O processo de partidarização

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Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA*

Partidarização refere-se ao ato de tornar-se partidário de algo, sem necessariamente tornar-se membro de um partido

Um processo eleitoral é uma espécie de laboratório para testagem, na realidade, das hipóteses elaboradas por cientistas sociais de todas as áreas de conhecimento humano: politicólogos, sociólogos e economistas, entre outros. No estudo do caso brasileiro, destacou-se muito a polarização, como ambos os candidatos do segundo turno (ex-presidentes) fossem extremistas de polos ideológicos opostos – esquerda e direita – e a melhor escolha fosse um candidato da “terceira-via” de centro.

Essa aritmética política foi comprovada ser falsa. Por exemplo, o Ciro Gomes, ao atacar com ênfase o Lula com a finalidade de angariar votos direitistas, só favoreceu o “voto útil” no capital-miliciano antidemocrático em vez de ser na Frente Ampla democrática.

O necessário à sociedade brasileira é a politização para o bem, isto é, a ação ou o efeito de politizar em um processo de tornar (alguém ou um grupo) capaz de reconhecer a importância do pensamento ou da ação política ser conduzida de maneira democrática.

Miguel Lago, renomado cientista político de carreira internacional, em artigo na Folha de São Paulo (31/10/22), discorda da hipótese de a força eleitoral do candidato da extrema direita ter sido devido ele representar o ideário conservador de parte da sociedade brasileira, preocupada com a preservação dos valores cristãos e da família. “Bolsonaro não é conservador, muito menos representa os valores cristãos. O conservadorismo político se construiu integralmente em oposição à ruptura e à revolução. (…) Bolsonaro é um revolucionário de extrema direita. Nada em seu discurso se relaciona à tradição conservadora brasileira. Ao contrário, ele articula forças emergentes e insurgentes presentes em nossa sociedade: a religiosidade neopentecostal, a estética do agro e a sociabilidade de perfil”.

A identidade neopentecostal condiciona todas as decisões, desde a forma de se vestir, se comportar, consumir e votar. A estética do agrobusiness seria cópia neocolonizada do atraso cultural da zona rural norte-americana com seus rodeios, country music, agro é pop, agro é tech… Quanto à sociabilidade do perfil, o conhecimento devido a estudos e leitura foi substituído pela opinião ignorante, quando os incultos se encontram em bolhas ou câmaras de eco para aplacar o ressentimento e elevar a autoestima narcísica.

Com a disponibilidade da rede social, os ignorantes, saudosos da ditadura militar, encontraram seus pares! Perderam a vergonha de se manifestar em público.

Um comentário do citado artigo registra bem um ponto crucial do discurso expresso em redes de ódio: parte de uma classe média urbana se ressente de não ter estudado em Universidades públicas, embora tenha pagado para se diplomar em uma UniEsquina qualquer. Ressente-se por não ter obtido mobilidade social e daí enxerga no intelectual esquerdista o sujeito “moral e culturalmente superior” a ser destruído. Daí seu terraplanismo. Sente ódio dos cultos. Adota o negacionismo científico.

Será possível comprovar essas hipóteses com evidência empírica como exige o método científico? Para a medição de opiniões, em 26-27/10/2022, pesquisa do Datafolha apresentou aos entrevistados dez atributos e pediu para informar qual candidato mais se destaca em cada um deles. De maneira geral, o ex-presidente Lula (PT) tem uma imagem mais positiva em lugar do atual presidente (PL).

Na questão “qual candidato mais defende a democracia”, a situação é bem de acordo com os percentuais de votação no primeiro turno, com Lula com 48% das menções e Jair, com 44%. Na situação oposta, “qual candidato mais ataca a democracia”, o capitão reformado, um inventariante explorador do espólio eleitoral representado pelos órfãos da ditadura militar, se distancia de Lula, respectivamente, têm 50% e 39% das menções.

Na tabela acima, há notável correspondência entre os votos regionais e as opiniões sobre quem mais defende e mais ataca a democracia. Na escolha eleitoral foi 70% a 30% a favor do Lula e na escolha do candidato mais democrata, a sabedoria dos nordestinos detectou: 64% a 30% pró Lula. Em contraponto, a cegueira ideológica predomina no Sul, única região onde a maioria (53%) tem a opinião do capitão golpista defender mais a democracia e 39% dizem ele a atacar mais face 46% apontarem o adversário democrata.

Partidarização refere-se ao ato de tornar-se partidário de algo, sem necessariamente tornar-se membro de um partido. O processo eleitoral levou a maior partidarização, pois a preferência pelo Partido dos Trabalhadores era antes manifestada por 23% dos eleitores e não aparecia nenhuma simpatia pelo Partido Liberal, em pesquisa Datafolha, realizada em meados de setembro de 2021.

Na citada pesquisa recente, o quadro mudou bastante. Uma parcela de 35% dos brasileiros torna-se simpatizante do PT, incluindo quem o menciona nominalmente (30%) e quem cita “o partido de Lula” (5%), sem mencionar a sigla. Entre eleitores com ensino fundamental, 42% dizem ter simpatia pelo PT ou pelo “partido do Lula”, caindo para 33% com ensino médio e 29% com ensino superior. Esse índice fica em 44% entre quem tem renda familiar de até 2 salários-mínimos e cai progressivamente para 29% [2-5 SM], 21% [5-10 SM] e 22% [acima de 10 SM]. Estuda, enriquece e emburrece?!

A importância de o PT ter alcance nacional reflete na relação de amor (simpatia de 50% na região Nordeste face a 24% no Sul e 25% no Centro-Oeste) e ódio (rejeição de 26% no Nordeste, 50% no Sul e 48% no Centro-Oeste). No Sudeste e Norte, são menores as polarizações em termos de sentimentos antipartidários.

Abrigo partidário do presidente passageiro para disputar a reeleição, desde novembro de 2021, o PL (“Centrão”), nominalmente, tem a simpatia de 14% dos eleitores, e 7% dizem ter simpatia pelo “partido do Jair” (embora), mas não citam sua sigla ou número. No total, 20% dos eleitores hoje são simpáticos ao PL. Nas faixas de renda familiar acima de 10 salários, esse índice alcança 32% – e atinge a 39% entre empresários!

Afinal, quem se autodefine como “empresário”? Caminhoneiros? Fazendeiros? Gestores de dízimos, recolhidos dos fiéis crentes, em templos?

Ao contrário de todos os demais eleitores, classificados por ocupação principal, 29% dos empresários acham que Lula defende mais a democracia e 66% acham o capitão explorador do nicho de mercado eleitoral constituído pelos “órfãos da ditadura” o mais democrata! Consistentemente com o antipetismo, 29% dizem que o capitão reformado ataca mais a democracia, enquanto 61% afirmam que Lula a ataca mais!

Entretanto, o peso dos empresários no Perfil da Amostra é de apenas 3%, ou seja, considerando em relação ao total de 156 milhões de eleitores, seriam apenas 4,7 milhões. Esta é a beleza de um regime político democrático, onde todos os cidadãos participam igualmente – diretamente ou através de representantes eleitos – na criação e execução de leis, exercendo a governança através do sufrágio universal.

Enquanto a renda familiar mensal de 48% dos eleitores for abaixo de 2 salários-mínimos, pobres “darão as cartas”. Atuando em conjunto, obtêm a maioria dos votos em conjunto com seus aliados simpatizantes do Partido dos Trabalhadores de outras faixas de renda.

Os empresários são apenas 1% no Nordeste e 2% no Norte, contra 7% no Centro-Oeste, 4% no Sul e também 4% no Sudeste. Nas regiões metropolitanas são 4% e no interior 3%. Existem 5% de brancos com autoimagem positiva de empreendedor, enquanto 3% dos pardos e 2% dos negros se apresentam com tal ocupação.

Ódio de classe e/ou desigualdade social/regional explicam o resultado eleitoral? Afinal, apenas 16% dos empresários financiadores de formadores de opinião antipetista manifestam simpatia pelo Partido dos Trabalhadores e 66% o rejeitam: são números inteiramente “fora-da-curva”, muito diferentes das outras ocupações. Optam (39%) por preferir o “PL ou partido do Bolsonaro”. Coerentemente, 17% deles o rejeitam pelo fato deste ser um “partido de aluguel”. Não deu PT (“Perda Total”) para os fanáticos da extrema-direita? Infelizmente, nem tanto, ainda não…

*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Rede de apoio e enriquecimento. Disponível em https://fernandonogueiracosta.wordpress.com/2022/09/20/rede-de-apoio-e-enriquecimento-baixe-o-livro/

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