O racismo não é estrutural

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Por MÁRIO MAESTRI*

A tese do racismo estrutural dissolve o nexo central da luta contra a exploração, entre o mundo do capital e o mundo do trabalho

Há conceitos que se apresentam como sínteses de propostas emancipadoras, apesar de serem sutis instrumentos de conformação das consciências. São abraçados, consumidos, reproduzidos, utilizados em múltiplos âmbitos da comunicação social. E assim  como surgiram, acabam tornando-se simples coadjuvantes, ao serem superados por novos protagonistas de mesma qualidade, que passam a habitar os andares superiores da manipulação ideológica.  Estão nesses casos, entre tantos outros, os conceitos de “alter-mundismo”, “empoderamento”, “empreendedorismo”, “revolução ecológica”, “economia auto-sustentada”, “sociedade participativa”, “organizações não-governamentais”.  (CARBONI & MAESTRI, 2005.)

“Racismo estrutural” ocupa hoje posição de destaque no carro de som dessas conceituações pretensamente auto-explicativas e emancipadoras, que têm como denominador comum a negação do capital e da grande propriedade como alicerce das formas modernas de exploração e de discriminação. Conceitos que negam e obscurecem a verdade elementar de que a luta contra a ordem capitalista, no aqui e no agora, tendo como  objetivo final sua expropriação e controle por parte da sociedade, é a única possibilidade de emancipação social, imprescindível para interromper o deslizar da humanidade em direção à barbárie e, eventualmente, em direção à sua extinção.

Em 2019, Sílvio Almeida publicou O racismo estrutural, ampla defesa das propostas identitárias e da afirmação que intitula o livro.  “A tese central é que o racismo é sempre estrutural, ou seja,  ele é um elemento que integra a organização econômica e política da sociedade.” “O racismo fornece o sentido, a lógica e a tecnologia para a reprodução das fontes de desigualdade e violência que moldam a vida social contemporânea.” (SILVIO: 2019, 15). Essa tese e as que lhe são correlatas constituem propostas que, sob aparente radicalismo, dissolvem, como assinalado, o nexo central da luta contra a exploração, contribuindo para sua consolidação, ao proporem, no frigir dos ovos, uma luta de raças, entre brancos e negros, no lugar de luta de classes, entre o mundo do capital e o mundo do trabalho. Há “um mundo branco e um mundo negro”. A “relação entre negros e brancos” é violenta e os negros são explorados pelos brancos, “há quinhentos anos”. (CARNEIRO: 2000, 24-9.) Desnecessário dizer que o grande capital agradece comovido a tais propostas.

Racismo é fenômeno geral

O racismo é fenômeno disseminado em diversas sociedades contemporâneas, com terríveis sequelas individuais e sociais. No caso do Brasil, trata-se sobretudo de racismo antinegro, como, no caso do Chile, de racismo anti-mapuche. (BENGOA, 1996.)  Realidade que não determina, nos dois casos citados —como em tantos outros—, que o racismo assuma um caráter “estrutural”, na acepção plena do termo. Sobre o sentido da categoria “estrutural” não há polêmica. Ela se refere a um traço, a um elemento ou a uma determinação que pertença à essência constituinte e permanente de um fenômeno. Que não o integre, assim sendo, como elemento superficial ou episódico.

Portanto, restringindo o período de análise, é necessário saber se o “racismo” fez e faz parte dos recursos estruturais nos quais o capitalismo assentou e assenta sua gênese, desenvolvimento e consolidação. Para tal, nos serviremos do  método marxista de interpretação, por exigência do próprio tema em discussão. O marxismo não é uma construção arbitrária. Ele nasceu e se desenvolveu como método de interpretação social, para orientar os oprimidos na luta pela emancipação da exploração capitalista e das contradições sociais, nacionais, de sexo, de raça, entre o mundo urbano e o rural, etc.

No célebre prefácio à Contribuição à critica da economia política, de 1859, Karl Marx definiu sumariamente os mecanismos do movimento da história. (MARX: 2008, 45-50.) A partir do nível de desenvolvimento das forças produtivas materiais, isto é, dos meios de produção (matérias-primas, ferramentas, etc.) e da força de trabalho, se estabelecem relações sociais de produção, tendencialmente necessárias, que opõem, em forma contraditória, os detentores-proprietários-controladores dos meios de produção aos produtores diretos, ou seja, aos trabalhadores.

É a contradição entre as classes em oposição, lembra Marx, que faz avançar a história, quando ela avança, é lógico. “Homem livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, mestre de corporação e companheiro, numa palavra, opressores e oprimidos, em constante oposição, têm vivido numa guerra ininterrupta, ora franca, ora disfarçada; uma guerra que terminou sempre, ou por uma transformação revolucionária da sociedade inteira, ou pela destruição das duas classes em luta.” (MARX & ENGELS, 2001.)

Estrutura ou Modo de Produção

Forças produtivas materiais e relações sociais de produção constituem a estrutura de uma sociedade. Ou seja, nosso objeto de discussão, no geral e no particular. E é a estrutura-modo de produção que determina o processo de produção, distribuição, circulação e consumo dos bens produzidos pelos produtores diretos, ensejando, nesse processo, formações superestruturais que lhe são tendenciosamente necessárias: formas de propriedade; instituições jurídicas e políticas, às quais “correspondem formas sociais determinadas de consciência” — ideologia, cultura, religião, arte, etc. É nessa última esfera que se materializam e habitam as concepções racistas de mundo, sejam elas conscientes, semi-conscientes e inconscientes.

Uma formação social, ou seja, a sociedade (modo de produção + instituições + formas de consciência social), no seu processo de desenvolvimento histórico, é determinada-coerida tendencialmente por um modo de produção dominante, que subordina os secundários, quando existem. (GORENDER: 2010, 52-64.) Karl Marx lembrava que, em “uma certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes”, abrindo-se “então, uma época de revolução social”, que dá  espaço ao novo modo de produção. (MARX: 2008, 45-50.) Caso a revolução social não vá pro brejo, e a sociedade com ela, é claro.

É a forma de apropriação de parte do produto do trabalho do produtor direto — aldeão, escravo, servo, encomendado, camponês, proletário, etc. — pelos controladores-detentores-proprietários dos meios de produção que caracteriza o modo de produção. É, de certo modo, sua alma. No modo de produção escravista, o escravizador entrega de volta ao cativo pequena parte do que ele produziu, sob a forma de alimentação, moradia, etc.  O capitalista apropria-se da “mais-valia”, ou seja, de parte do valor dos bens produzidos pelo assalariado, ao lhe pagar um salário. (MANDEL: 1969,  123 et seq.)

O Chicote e o Desemprego

Sobretudo a violência física mantinha o cativo submetido à produção escravista, já que ele, livre, podia estabelecer-se de algum modo como produtor independente. Os escravismos clássico e colonial não funcionariam sem o chicote do feitor e as milícias escravistas. No capitalismo, a coerção física é recurso limite da coesão social, já que, para sobreviver, o trabalhador não possui outra alternativa do que vender sua força de trabalho ao capitalista. No capitalismo, é o desemprego que funciona como chicote e tronco. Realidade magistralmente sintetizada no que se refere ao campo pela formulação de José de Sousa Martins de que: “Num regime de terras livres, o trabalho tinha que ser cativo; num regime de trabalho livre, a terra tinha que ser cativa.” (MARTINS, 1998.)

Em forma geral, a produção capitalista persegue extração crescente de mais-valia aos trabalhadores, através de redução de salários e de jornadas de trabalho de intensidade e de duração crescentes. Os trabalhadores esforçam-se para resistir contra tal tendência, no contexto geral da ação de Estado que interpreta, sempre, as classes dominantes, ainda que com graus desiguais de violência explícita e implícita. Para aumentar a taxa de mais-valia, o capitalista lança mão igualmente de variados recursos extraordinários, empregando trabalhadores mais flexíveis à super-exploração:  crianças, mulheres, indocumentados; estrangeiros; trabalhadores de regiões atrasadas do país, discriminados por racismo, pela nacionalidade, pela religião, etc. (MARX: 2010, 168-229.)

