa herança colonial. Essa “hegemonia às avessas”, como denominada pelo nosso saudoso Francisco de Oliveira, que pelo menos tirou da fome cerca de 15 milhões de brasileiros, entre outros feitos e desfeitos, durou apenas 14 anos.

O fisiologismo estatal-político-partidário brasileiro não perdoa. O seu modus operandi são os esquemas de corrupção que servem, entre outras coisas, tanto para eleger quanto para depor presidentes. Isso desde de Collor de Mello. A corrupção é própria do fisiologismo, quando tratamos aquela como um processo endêmico muitas vezes esquecemos da sua origem. A combinação desse fisiologismo com a financeirização do sistema econômico brasileiro (aumento da importância do setor financeiro na economia e nas suas instituições governamentais), quebrou o ciclo da “hegemonia às avessas” e, tornou possível, a eleição de um candidato que é “esculpido e encarnado” a cara do “sentido” da nossa colonização.

Nesse ponto sou obrigado a discordar, apenas em termos, do saudoso Celso Furtado quanto a definição do Brasil como uma construção interrompida. Na verdade, nunca interrompemos o tipo de construção nacional que foi iniciada na nossa colonização. Pelo contrário, guardamos e sofisticamos, entre períodos de império, república, ditadura e república, a sociabilidade e a institucionalidade do país que somos hoje. Tivemos, é certo, transformações estruturais importantes, como nossa industrialização, para a qual Furtado reserva o termo construção interrompida. Entretanto, uma industrialização com desequilíbrio permanente no nível dos fatores (capital e trabalho), como o próprio autor analisa, concentradora de renda, inibidora do progresso técnico nacional e com salários baseados no nível de subsistência e não na produtividade do trabalho, não poderia realmente resultar um processo civilizatoriamente transformador. A grande favela-Brasil e os nossos desequilíbrios regionais não deixam margem para dúvida.

Assim, nos tornamos esse país meia-boca. Temos educação, saúde, habitação, saneamento, infraestrutura. Mas, é tudo meia-boca, feito às pressas, sem cuidado, incompleto, malfeito; de acordo com interesses eleitoreiros e/ou do capital. Continuamos teimosamente achando tudo normal; crianças pedindo nos sinais, pessoas esperando seis meses para um exame de urgência, adolescentes nas escolas, mas que não sabem ler ou escrever, uma desigualdade econômica e social gritante etc. Por outro lado, há quem lucre muito com tudo isso: os grandes negócios de educação, saúde, habitação, etc, que enriquecem desmesuradamente uma meia dúzia de ricos. A condição pós-moderna ainda nos reservou uma bela surpresa: o ódio social.

Agora nos odiamos mortalmente ou por sermos de esquerda ou de direita, uma condição que enfraquece enormemente nossa luta. Não que o debate não seja relevante, ainda que o pensamento de direita seja algo humanamente e ambientalmente insustentável. Todavia, porque o debate abandonou o campo das ideias e entrou no campo do puro ódio, preconceito, misoginia, xenofobia, homofobia, negacionismo, etc, etc, etc.

Não resta dúvida que o governo Bolsonaro é um verdadeiro desastre civilizatório frente aos princípios fundamentais do Estado democrático de direito social. Destarte, é também o coroamento de uma sociedade colonial, patriarcal, racista, preconceituosa, negacionista, violenta, opressora, exploradora, nepotista, clientelista, patrimonialista, concentradora de renda e riqueza e de um fisiologismo político que perpassa os três poderes e fundamenta o sistema político-partidário.

A sua eleição pode até ter sido um acidente de percurso como muitos acreditam. Todavia, parece muito mais provável que seja resultado da evolução do fisiologismo estatal-político-partidário, iniciado no período democrático, de forma explícita, pelo governo Collor de Mello. De certa forma, não podemos atribuir toda essa culpa ao PT, pois ele tanto se beneficiou quanto foi vítima de tal processo (do uso político da Lava Jato, por exemplo). A culpa dos governos do PT está em não ter lutado e transformado de dentro para fora o Estado e o sistema político-partidário brasileiro.

