Por JANETHE FONTES*
A compreensão do “pobre de direita” como produto de uma cultura autoritária e hierárquica nos desafia a repensar as bases de nossa sociedade, buscando construir um futuro onde a solidariedade e a justiça social prevaleçam sobre a exclusão e a dominação
“Quando o homem decidir reformar a sua consciência, o mundo tomará outro roteiro” (Carolina Maria de Jesus).
Analisar o contexto histórico e as subjetividades brasileiras que legitimam formas de dominação simbólica, que forjaram essa figura emblemática denominada de “pobre de direita”, não é uma missão nada fácil. Assim, as reflexões contidas neste ensaio procuram ancorar-se em autores como Florestan Fernandes, Pierre Bourdieu, Paulo Freire, Milton Santos e, sobretudo, Jessé Souza, aliando esse último pensador a trechos do icônico livro Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus e à letra da música Construção, de Chico Buarque, para entendimento da importância da crítica e da resistência cultural.
Essas reflexões passam, ainda, pela necessidade de compreender que o autoritarismo brasileiro não se restringe apenas ao domínio institucional. Ele estrutura, desde de tempos mais remotos, práticas cotidianas, hábitos, valores culturais e formas de percepção de mundo.
Ou seja, trata-se de um fenômeno que atravessa séculos, amparado por um ethos patrimonialista e por uma cultura de naturalização da desigualdade. Sérgio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro e Roberto DaMatta identificam na cordialidade, no patrimonialismo e no personalismo, traços permanentes de um Brasil que não rompeu totalmente com suas raízes coloniais.
É desse intricado contexto histórico que emerge a figura do “pobre de direita”, um sujeito invariavelmente subalternizado que, de forma paradoxal, adere ao discurso das elites, algo que desafia interpretações simples e reducionistas. Sendo assim, para entender esse sujeito, se faz necessária uma análise mais ampliada da cultura política brasileira, para a qual contribuíram, de forma seminal, Holanda, Faoro e DaMatta.
O conceito de “homem cordial”, estabelecido por Holanda (1995) em Raízes do Brasil, não remete à gentileza, mas sim à personalização das relações de poder: “A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, a ternura, são manifestações espontâneas do homem cordial. Mas essa cordialidade não significa, como parece à primeira vista, boas maneiras ou civilidade. (…) A contribuição brasileira à civilização será, talvez, a do homem cordial” (Holanda, 1995, p.146).
A cordialidade brasileira, definida por Sérgio Buarque de Holanda, mascara a violência simbólica e física exercida pelo Estado e pelas elites, criando uma sociedade onde o público se confunde com o privado e onde os vínculos pessoais excedem os princípios impessoais da democracia moderna. Isso ajuda a explicar por que, mesmo em contextos democráticos, práticas autoritárias persistem com legitimidade popular.
Faoro (2001), em Os Donos do Poder, aprofunda essa análise, ao investigar o patrimonialismo herdado da colonização portuguesa. Para ele, a burocracia estatal brasileira se estrutura como um instrumento de manutenção dos privilégios de uma elite que monopoliza o Estado em benefício próprio. O autoritarismo, portanto, não é um desvio, mas um traço constitutivo da formação social brasileira.
DaMatta (1997), com sua análise antropológica da cultura brasileira em Carnavais, Malandros e Heróis, mostra como o brasileiro transita entre dois mundos: o da regra e o da exceção. “O jeitinho é, pois, a maneira que o brasileiro encontrou para conciliar a norma impessoal com as exigências da pessoa concreta” (DaMatta, 1997, p. 197). Com DaMatta, as hierarquias são naturalizadas e a ideia de igualdade é relativizada. Isso contribui para a formação de uma mentalidade que, mesmo entre os mais pobres, aceita a autoridade como algo inevitável e, muitas vezes, deseja exercê-la contra aqueles que julga “abaixo” na escala social.
Já Fernandes (2008) denuncia a permanência do racismo sob nova roupagem, na ordem capitalista brasileira. Freire (2019) assinala para o processo de desumanização como base do autoritarismo educacional e Santos (2006) ratifica a desigualdade territorial como forma de segregação urbana esquematizada.
Jessé Souza amplia ainda mais todo esse debate, sobretudo em seu livro: A elite do atraso. Segundo ele, a adesão de parcelas pobres da população ao pensamento de direita é resultado de uma identidade construída sob bases de humilhação e exclusão. Para isso, usa da lógica da dominação simbólica de Pierre Bourdieu (1998), a qual torna possível que os sobrepujados contribuam com a própria dominação.
Assim, o “pobre de direita” internaliza o discurso da meritocracia, do empreendedorismo individual e da criminalização da pobreza, mesmo quando sua realidade desmente tais narrativas. Essa figura é, em última análise, um produto da cultura autoritária brasileira, marcada pela negação da solidariedade de classe e pela valorização do individualismo. “Trata-se de fazer com que os explorados acreditem que são culpados pela própria exploração e, ao mesmo tempo, se identifiquem com o explorador”(Souza, 2017, p. 183).
Contudo, o “pobre de direita” não é apenas um arquétipo do alheamento ideológico, ele é, sobretudo, resultado da internalização dos valores autoritários e hierárquicos de uma sociedade que nunca universalizou plenamente os direitos civis, políticos e sociais.
É o sujeito que, por identificação simbólica com o poder e pela promessa de ascensão individual, aceita — e até defende contundentemente — políticas excludentes e repressivas. É o trabalhador que, ao invés de se reconhecer como parte de uma classe explorada e oprimida, se enxerga como um “empreendedor de si mesmo” ou como alguém que precisa “se impor” para “vencer”.
A letra da música Construção, de autoria de Chico Buarque, descreve a desumanização do trabalhador sob o capitalismo autoritário e nos revela a apatia do trabalhador como peça descartável da máquina urbana, na qual o “pobre de direita” ignora que é, também, vítima.
Sentou pra descansar como se fosse um príncipe
Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo
Bebeu e soluçou como se fosse máquina
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo
E tropeçou no céu como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse sábado
E se acabou no chão feito um pacote tímido
Agonizou no meio do passeio náufrago
Morreu na contramão atrapalhando o público…
Essa alienação, longe de ser acidental, estrutura as relações sociais e molda subjetividades diversas. O “pobre de direita” é uma das expressões mais concretas dessa herança: uma figura que encarna a contradição de um país onde a dominação se reproduz sob o disfarce da ordem e do progresso.
O autoritarismo brasileiro é fruto de um processo histórico-cultural que combina dominação simbólica, exclusão material e apagamento de saberes populares. A figura do pobre de direita é expressão de um sujeito colonizado, que reflete o discurso da elite por necessidade de pertencimento e valorização. Romper com esse ciclo exige uma pedagogia da libertação, uma política de memória e a valorização da arte como instrumento de desnaturalização da violência. A música e a literatura tornam-se, assim, espaços vitais de resistência.
Em seu livro Quarto de despejo, Carolina Maria de Jesus expõe a favela como território da exclusão extrema. Suas anotações denunciam a fome, a precariedade e a negligência do Estado. A favela como o quarto de despejo de uma cidade é metáfora que sintetiza a marginalização da população pobre e negra. Sua escrita é resistência e memória.
Em conclusão, é necessário ressaltar que não é possível abordar, em tão poucas linhas, a importância da análise crítica de Jessé de Souza sobre o Brasil atual e o chamado “pobre direita”. Porém, para finalizar, deixo aqui outra frase de Carolina Maria de Jesus: “Eu queria ser rica. Só para andar bonita, comer bem e ter cama macia”.
*Janethe Fontes é professora de história e sociologia e escritora. Autora, entre outros livros, de Sentimento fatal (Dracaena).
Referências
BUARQUE, Chico. Construção. Rio de Janeiro: Marola Edições Musicais, 1970. Disponível em: https://www.letras.mus.br/chico-buarque/45124/.
DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. São Paulo: Globo, 2001.
FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo: Ática, 2008.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2019.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 2014.
SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Hucitec, 2006.
SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro: Leya, 2017.
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