O sequestro da imaginação

Imagem: Daniel Trylski
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Por ANDRÉ LARA RESENDE*

O Plano Real e a estabilidade de preços não restabeleceram o rápido crescimento, não reduziram a distância em relação aos países desenvolvidos e, sobretudo, não superaram o “terrível abismo entre o Brasil rico e o Brasil miserável, de tudo desprovido

O Plano Real estava baseado em duas premissas: Primeiro, que ao fim de um longo ciclo de alta de preços, a inflação adquire um componente inercial autônomo, independente de suas causas primárias, que a torna crônica, muito resistente a toda tentativa de reduzi-la através dos mecanismos tradicionais de controle da demanda e do nível de atividade. Torna-se, além disso, propensa a se acelerar, diante de todo choque negativo de oferta.

Segundo, para garantir que a inflação não ressurja, uma vez superada a inércia, é imperativo que as suas causas primárias tenham sido debeladas. A superação da inflação crônica é um processo que toma tempo.

Depois dos sucessivos fracassos das tentativas de vencer a inércia através de congelamentos de preços, o Plano Real inovou. Adotou uma unidade de conta virtual, diariamente indexada pela inflação corrente, portanto de valor real estável. A URV, a “moeda indexada”, inspirada em dois artigos originais de ALR e um de coautoria de ALR e PA, foi o Ovo de Colombo que permitiu vencer a inércia da inflação.

Quanto às causas primárias da inflação, o diagnóstico do Real era um misto de ortodoxia e heterodoxia. O componente ortodoxo era a constatação da desordem fiscal e da falta de transparência das contas públicas. O componente heterodoxo era o diagnóstico de que grande parte desta desordem fiscal tinha origem no conflito distributivo, nas reivindicações, tanto legítimas quanto ilegítimas, sobre a renda nacional, que não transitavam pelos devidos canais institucionais.

A PEC do Fundo Social de Emergência, que não era nem fundo nem social, mas sim uma desvinculação de receitas, foi a solução encontrada para encontrar espaço e dar um mínimo de realismo e transparência ao orçamento. A medida de mais longo alcance foi a posterior Lei de Responsabilidade Fiscal, que estabeleceu limites e critérios rígidos para o endividamento público, nas esferas federal, estadual e municipal.

As causas primárias de um processo inflacionário são mais complexas e de diagnóstico mais difícil do que pretende o consenso convencional. A atual macroeconomia predominante associa a inflação, primordialmente, se não exclusivamente, ao déficit das contas públicas e à pressão da demanda sobre a capacidade de oferta. Por isso supõe-se que, em qualquer circunstância, deve ser combatida com a alta da taxa de juros e a austeridade fiscal.

Ocorre que a inflação não é um fenômeno único, mas um sintoma que pode ter causas muito distintas. Além de adquirir um componente de inércia, a inflação crônica desorganiza e inviabiliza o controle das contas públicas. Esta é a razão pela qual o documento que serviu de base para a exposição de motivos para a Emenda Constitucional do Real, de dezembro de 1994, afirma que “a reorganização fiscal é a pedra fundamental do processo de estabilização”.

Reorganização fiscal deveria ser entendida como um orçamento plurianual, completo e transparente, que refletisse e organizasse as aspirações da sociedade, dentro dos limites da capacidade da economia e com uma carga fiscal que não inviabilizasse o investimento e asfixiasse a produtividade do setor privado.

Esta não foi a reorganização fiscal implantada nas últimas três décadas. O equilíbrio anual de caixa do Tesouro passou a ser o objetivo primordial da política econômica e a taxa básica de juros, determinada pelo Banco Central, foi fixada em nível extraordinariamente alto.

Os juros altos, logo após o Real, poderiam ser justificados. Era preciso vencer a desconfiança em relação a mais um plano de estabilização, quando o crédito externo ainda não havia sido restabelecido. Menos de um mês antes do anuncio do Real, havia sido assinado o acordo, que encerrou a moratória da dívida externa, mas o país tinha baixas reservas de divisas e dependia do fluxo de capitais de curto prazo. Os juros altos garantiriam a atração de capitais especulativos, ao menos num primeiro momento, indispensáveis para estabilizar o câmbio.

Com juros excepcionalmente altos, o serviço da dívida passou rapidamente a ser parte relevante das despesas do Tesouro. As políticas monetária e fiscal são interdependentes, não podem ser conduzidas de forma descoordenada ou contraditória. No entanto, o resultado primário do Tesouro, que exclui o serviço da dívida, passou a ser adotado como a referência para a boa política macroeconômica. Embora a taxa de juros seja o principal instrumento do BC, a ortodoxia financista e fiscalista exime-se da responsabilidade sobre o custo do serviço da dívida.

Enquanto a austeridade exige corte de despesas e aumento da carga tributária para viabilizar um superávit primário, a política monetária fica livre para elevar os juros e impor um alto custo fiscal ao país. Sob pretexto de financiar um déficit fiscal cuja origem é exatamente a política de juros, o BC fica autorizado a manter os juros altos.

A partir do início do segundo mandato de FHC, conquistada a confiança na nova moeda e superada a restrição externa, a manutenção dos juros altos foi um equívoco que sobreviveu aos governos seguintes e perdura até hoje, mais de duas décadas depois de consolidada a estabilização do Real.