Ernest Mandel se refere ao recurso a trabalhadores estrangeiros para super-explorá-los e baixar os salários do conjunto do operariado. “Todavia, é notório que grande proporção dos trabalhadores imigrantes é de mão-de-obra não qualificada, confinada aos trabalhos mais sujos, mais duros e mais mal pagos nas economias metropolitanas.  Assim, é  deliberadamente criada pelo capital uma nova estratificação nas fileiras do proletariado entre trabalhadores ´nativos´ e ´estrangeiros´. Isso fornece simultaneamente aos empregadores os meios de conservar baixos os salários do trabalho não qualificado, de travar o desenvolvimento da consciência de classe do proletariado  pelo estímulo dos particularismos  étnicos e regionais e de explorar esses antagonismos artificiais para propagar a xenofobia e o racismo na classe operária.” (MANDEL: 1985, 127.)

Os variados meios extraordinários de super-exploração do trabalho podem ser usados em forma ampla ou restrita, significativa ou moderada, intermitente, periódica ou permanente. Ou podem, até mesmo, não serem utilizados. O essencial  na  reprodução capitalista é a exploração da força de trabalho, sendo que não são essenciais suas características singulares. Devido a isso, mesmo importantes, as peculiaridades da força de trabalho não são elementos estruturais, necessários, ao processo de produção capitalista. São elementos conjunturais, mesmo quando se mantêm por longuíssimo tempo e assumem larga importância.

Aristocracia e Plebe

Países e ramos produtivos iniciaram e consolidaram sua produção capitalista explorando trabalhadores nacionais, ainda que pudessem mediar diferenças de língua, de hábitos, etc., entre a aristocracia do capital e a plebe proletária.  Nesses casos, o capital não se servia do racismo, na esfera da produção, como instrumento de super-exploração, mesmo quando se servia, eventualmente, do trabalho feminino e infantil. O início da industrialização da Região Colonial do Rio Grande do Sul deu-se essencialmente com a mão de obra excedente da economia camponesa de origem ítalo-alemã. (LAZZAROTTO, 1981; HERÉDIA, 1997.)

Em algumas atividades produtivas do capitalismo maduro, como na mineração, não se utilizou a mão de obra feminina e infantil, sobretudo devido à luta dos mineiros. Regiões da Europa, principalmente após a II Guerra Mundial, incorporaram estrangeiros nas mesmas condições dos trabalhadores nacionais, quanto ao salário, às condições de trabalho e, em alguns casos, aos direitos sociais, quando a mão de obra local era insuficiente para suprir a expansão produtiva. O fato de poder usar menos ou mais e de simplesmente não precisar se servir, registra o caráter subordinado, e não estrutural, dos recursos extraordinários de super-exploração do trabalho, entre elas, o racismo, como proposto. Entretanto, esses recursos extraordinários podem ter grande importância, por longos períodos, para a exploração capitalista.

“Ao mudar a base econômica, revoluciona-se, mais ou menos rapidamente, toda a imensa superestrutura erigida sobre ela” — lembrava Marx. (MARX: 2008, 45-50.) Nas transições inter-modais, do escravismo clássico ao feudalismo, do feudalismo ao capitalismo, etc., as formas de propriedade; as instituições jurídicas, administrativas; os complexos ideológicos, culturais, religiosos, etc., próprios às ordens econômico-sociais superadas, dão lugar a novas determinações superestruturais, correspondentes ao novo modo de produção dominante.

A nova superestrutura, nas suas mais diversas expressões, alimenta-se habitualmente com o material do complexo superestrutural ultrapassado, metamorfoseado segundo suas necessidades. Entretanto, quando se trata de realidades que se chocam frontalmente com a nova ordem, elas são superadas, mantendo-se quando muito resquícios culturais fantasmagóricos dos mesmos. Um exemplo extremo: em modos primitivos de produção, a antropofagia era sustentada por consolidadas elaborações cultural-ideológicas. Essas concepções e tradições se mantiveram, até hoje, em forma simbólica, na comunhão da Eucaristia. (MAESTRI, 2013.)

