Por FRANCIVALDO NUNES, PAULO DE MELLO; MARCOS LEITÃO DE ALMEIDA & EVERALDO DE OLIVEIRA ANDRADE*
Ao se atacar hoje o ensino de história e o conjunto dessa área do conhecimento, retira-se do estudante e da sociedade em geral a possibilidade de compreender as raízes das desigualdades, das lutas sociais, das conquistas democráticas. Abala-se o vínculo entre memória e cidadania.
1.
As recentes ações do governo de São Paulo, somadas ao avanço de discursos reacionários e à pressão de grupos extremistas sobre a liberdade de ensino e a atividades dos profissionais da história, remetem a um cenário distópico que parece saído das páginas de 1984, de George Orwell. Na obra, o protagonista Winston trabalha no Ministério da Verdade, onde documentos do passado são incinerados e substituídos por versões convenientes ao regime totalitário. Esse processo, chamado eufemisticamente de “retificação”, revelaria o verdadeiro motor do autoritarismo: o controle do passado para moldar o futuro.
No Brasil de hoje, não há buracos pneumáticos nem ministérios da verdade, mas há uma realidade cada vez mais alarmante: Câmaras Municipais e parlamentares pressionando docentes, tentativas de cercear currículos escolares, invasões de universidades e uma cultura política que incentiva a autocensura.
Em atuação orquestrada por grupos de extrema direita que remonta ao início dos anos de 2010, quando emergiu o famigerado Movimento Escola Sem Partido, visando alimentar o clima golpista que avançou sobre o país. Como em George Orwell, busca-se criar um ambiente onde a memória coletiva é ameaçada, e o passado se torna alvo de manipulação ideológica.
O governo paulista, liderado por Tarcísio de Freitas (Republicanos), tem promovido uma série de ações que, embora apresentadas como parte de uma “modernização da educação”, escondem um projeto de desmonte e controle. O prefeito da capital, Ricardo Nunes (MDB), segue essa orientação em sua política educacional. Ambos escondem um projeto de privatização, militarização e controle tecno-burocrático e ideológico da educação.
Este novo ciclo autoritário da política educacional paulista representa uma ruptura histórica com avanços obtidos na educação no período do processo de (re)democratização da sociedade brasileira na década de 1980. Naquele contexto, as lutas pelo retorno da disciplina de História e Geografia, que se elevaram desde as salas de aula e alcançaram forte impulso com a participação e apoio da Associação Nacional de História, a ANPUH, foram vitoriosas.
Como resultado, os governos paulistas da época promoveram amplo processo de reformulações curriculares que colocavam a escola no centro da construção curricular, envolvendo docentes, técnicos da educação e professores pesquisadores das universidades. O mesmo ocorreu na rede municipal da cidade de São Paulo, quando na gestão de Luiza Erundina, sob orientação de Paulo Freire ocorreu o “Movimento de Reorientação Curricular”.
Em que pese as contradições dos processos e dos documentos produzidos, é inegável que este processo teve ampla participação dos educadores e buscou alinhar o currículo às novas demandas da sociedade, da pesquisa histórica, e do ensino de História.
2.
O aprofundamento de medidas autoritárias na política educacional pelo governo Tarcísio Freitas, aprofunda processos que vinham em curso desde os governos paulistas do PSDB. Trata-se de um alijamento dos/as docentes do processo de construção dos currículos, o afastamento das universidades públicas e pesquisadores, e a contratação de fundações, que promovem uma inversão do processo democrático que apostava na contextualização dos conteúdos, na inserção situada dos conhecimentos escolares, na valorização dos saberes e experiências da comunidade escolar.
Na contramão dessa perspectiva o governo estadual alinha-se a uma abordagem da educação que advoga a centralidade de sistemas de avaliação e controle que submete a política educacional à simples busca de metas e resultados quantitativos. A tal educação “baseada em evidências” ou resultados foi potencializada e aprofundada com os avanços das plataformas de ensino.
Combinada com o reforço de políticas de bônus salariais, ranqueamentos das escolas, as plataformas fazem do currículo um material estruturado digital, que sequestram a autonomia do professor no planejamento, criação e desenvolvimento de suas aulas.
Em cinco anos, o currículo do Ensino Médio das escolas estaduais de São Paulo perdeu 35,1% da carga horária das disciplinas de Ciências Humanas. Em 2020, antes da reforma do ensino médio, eram 720 horas. Em 2025, os estudantes da rede estadual terão 466,7 horas de aulas nos turnos diurnos das quatro disciplinas de ciências humanas (história, geografia, sociologia e filosofia), carga horária menor que a de 2024 – que era de 480 horas.
Além dessa redução no Ensino Médio também se reduziram os componentes de ciências humanas no ensino fundamental. A diminuição de aulas de geografia e história implicou na redução de 28,3% da carga horária nos anos finais do ensino fundamental de tempo parcial diurno e de 13,9% no de tempo integral (jornadas de 7 ou 9 horas).
A redução da carga horária dos conteúdos de história e sua crescente dissolução como disciplina específica, o cerceamento pedagógico das ações dos professores por plataformas digitais e o avanço das escolas cívico-militares são medidas que fragilizam o papel formador da escola e de seus professores e tornam o ensino refém de interesses políticos autoritários.
3.
Esse tipo de política ecoa práticas já observadas em estados norte-americanos como o Texas, onde diretrizes educacionais foram modificadas para minimizar ou suprimir o ensino de temas como escravidão, racismo e lutas sociais. Trata-se de uma pedagogia do esquecimento, avessa ao pensamento crítico e hostil à pluralidade de interpretações sobre o passado. É preciso recordar que a ditadura militar, a partir de 1964, havia suprimido o ensino de história, retomado somente na década de 1980.