Estamos entrando em um ano de eleições presidenciais e novamente temos a esperança da volta de um governo “progressista” com Lula novamente candidato. Mas, o quão progressistas podemos ser no contexto do fisiologismo estatal-político-partidário e sob comando da combinação do capital imobiliário, financeiro e do agronegócio? Lula, sem dúvida, ainda é a nossa melhor opção. Todavia, nos marcos do que permite o fisiologismo brasileiro, como bem nos lembra seus mandatos anteriores.

José Raimundo Trindade, em artigo publicado no site A Terra é Redonda, de 16/01/2022, versa sobre “a possibilidade de a sociedade brasileira conseguir estabelecer certa ‘ruptura social necessária’”, pelo estabelecimento de um programa com os seguintes elementos: “(a) ruptura total com o regime fiscal-dependente dos últimos trinta anos (…); (b) ampla reforma tributária progressiva (…); (c) reestatização das principais empresas do setor energético e mineral (…); (d) reconstrução do Sistema de Inovação Nacional (…); (e) projeto de soberania produtiva (…); (f) projeto de completitude tecnológica (…); (g) assembleia constituinte exclusiva com critérios de paridade de gênero; (h) repactuação federativa”. Como “agenda urgente e necessária” para reconstrução da soberania brasileira, destaca: ruptura total com o regime fiscal-dependente (revogação da EC 95/16 que “impossibilita qualquer exercício de poder democrático no país”); ampla reforma tributária progressiva; reestatização das principais empresas estratégicas nacionais (Companhia Vale e Petrobras); e “ruptura, revogação e reorganização social da reforma trabalhista e previdenciária”.

A validade da agenda mínima para reconstrução nacional proposta pelo professor José Trindade é inquestionável. Todavia, no contexto institucional-político-partidário do Brasil, como descrito acima, ela é simplesmente impraticável. Avanços estruturais e civilizatórios serão praticamente impossíveis enquanto ministérios forem tratados como moeda de troca política (e seus serviços como favores ao capital), enquanto assentos políticos representarem negócios lucrativos para partidos, enquanto empresas estatais forem utilizadas como instrumentos de partidos políticos.

Como modificar um sistema partidário no qual o fundo eleitoral vale R$ 5,7 bilhões? Que partido político terá interesse? Como estabelecer um governo com um projeto de nação quando ministérios e empresas estatais estão penhorados por interesses político-partidários? Quando temos um Congresso Nacional que legisla pela troca de favores eleitoreiros (R$ 15,9 bilhões somente de emendas parlamentares, em 2021) e opera através de um sistema político voltado à proteção das elites. Enfim, quando temos um executivo que define os membros da mais alta instância do poder judiciário brasileiro.

A questão que imediatamente se coloca é: será que realmente queremos ser um país diferente? Depois: e se quisermos será que temos força suficiente para quebrar essa dependência de trajetória? E, ainda: será que nossa elite econômica e política (que nunca foi capaz de entender o sentido de nação) tem interesse em um país diferente? Será esse o Brasil que temos e sempre teremos? Não há outro caminho que não o da revolução. Revolução no nosso Estado (em todos os níveis governo e poderes) e nosso sistema político-partidário para que seja estabelecida uma nova institucionalidade que nos livre de uma vez por todas de nossa herança colonial (subdesenvolvimento e dependência) e de seu maligno fisiologismo. Mas, sinceramente, não vejo movimentos sociais, sindicais e nenhum partido político nem com visão nem organização suficiente para acordar e levantar nosso povo. O mais provável é que continuemos sendo o que sempre fomos: um Frankenstein tupiniquim. Pelo bem das futuras gerações espero que não!

*José Micaelson Lacerda Morais é professor do Departamento de Economia da URCA. Autor, entre outros livros, de O capitalismo e a revolução do valor: apogeu e aniquilação.

 

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________

AUTORES

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES