Por HUGO DIONÍSIO*
Neoliberalismo: a antecâmara do fascismo! Eis o que se esconde por detrás das eleições alemãs
1.
As eleições ocorridas na Turíngia e Saxônia, vistas como um referendo à governança Scholz/Baerbock e uma amostra do que aí virá em 2025, confirmaram a erosão do governo alemão, demonstrando que a “maldição de Zelensky” está bem viva. Quanto maior a proximidade com o ex-presidente da Ucrânia e momentâneo ditador delegado, maior a probabilidade de queda de um governo. Trata-se de uma tendência quase inexorável.
Contudo, quase 80 anos depois do fim do terror nazista, vem o centro neoliberal pregar o medo do fascismo, como sua bandeira preferida. Enquanto amedrontam os seus povos com as AFD’s desta vida, apoiam o Banderismo na Ucrânia, Javier Milei na Argentina e golpistas de extrema direita na Venezuela. E com isto os apanhamos: a luta do centro neoliberal contra a extrema direita não passa de um torpor oportunista, em que uma casta privilegiada que se considera civilizada, não quer ser substituída por outra casta mais trauliteira.
E enquanto acenam com os perigos da “extrema direita”, eliminando quem lhe poderia dar realmente combate, não impedem, contudo, a sua própria autodestruição, como sucede com o executivo de Sholz/Baerbock. Esta é também a história de muitos outros governos conotados com o centro neoliberal. Mas esta susceptibilidade autodestrutiva, constitui apenas a face visível – na Alemanha – de uma dinâmica social ainda mais profunda e que se identifica por toda a União Europeia, vivida ao longo de todo o século XXI, e que se impôs, a meu ver, através de quatro processos aceleradores críticos, criados/utilizados para produzir o efeito político que hoje observamos. Essa dinâmica, a não ser travada, conduzirá, propositada e inexoravelmente, a uma nova farsa fascista, neofascista, como lhe queiram chamar.
2.
O primeiro processo crítico acelerador do projecto neoliberal, na europa, coincidiu com a “Guerra ao Terror” de Bush, em que embarcou toda a OTAN, na sequência de atentados em Espanha, Inglaterra ou França, traduzida na invasão de Afeganistão e Iraque, construção da Primavera Árabe e destruição da Líbia e Síria. É nesta sequência que se impõe um processo de sobrevigilância e centralização da informação e inteligência a partir de Washington, atribuindo aos EUA o poder de analisar, monitorizar e coordenar esforços ao nível da segurança e criando, nas populações, as condições subjectivas para a aceitação do que viria em seguida: a vigilância em massa de todos os seus passos, a propósito da manutenção da sua segurança.
Outro momento crítico foi a crise financeira de 2008, que impôs o “Estado de Austeridade Permanente”, preparando as populações para a ideia de que o amanhã, afinal, não será melhor do que o ontem – apenas para alguns –, acelerando o processo de destruição do estado social e operando a maior transição de valor, entre classes, de que há memória na história recente e que se havia operado nos EUA e Reino Unido, logo após o inominável “Consenso de Washington”. É com a crise de 2008 que o Consenso de Washington se torna, finalmente, política oficial da União Europeia. Ao longo deste tempo, “investidores” americanos ocuparam posições dominantes em importantes sectores, por toda a Europa.
O terceiro momento crítico foi o Covid-19, com a introdução do “Grande Reset” de Davos e toda a ideologia do “novo normal”. Individualismo exacerbado, narcisismo, migração interna, das regiões mais pobres para as mais ricas e imigração de fora, para dentro do bloco ocidental, desenraizamento as populações da sua terra natal, cultura e língua, desaparecimento da malha social que confere coesão às sociedades. A “uberização” destruiu as restantes fronteiras econômicas que resistiam.
Uma empresa na Califórnia, opera no ocidente, a partir dos EUA, sem intermediários, sem gastar um tostão em logística local. Passando por cima de leis e de toda a soberania nacional, recolhe dados, vende-os, classifica-os e recolhe ganhos. Por outro lado, o Covid-19, acompanhado de toda a lógica de submissão a recolhimentos forçados, contenção dos movimentos e vacinação obrigatória, criou as condições subjectivas para a submissão acrítica a um modelo de governança.
Como se não fosse já suficiente, com a operação Ucrânia, varre-se dos países centrais da “Ordem Baseada em Regras” a última réstia de soberania: as forças armadas. Voltou a “interoperacionalidade” e, com ela, a uniformização do padrão OTAN, o que equivale a dizer, padrão EUA, comprado nos EUA, feito sob licença dos EUA. Estratégia e táctica militar, passam a ser desenvolvidas em Washington, em que os estados europeus não passam de postos avançados da “Ordem Baseada em Regras”.
Informação e inteligência; economia e finanças; organização social e política; defesa e segurança; eis as dimensões que foram sendo centralizadas e consolidadas em cada um dos momentos críticos. Cada um destes quatro momentos representou um salto evolutivo na força com que os EUA dominam a Ordem Baseada em regras.
Para dominar o novo século, o espaço vital tem de estar consolidado, coordenado a partir de um centro reconhecido, criando um bloco, em que as relações desse sejam definidas para um todo orgânico. Tudo para preparar o confronto entre blocos. Os resultados econômicos e sociais deste processo de aprimoramento, dirigido à Europa e feito para a secundarizar, determinaram uma perda relativa de poder, sentida pelas populações e estas, não a sabendo explicar, canalizam essa frustração para quem a verbaliza como ninguém: a extrema direita. Perante a impotência, promessas adiadas e contradição entre discurso e prática, provenientes do centro neoliberal, a solução está em quem se mostra resoluto e eficaz, mesmo que brutal.
Façamos uma comparação histórica pertinente, para sabermos do que estamos a falar. O período em que nasce o fascismo no ocidente (sim, nos EUA havia apartheid para os negros e fascismo, mesmo com supostas eleições), a riqueza estava distribuída da seguinte forma: entre os anos 20 e 40 do século XX, após o “Primeiro Terror Vermelho nos EUA”, os 10% mais ricos ficavam com uma parcela situada entre 43% e 49% do rendimento em cada ano, os 1% mais ricos, ficavam com 19% a 22%, já os 50% mais pobres ficavam com uma parcela que ia de 14% a 15%. O World Inequality Report não possui dados agregados para a Europa, mas na França, os resultados também não eram muito diferentes dos que vemos para os EUA. No fundo, os EUA representavam a tendência das economias mais avançadas.
3.
A primeira conclusão que retirar daqui é óbvia: o período de crescimento do fascismo no mundo ocidental coincide com um período de agravamento das desigualdades, na concentração de rendimento, de enorme concentração de riqueza e consequente agravamento das condições de vida e de trabalho. A resposta do sistema para esta crise e para o aumento do poder reivindicativo dos trabalhadores que se organizavam em poderosos sindicatos, coincidiu com a criação do fascismo, corporativismo (que defendia a paz social por oposição à luta dialética) e a repressão. Referimos o termo “crise” quando assistimos a um agravamento das contradições resultantes da disparidade na distribuição de rendimento entre os mais ricos e os mais pobres
A derrota do nazi-fascismo mudou tudo! Nos EUA, logo em 1945, os 50% mais pobres passam a agregar mais rendimento do que os 1% mais ricos (15,8% para 14,2%), enquanto os 10% mais ricos, desceram para 35,3%. É nesta diferença, de quase 15% perdidos pelos 10% mais ricos, que se explica o fortalecimento da classe média americana e a construção do chamado sonho americano. Sem esta transferência, os EUA dificilmente se teriam tornado na superpotência que foram, nem teriam derrotado a URSS. Isto explica também a entrada em cena do Macartismo (o “segundo Terror Vermelho” de 1950 a 57), deriva fascizante que “limpou” sindicatos e organizações de classe nos EUA.
Até aos anos 70 do século XX, a situação dos trabalhadores americanos continuou a melhorar e os dados atestam-no. Em 1970 a riqueza controlada pelos 50% mais pobres atinge o seu ponto alto (21,1%) e a dos 10% mais ricos (e 1% mais ricos também) atingem o seu ponto mais baixo (34% e 10,1% respectivamente). Os dados não poderiam ser mais claros: o período de ouro dos EUA coincide com o período em que a distribuição da riqueza produzida foi mais justa; foi também o período com mais liberdade, democracia, engajamento político e melhores condições de vida.
Na França não foi diferente, uma vez derrotado o nazi-fascismo e, logo a partir de 1945, os 10% mais ricos atingem o seu ponto mais baixo (31,4%), o 1% mais rico 8,5% e os 50% mais pobres passam de 14,6% em 1934 para 20,5% em 1945. É pena não termos dados da Alemanha, mas se estes não falam por si…
Esta relação, nos EUA, mal ou bem, continuou até ao final da URSS e, em 1995, tudo se volta a inverter de volta ao período anterior à segunda guerra mundial. O “Consenso de Washington” ocorrido em 1989, que decretou a mundialização do neoliberalismo segundo a “escola de Chicago”, coincide com o ano em que os 1% mais ricos voltam a concentrar mais de 14% do rendimento anual, o que já não sucedia desde os anos 50.
A partir de 1989 foi sempre a concentrar, até aos dias atuais, em que: em 2022, os 10% mais ricos atingiram 48,3% do rendimento anual, os 1% mais ricos 20,9% e os 50% mais pobres, apenas 10,4%. Refira-se, a este propósito, que desde que existe registro, nunca os 50% mais pobres haviam ficado com tão pouco rendimento anual. O mínimo que haviam obtido, nos EUA, havia sido 11% por volta de 1850!
Voltando às eleições alemãs. Estamos precisamente a viver o período da história ocidental moderna, em que a redistribuição da riqueza produzida (se falarmos da riqueza existente é pior ainda) está num dos níveis mais baixos de sempre. Na Europa, a situação ainda não é tão grave como nos EUA, mas estes 4 aceleradores críticos que identifiquei (Guerra ao Terror, Crise Soberana; Covid-19; Guerra Fria 2.0), produzirão, necessariamente, o mesmo efeito de concentração da riqueza que está já a degradar e destruir o estado social europeu, construído à custa de uma redistribuição que, mal ou bem, ainda mantém alguns padrões de justiça.
Embora não se tenham produzido grandes alterações na quantidade de riqueza auferida pelos 50% mais pobres, nos principais países europeus com registro no World Inequality Report, é da chamada “classe média” que se ouvem muitas das queixas. Em países como a Suécia, Espanha, Portugal, França, Alemanha, Países Baixos e outros, a tendência é, embora de forma mais ténue do que nos EUA, em finais do século passado, para os 50% mais pobres perderem terreno para os 10% mais ricos. Ou seja, paulatinamente, vão-se desenvolvendo as relações econômicas que produzirão uma realidade material típica do período em que se formou o fascismo.
Daí que seja hora de desfazer um dos mais importantes mitos, ou dogmas, que a narrativa oficial propaga sobre o fascismo: a principal característica do fascismo não é a repressão, mas, ao invés, a aceleração da concentração da riqueza e a sua entrega a uma cada vez menor quantidade de pessoas. Cada vez menos pessoas têm mais poder econômico, com o qual compram poder político e fazem o sistema político, mesmo os que se apelidam de “democráticos”, funcionar segundo os seus termos. O lobbying, o financiamento de campanhas e Think thanks ou até da própria academia, são alguns dos meios mais usados para interferir e moldar as soluções políticas preconizadas.
Ao invés do processo de concentração da riqueza, já a repressão pode acontecer em qualquer sistema, quando esteja em crise ou sentindo-se ameaçado. A não ser nos casos psicopatológicos, a repressão é uma resposta orgânica justificada com um ataque externo ou interno. Só alguém mesmo muito alheado ou alienado da realidade acredita que não existe repressão nos EUA e, mais recentemente, intensificada na União Europeia. Todos os sistemas estatais têm um aparelho repressivo ao seu dispor e a sua utilização – dos meios coercivos – depende do nível da ameaça. Num estado fascista, o poder repressivo está ao serviço das camadas mais ricas da população.
O mesmo se passa com as eleições. Não é a existência de eleições que determina a natureza fascizante ou democrática de um sistema. O que determina a sua natureza democrática é a abrangência das suas políticas. Se abrangem os interesses da maioria, ou não. Uma escolha entre iguais, como sucede nos EUA, não é democracia, é sufragismo. No final será o complexo militar industrial e Wall Street quem manda.
Outra característica da democracia consiste na susceptibilidade de alterar a política econômica, quando esta não serve os interesses da maioria. Eleições estéreis, pouco participadas em que governam partidos minoritários, como sucede crescentemente na Europa, não se explicam através da democracia. Esses partidos minoritários governam porque a base econômica que servem, lhes permite fazê-lo, mesmo em minoria. Em resumo, é possível haver fascismo com eleições. E nunca observarão um fascista assumir que o é.
Se o estado em que os EUA já se encontram explica o surgimento de um Donald Trump, uma “resposta” impotente para acabar com os exércitos de sem abrigo, junkies e de gente a viver em carros, roulottes ou tendas; na União Europeia, esse processo não é distinto e, embora mais tardio, está agora a produzir-se. Também na Europa está a surgir a resposta do sistema à crise que resulta do aprofundamento da contradição na redistribuição da riqueza. Quanto maior a contradição, quanto mais injusta a redistribuição, mais o sistema produzirá os agentes demagógicos, reacionários, que encantarão as massas mais pobres, com a culpabilização dos também mais pobres: emigrantes, refugiados e outros, para aqui trazidos, precisamente, pelos que mais riqueza acumulam.
4.