A redução da carga horária dos conteúdos de história e sua crescente dissolução como disciplina específica, o cerceamento pedagógico, a substituição de professores por plataformas digitais e o avanço das escolas cívico-militares são medidas que fragilizam o papel formador da escola e de seus professores e tornam o ensino refém de interesses políticos autoritários.
De fato, o golpe de 1964 significou uma reversão dos projetos de democratização do período anterior, em que setores distintos da sociedade brasileira debatiam propostas de expansão da universidade.
Em um contexto de Guerra Fria, o regime submeteu o ensino à lógica da segurança nacional, empenhando esforços para planejar a educação no Brasil desde o seu início. Tal política se materializou por meio de diversos decretos (nº 53/66, 252/67, 5.540/68, 464/69), articulados a partir dos chamados “acordos MEC-USAID” que, após 1964, passaram a privilegiar o planejamento do ensino superior e a reestruturação administrativa das universidades segundo parâmetros de produtividade e racionalização de recursos.
Em 1969, após a implementação do AI-5, a ditadura impôs o famigerado Decreto-Lei nº 477/69, que “definia infrações disciplinares praticadas por professores, alunos, funcionários ou empregados de estabelecimentos de ensino públicos ou particulares”. Daí porque a historiadora Raquel Glezer, em 1982, afirmou que as “disciplinas de humanas” se tornaram alvo da política autoritária e conservadora “desde as reformas educacionais de 1960 e 1970 (…)” (RBH, 1982, 2/3, p. 118).
A disciplina de “Estudos sociais” como disciplina obrigatória no ensino básico e superior no Brasil, foi implantada a partir de 1967. Com a Lei nº 5.692 de 1971 foi definida como uma área de estudo e passou a substituir as disciplinas de história e geografia. A disciplina foi introduzida com o objetivo de supostamente desenvolver a “interdisciplinaridade” que integraria conteúdos de diversas áreas para o desenvolvimento de uma visão mais abrangente de sociedade.
Na verdade, visava também suprimir ou esvaziar os cursos superiores de história e geografia que se consolidaram e sustentar as chamadas licenciaturas curtas, formação em massa e sem as qualificações profissionais necessárias, de professores para a rede escolar. Mais do que isso, tratava-se de um projeto mais profundo para atacar as áreas de Humanidades.
4.
Nesse mesmo impulso também se criavam as disciplinas obrigatórias de Educação Moral e Cívica e OSPB (organização social e política do Brasil). Tratava-se de um projeto muito mais abrangente, não só de destruição da área de história e outras humanidades, mas da construção de um arcabouço completo de doutrinação em massa da juventude nos valores cultuados pela Ditadura militar iniciada em 1964. Os atuais filhotes da ditadura parecem querer de alguma forma ressuscitar as grandes linhas dessa nefasta experiência.
Ao se atacar hoje o ensino de história e o conjunto dessa área do conhecimento, retira-se do estudante e da sociedade em geral a possibilidade de compreender as raízes das desigualdades, das lutas sociais, das conquistas democráticas. Abala-se o vínculo entre memória e cidadania.
Vai-se além de outra abordagem negativa que vê a história como área supostamente dedicada à vulgarização de conhecimentos do passado e dedicada simplesmente à diversão e à curiosidade. Aqui a história deixa de ser ferramenta de reflexão para se tornar campo de disputa ideológica, onde prevalecem o apagamento e a distorção.
Esse cenário é agravado por ações de grupos extremistas de direita que vêm promovendo invasões a instituições de ensino superior, como ocorreu recentemente nos cursos de história da USP e da Unicamp, e pela proliferação de iniciativas de desinformação histórica, como as difundidas entre outras pela plataforma Brasil Paralelo desde 2019 – objeto de denúncia da Associação Nacional de História (Anpuh) junto ao Ministério da Educação.
A Anpuh, entidade representativa dos interesses dos professores de história e historiadores do Brasil, tem denunciado publicamente essa escalada de perseguição aos profissionais da área, em especial no estado de São Paulo. Professores estão sendo demitidos, monitorados ou censurados pelo conteúdo de suas aulas. Mais do que uma disputa por espaço no currículo, o que está em jogo é o papel da história na formação da consciência crítica e na consolidação de uma sociedade democrática.
A defesa da história vai além da sala de aula. Ela envolve a valorização da pesquisa, dos arquivos, dos museus, do patrimônio imaterial. É a defesa da memória coletiva de um povo. Um país que nega sua história, que não conhece seu passado, se torna presa fácil do obscurantismo, do negacionismo, da manipulação e arrisca-se a perder sua soberania nacional.
É por isso que no próximo dia 20 de agosto, às 14h30, será realizada uma audiência pública na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp) em defesa do ensino de história e da liberdade de cátedra. Mais do que um ato simbólico, trata-se de um chamado à sociedade civil, aos educadores e às instituições democráticas: é hora de reagir.
Porque quem conhece o passado não aceita qualquer futuro.
*Francivaldo Nunes é professor do Departamento de História da Universidade Federal do Pará e presidente da Anpuh-Brasil.
*Paulo de Mello é professor de história na Universidade Estadual de Ponta Grossa e vice-presidente da Anpuh-Brasil.
*Marcos Leitão de Almeida é professor do Departamento de História da Universidade de São Paulo e secretário-geral da Anpuh-Brasil.
*Everaldo de Oliveira Andrade é professor do Departamento de História da Universidade de São Paulo e presidente da Anpuh-SP.
Versão ampliada de artigo publicado originalmente no jornal Folha de S. Paulo.
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