Racismo e Racismo

Não foi o “Iluminismo”, mas a Grécia escravista, que criou a dicotomia “civilizado e bárbaro”, que se desdobrou em “civilizado e selvagem”, em “civilizado e primitivo”, etc.  (ALMEIDA: 2019, 19.)  Na Antiguidade, com a consolidação do modo de produção escravista, a exploração sistemática do trabalhador escravizado pelo escravizador produziu as instituições e propostas  de diferença de natureza entre o homem livre e escravo, que normalizavam, justificavam e consolidavam aquela forma de relação social de produção. Platão e, sobretudo, Aristóteles racionalizaram e refinaram as visões práticas dos escravistas de suas épocas, criando leituras de mundo essencialistas que manteriam seu caráter performativo, adaptado aos novos tempos, até meados do século 19.  (ARISTÓTELES, 1957; SCHIROLLO: 1979, 184.)

No contexto da construção de representações ideológicas condizentes com a sociedade escravista, criou-se a narrativa sobre uma natureza inferior do escravizado que se expressaria em sua falta de civilização, e, desde sempre, em suas características físicas, mesmo quando elas praticamente inexistiam. Para o teólogo e filósofo católico italiano Aegidius Romanus (c.1247-1316), a natureza do homem semibestial, destinado por nascimento à escravidão, expressava-se na sua incapacidade de distinguir-se plenamente dos animais “pela alimentação, pelo vestuário, pela fala e pelos meios de defesa”.  O fato que não possuísse leis e governo era também prova de sua limitação essencial. (SAUNDERS: 1994, 75 e 67).

O escravismo moderno apenas difundiu e generalizou, mas não criou, a desqualificação racial do negro-africano. Não há sentido propô-la como produto da construção do “projeto liberal-iluminista”. (ALMEIDA: 2019, 20.) Em 8 de agosto de 1444, às portas da vila de Lagos, no sul de Portugal, o cronista real Gomes Eanes de Zurara descreveu a primeira grande repartição de homens e mulheres capturados na costa atlântica da África para servirem como cativos.  Nessa época, em Portugal, a escravidão de mouros era hegemônica e não havia relação entre a cor da pele e o cativeiro.  “[…] era uma maravilhosa [extraordinária] cousa de ver […] havia alguns de razoada brancura, fremosos [formosos] e apostos; outros menos brancos, que queriam semelhar pardos; outros tão negros como etíopes [tiópios], tão desafeiçoados assim nas caras como nos corpos, que quase parecia, aos homens que os esguardavam, que viam as imagens do hemisfério de baixo.” (destacamos) (ZURARA: 1973, 122.)  A cor negra se transformaria em uma ótima justificativa da escravidão, servindo como registro de inferioridade. É nesse processo que surge o racismo anti-negro.

Na sua aparente permanência, e mesmo no contexto de sua resiliência à transformação, própria às religiões, o catolicismo constituiu-se como credo dominante na escravidão romana, no feudalismo, no capitalismo. Ou seja, em três modos de produção que ensejaram formações sociais estruturalmente diversas. O catolicismo garantiu continuidade aparente, enquanto se transformava substancialmente, ao adaptar-se sob a pressão das novas organizações sócio-econômicas dominantes. Apoiou resolutamente as formas de exploração escravista, feudal, capitalista. Sem essa plasticidade, ele não teria se mantido como religião dominante do mundo Ocidental, mesmo esfacelado em diversas vertentes. Podemos assistir ao mesmo processo, no relativo ao Direito, à Literatura, às Artes Plásticas, etc. O racismo anti-negro conheceu um processo semelhante.

Quem Explora o Povo Negro no Brasil

A escravidão colonial ensejou e consolidou o racismo anti-negro, momento singular na história mais do que milenar de exploração escravista. Nesse longo período, não houve uma etnia que tenha sido monopolizada ou semi-monopolizada como sementeira de cativos. Entretanto, o racismo não foi o mecanismo central de exploração do trabalho, mesmo na escravidão colonial,  já que a coesão social, como proposto, era imposta pela violência exercida sobre quem possuía o status jurídico de escravo. Tanto que a existência de escravizadores afro-descendentes e africanos era fenômeno relativamente habitual no escravismo brasileiro. (LUNA, 1981.) Com a Abolição, em 1888, ao contrário, o racismo passou a ser elemento importante na manutenção da disciplina social e para a super-exploração do trabalho, já que todos os trabalhadores passaram a serem homens livres, capazes de negociar a venda de sua força de trabalho, sob a ação permanente de constrições duras e variadas, entre elas, o racismo.

É fundamental à luta social a compreensão da função do racismo no contexto do capitalismo, em geral, e da sociedade brasileira contemporânea, em particular. Por falta de espaço, não é aqui o momento para discutirmos, em detalhes, qual a função e quem sofre do racismo anti-negro no Brasil. Entretanto, é indiscutível que são golpeados com destaque pelo racismo sobretudo mulheres e homens com uma forte afro-ascendência, principalmente quando pertencem às classes populares. Não tivemos no Brasil a discriminação estadunidense baseada no princípio da “gota de sangue”. É também certo  que são indefensáveis as sandices sobre a exploração da população negra pela população branca no Brasil, teoria igualmente aplaudida de pé pelo grande capital e seus representantes. (MAESTRI: 2021, 19-27.) Vimos que o mecanismo estrutural da reprodução capitalista é a exploração da força de trabalho em geral, servindo o racismo para a produção eventual de uma exploração marginal, ainda que, em muitos casos, significativa.

O capital, sabemos, não tem cor, mesmo que, até hoje, em boa parte, seus detentores tenham sido mulheres e homens brancos e, atualmente, cada vez mais, amarelos, com o inegável deslocamento do coração da economia mundial para o Oriente — Japão, China, Índia, etc. E, na sua corrida frenética, o capital explorou e segue explorando multidões de trabalhadores brancos e, agora, como apenas proposto, cada vez mais, trabalhadores orientais. A população da China e da Índia somadas superam a população da África e das três Américas. E na China, pátria da maior classe trabalhadora mundial, há uma forte homogeneidade étnica, com mais de 90% de chineses de etnia  han. A exploração étnica, no imenso país, subsiste como fenômeno real, mas muito secundário. (DINUCCI, 1975, 27. )

As Origens da Desigualdade Racial

No Brasil, com uma população negra possivelmente em torno de 10%, superior à proposta pelo Censo de 2010, há, em números absolutos, mais trabalhadores brancos explorados pelo capital que trabalhadores negros, já que a população tida como branca superaria os 47% dos habitantes do país, naquele ano. Entretanto, as trabalhadoras e os trabalhadores negros são submetidos, relativamente, a uma maior exploração, ao comporem em forma desproporcionada as facções mais exploradas do mundo do trabalho. Essa situação nasce, certamente, de razões históricas, ancoradas na escravidão, reforçadas e perpetuadas pela ação deletéria do racismo utilizado, como vimos, como ferramenta marginal, mas significativo, para super-exploração capitalista.

          A escravidão é indiscutivelmente a origem determinante da situação atual das comunidades populares negras no Brasil. Um ano antes da Abolição, havia ainda 720 mil cativos e cativas. Os libertados, em 13 de maio de 1888, se juntaram às comunidades de libertos, de negros livres, etc., em geral também fortemente desprovidas de bens materiais e imateriais. Tratava-se de um grupo social em sua quase unanimidade analfabeto, com escasso domínio da língua dita culta, com poucas habilidades profissionais, com laços familiares extremamente frágeis. Uma comunidade fortemente carente de quase tudo e sob a pressão permanente dos preconceitos e práticas racistas. (CONRAD: 1975.) Os negros daquelas décadas e posteriores que alcançaram real progressão social tenderam a se confundir mesmo etnicamente com a comunidade dita branca.

A grosso modo, a comunidade negra se fundiu ao conjunto da classe trabalhadora, branca, parda, cabocla, etc., sofrendo suas vitórias e derrotas, tendo sempre como handicap negativo o racismo. A exploração geral foi exercida por classe detentora dos meios de produção (propriedade), em geral branca ou tida como tal, que tendeu a se reproduziu como classe dominante, através sobretudo da transmissão da propriedade, o alfa e o ômega da estrutura social de domínio e exploração social.

A comunidade negra  participou de todas as lutas operárias e populares no Brasil na pós-Abolição, nas quais se destacaram não raro lideranças negras, algumas vezes, como grandes protagonistas, como no caso da revolta dos marinheiros de 1910. As trabalhadoras e os trabalhadores negros são componentes estruturais e indissolúveis do mundo do trabalho do Brasil, transpassados por múltiplas diversidades — de sexo, de cor, de região, etc. Por isso, compartilham em forma indissolúvel as grandes reivindicações do conjunto da classe trabalhadora pelos direitos inarredáveis à moradia, à educação, à saúde, ao lazer, à segurança.

Racismo e Fragilidade

A integração sócio-econômica da comunidade negra no após-Abolição deu-se sob o peso de sua enorme fragilidade material e imaterial assinalada, acrescido ao racismo.  Houve —há— atividades produtivas em que a cor da pele teve, no geral, pouca incidência, quanto à contratação e salário, como a agricultura, a pastorícia, a construção civil, a indústria de transformação, etc. Sobretudo em atividades ditas não produtivas, subsistiu discriminação histórica que alijou fortemente a população negra, com destaque para o comércio e outros serviços de atendimento ao público.

Há algumas décadas, anúncios de emprego sobretudo para o comércio e atividades correlatas exigiam “boa aparência”, eufemismo para propor essencialmente que não se aceitavam negros. Ainda hoje, tal exigência pode pesar sobre uma contratação, assumindo uma gama maior de exclusões: candidatos gordos, muito magros, muito altos, muito baixos, muito feios, tatuados, etc. Ser bonito e bonita pode ser fator diferencial positivo quando desse tipo de contratação. Não raro, a seleção se dá em forma invisível ou pouco clara pelo Departamento de Pessoal ou pelo empregador.

O acesso ao serviço público por concurso ou alistamento tem sido espaço de inserção social tradicional para a comunidade negra, com destaque para as  forças policiais, o Exército, a Marinha, a Aeronáutica, etc. Apesar da forte componente negra nas forças armadas e policiais, são raros os oficiais superiores negros e negras. A rede de ensino público acolhe professores e professoras negros, sem barreiras quanto às promoções, que se efetuam sobretudo —ainda— por formação e antiguidade. O mesmo não ocorre nas escolas privadas, não apenas as destinadas às elites.

Ação Deletéria

Mesmo não sendo estrutural à ordem capitalista, na sociedade brasileira, o racismo exerce forte ação deletéria, quanto à inserção social, de níveis diversos, em importantes setores da comunidade negra. Não incluímos na presente análise sintética a população dita “parda”, pois sua soma à população “negra”, que tem sido feita com fins político-ideológicos, escamoteia a população que realmente sofre peso do racismo no Brasil. Tivemos grande número de generais pardos e os temos no presente. Como o celebrado Floriano Peixoto, na República Velha, ou o general H. Mourão, pra lá de caboclo.. O que não impede que este último tenha registrado seu pouco apreço às classes populares, ao afirmar a “indolência” do “índio” e a “malandragem” do “negro”.

O combate ao racismo brasileiro exige, em forma inarredável, programa específico e geral, que não há como discuti-lo aqui. Trata-se, porém, de questão que necessita abordagem ampla e restrita complexa e objetiva, devido às características mutifacetadas do país. Nessa pauta, por exemplo, tem sido totalmente descurada a defesa incondicional das empresas públicas nacionais, regionais e municipais, em acelerada destruição, e a luta pela sua ampliação e democratização, pelas razões assinaladas.

Interessa fortemente à grande comunidade negra que recue o espaço econômico privado, e não a inserção de indivíduos nele, como habitualmente proposto nos dias atuais —o tal de empreendedorismo negro. Transformar-se, mesmo pontualmente e em forma subordinada, parte das classes dominantes, significa transformar-se em explorador. Vimos que, na escravidão brasileira, tivemos não desprezível quantidade de negros senhores de cativos, a forma de propriedade da qual dependia, então, sobretudo, a progressão social.