Não é admissível, portanto, que alguém responsável e conhecedor das dinâmicas sociais e em posse de informação fidedigna, fique admirado com o enviesamento eleitoral para a “extrema direita”. Mais grave se torna quando os representantes políticos do centro neoliberal, que se situa, inclusive, entre o wokismo e o ultraliberalismo (partidos wokistas eurosocialistas e social democratas acusam Nicolás Maduro de cometer fraude, mas consideram Javier Milei um jogador limpo!), uma vez mais, tal como nos anos 20 e 30 do século XX, surgem a criar as condições materiais, por sucumbirem às dinâmicas de concentração da riqueza, seja por corrupção, encantamento ou medo de serem destruídos (e que razão têm), proporcionando, por sua vez e uma vez mais, o surgimento da oportunidade fascista (seja o caso da AFD ou não). O momento em que os super-ricos usam a repressão estatal para proteger o processo de concentração da riqueza.
Assim, ninguém se pode admirar que as massas trabalhadoras descontentes, empobrecidas, vítimas da rapina, muita dela exercida a partir de Washington, votem na “extrema direita”. Depois de ondas de revisionismo histórico a comparar o fascismo ao comunismo (e socialismo) e a URSS à Alemanha Nazi, foi o próprio centro neoliberal quem legitimou a extrema direita. Se comparamos partidos aceites, que nunca promoveram o ódio e a discriminação (caso dos partidos comunistas), com partidos que fazem da doutrina do ódio e da discriminação as suas bandeiras, acabamos a normalizar estes últimos.
Acresce que, ao contrário do voto nos partidos progressistas (em sentido econômico, marxista), que rejeitam e denunciam o wokismo enquanto característica desviante à direita, os partidos da “extrema direita”, ao contrário, não comportam qualquer perigo para a base econômica que sustenta o centro neoliberal. Nenhum regime fascista alterou o processo de concentração de riqueza, ao invés, reforçou-o. Também hoje, a “extrema direita” defende apenas e tão só o aprofundamento do modelo econômico existente e que, como demonstrei, proporcionou o seu próprio aparecimento.
E aqui chegados, se demonstra que o revisionismo histórico não é inocente. Ele visa criar um escape, uma alternativa ao centro neoliberal, sem que o poder real, o poder da riqueza acumulada, na economia, transite de mãos. Assim, os grandes concentradores ganham tempo, enganando as massas uma vez mais, prendendo-as na repressão fascista.
Quando derrubado o golpe fascista, o desvio fascizante ou a deriva extremista neoliberal, as massas voltam a ser enganadas com o centro neoliberal, na medida em que não o identificam como pertencendo à mesma base econômica que alimenta o estado fascista. E assim perpetuam a sua exploração, circulando entre formas mais ou menos agressivas de um mesmo remédio.
Para já, as eleições alemãs apenas confirmam este ciclo vicioso. E a prisão neste ciclo, uma vez mais, em processo de repetição histórica, esconda o maior dos conseguimentos do globalismo neoliberal, federalista, financeirizado: a formatação do conhecimento a um ponto em que os especialistas, competentíssimos na sua área, são incapazes de olhar para além daquilo que lhes ensinaram. Neste sentido, o fascismo mais não é do que uma especialização, um aprofundamento em relação ao estágio actual do neoliberalismo globalista.
O próprio belicismo, seja dos EUA (e que não terminará com Donald Trump), seja no centro neoliberal (para já), constitui também uma das consequências do processo de “fascitização econômica” da vida política. Resulta de uma cada vez mais agressiva tendência para a apropriação de riqueza, nem que seja pela via da guerra.
Quando ouço economistas, competentíssimos (não estou a ironizar), com canais concorridos, criticarem o ocidente por estar a sucumbir, entre outras razões, por praticar salários elevados, percebo que a herança ideológica neoliberal é de fato pesadíssima. Nenhum destes competentíssimos economistas é capaz de olhar para além do esquema neoliberal que lhe ensinaram. Apenas reproduzem o que lhe ensinam, sendo meros instrumentos da lógica de acumulação e pilhagem ocidental.
A incapacidade de sonhar e almejar o que hoje se considera impossível, constitui a mais pesada herança dos últimos 100 anos, que os EUA tiveram para nos entregar. As eleições alemãs, na sua divisão entre sonhadores, situacionistas e aprofundadores, demonstram esta tensão latente. Demonstram que existe quem sonhe, mas as forças do medo, do ódio e da reação, estão mais fortes que nunca. O neoliberalismo constitui o seu alimento preferido.
Neoliberalismo: a antecâmara do fascismo! Eis o que se esconde por detrás das eleições alemãs.
*Hugo Dionísio é advogado, analista geopolítico, pesquisador do Gabinete de Estudos da Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses (CGTP-IN).
Publicado originalmente em Strategic Culture Fondation.
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