Gerais e Particulares

Lideranças identitárias negras verbalizam comumente a proposta da impossibilidade de reduzir as reivindicações da população negra a uma pauta econômica. O que é relativamente certo. Porém, ninguém pode negar a determinação essencial das reivindicações econômicas. Um salário mínimo condigno permitiria enorme salto de qualidade nas condições gerais de existência das comunidades negras,  que não se restringiria apenas aos aspectos econômicos da vida, espraiando-se a praticamente todos os demais, em forma desigual. Ainda mais que os trabalhadores e trabalhadoras negros são os que proporcionalmente recebem em maior número esse salário da opressão, o maior mecanismo de super-exploração do trabalho no Brasil, quando o recebem integralmente.

É por isso que se impõe que os trabalhadores, todos unidos, e portanto, fortalecidos,, levantem e avancem  reivindicações de caráter universal, para todos os explorados, sem exceção, que atinjam, assim, o conjunto da população negra explorada e marginalizada, e não apenas alguns poucos privilegiados. O sucesso de alguns não é remédio da miséria de inúmeros outros. Programa geral que deve ser associado às reivindicações particulares, de todas  naturezas, com destaque para a luta permanente e intransigente contra as múltiplas expressões, concepções, práticas, etc. racistas e sexistas, entranhadas até a medula dos ossos na sociedade brasileira.

O racismo atinge igualmente os segmentos sociais médios negros, que devem ser interpretados, na sua relatividade, pelos programas do mundo do trabalho, na marcha  imprescindível em direção da emancipação social, no aqui,  no agora e no amanhã. Impõe-se, assim, que sejam defendidas as reivindicações justas dos segmentos médios negros, ao igual que as dos segmentos médios brancos. Entretanto, elas não podem ser apresentadas como programas para a emancipação de parte substancial ou da totalidade da comunidade nacional. Reivindicações que propõem melhorias conjunturais para pequenas comunidades e indivíduos singulares, através de modificações pontuais e não raro utópicas da despótica sociedade atual,  contribuem, em forma inarredável, à consolidação de ordem capitalista já em seu estágio senil. E é precisamente isso que o grande capital quer e apoia.

*Mário Maestri é historiador. Autor, entre outros livros, de Revolução e contra-revolução no Brasil: 1500-2019.

Agradecemos as leituras da linguista Florence Carboni e do historiador Luciano Pimentel

Referências


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ARISTÓTELES, Política. São Paulo: Atenas, 1957.

BENGOA, José. Historia del pueblo mapuche. Siglos XIX y XX. 3 ed.  Santiago: Sur, 1996.

CARBONI, Florence & MAESTRI, Mário. A Linguagem Escravizada: Língua, História, Poder e Luta de Classes. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2005.

CARNEIRO, Sueli. “Uma guerreira contra o racismo”. CAROS AMIGOS, fevereiro de 2000, pp. 24-9.

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GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. 5 ed. São Paulo: Perseu Abramo, 2011.

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HERÉDIA, Vânia B. M. Processo de industrialização da zona colonial italiana: estudo do caso da primeira indústria têxtil do Nordeste do Estado do Rio Grande do Sul. Caxias do Sul: EDUCS, 1997.

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LAZZAROTTO, Valentin. Pobres construtores de riqueza: absorção da mão-de-obra e expansão industrial na Metalúrgica Abramo Eberle, 1905-1970. Caxias do Sul: EdUCS, 1981.

LUNA, Francisco Vidal. Minas Gerais: escravos e senhores. uma análise da estrutura populacional e econômica de alguns centros mineratórios (1718-1804). São Paulo: IPE/USP, 1981.

MANDEL,  Ernest. Tratado de economía marxista. Mexico: Era, 1969. Tomo 1.

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ZURARA, Gomes Eanes da. Crónica de Guiné. Segundo o ms. de Paris. Modernizada. Introdução, notas, novas considerações e glossário de. Barcelos: Civilização, 1973.

 

 

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