É compreensível que se comemore os 30 anos de um plano que conseguiu superar quase cinco décadas de inflação crônica. Não é preciso relembrar os custos, dramáticos para todos, mas sobretudo para os mais pobres e os assalariados, da desorganização inflacionária, que ameaçava chegar à hiperinflação aberta.

O Real foi uma grande conquista, mas a esperança de que o fim da inflação, como diz o documento de base para a Exposição de Motivo do Real, pudesse por si só “melhorar a distribuição de renda, combater a fome permitir o crescimento da economia e criar empregos”, não se confirmou. A estabilidade de preços não restabeleceu o rápido crescimento, não reduziu a distância em relação aos países desenvolvidos e, sobretudo, não superou o “terrível abismo entre o Brasil rico, industrializado, moderno e eficiente, e o Brasil miserável, de tudo desprovido”, para o qual o documento chamava a atenção. A inflação foi vencida, mas os dois Brasis, tristemente, persistem.

Talvez seja justamente esta frustração, essa esperança não realizada, que, hoje, três décadas depois, explique o festival de comemorações e de reinterpretações do que foi o Plano Real. Comemora-se o fim da inflação, para não ser obrigado a refletir sobre as frustrações do passado recente e os desafios do presente.

As comemorações deste seu trigésimo aniversário reinterpretaram o sucesso do Real como se devido à adoção de um protocolo macroeconômico convencional e conservador, baseado no tripé juros altos, câmbio flutuante e equilíbrio fiscal, que se tornou o Santo Graal da política econômica convencional. Sua adoção seria condição suficiente para a retomada do crescimento e qualquer desvio levaria ao desastre e à volta da inflação.

Procurou-se vincular o sucesso do Real a uma agenda macroeconômica conservadora convencional e associar a volta da inflação descontrolada a qualquer desvio em relação ao roteiro do conservadorismo ortodoxo, do fiscalismo de austeridade. Um plano de estabilização, que partiu de uma ideia inovadora, para vencer uma característica da inflação crônica, nunca entendida pela teoria convencional, foi agora reinterpretado como uma camisa de força em defesa da ortodoxia macroeconômica.

Dada a flagrante incapacidade do receituário conservador de tirar o país da mediocridade em que ficou atolado, a insistência no roteiro da austeridade e dos juros altos, hoje predominante entre os analistas e a grande mídia, apesar de crescentemente criticada no exterior, clama por uma explicação.

Tenho a impressão de que o domínio do neoconservadorismo macroeconômico deve-se à falta de imaginação da esquerda. Deve-se à sua insistência numa receita assistencialista anacrônica e à sua incapacidade de enfrentar os velhos vícios do patrimonialismo e o corporativismo. O contraponto ao reducionismo fiscalista não pode ser a aliança com as forças do patrimonialismo e do corporativismo. Ao contrário, é preciso reconhecer e combater as forças de “captura” ilegítimas de renda, que se contrapõem às fontes “criadoras” de renda. As forças de captura da renda estão, hoje, tanto no executivo, como no legislativo, e cada vez mais, também no judiciário, nas agências e nas autarquias.

O caso da PEC 65/2023, que dá autonomia administrativa e financeira ao Banco Central, é exemplar. Sob pretexto de consolidar a autonomia do BC, retira o seu orçamento da LDO, vinculando seus gastos a uma suposta receita de “seignoragem”, um conceito do tempo das moedas metálicas, que hoje, quando se caminha rapidamente para moedas escriturais digitais, é praticamente irrelevante. A proposta é apenas uma forma de vincular uma receita, que é do Estado, ao orçamento do BC. Um expediente corporativista clássico para escapar da disciplina orçamentária democrática. Esta balcanização do orçamento, através da proliferação de vinculações, é justamente o que levou à desordem fiscal do tempo da inflação crônica, como diagnosticada no documento que deu origem ao Real.

O patrimonialismo e o corporativismo não são vícios exclusivos da esquerda, como fica, mais uma vez, patente com a proposta de autonomia financeira do BC, mas é a incapacidade da esquerda de distingui-los do assistencialismo legítimo que abre espaço para a predominância de uma receita conservadora anacrônica e flagrantemente equivocada.

Diante da predominância do receituário conservador entre os analistas, a grande mídia e, sobretudo, o mercado financeiro, os governos de esquerda recorrem a um “pacto tecnocrático”. A tecnocracia opera o Estado nas áreas vitais, inclusive e primordialmente as finanças e o Banco Central, enquanto as demais áreas do executivo, “não vitais”, são repartidas entre representantes das forças de captura de renda do Legislativo, do Judiciário e da sociedade. Uma condição que se defende como necessária para a governabilidade, num presidencialismo de coalisão sem verdadeiros partidos políticos.

A combinação do pacto tecnocrático com o presidencialismo de coalizão, que manteve o país no atoleiro da mediocridade por três décadas, agora dá sinais de ter chegado ao limite.

Enquanto a tecnocracia fiscalista insiste no aumento da carga tributária, o BC, que com a PEC 65 se junta às forças corporativistas e patrimonialistas, insiste na manutenção de juros extraordinariamente altos. Juros supostamente exigidos para o financiamento do déficit primário, mas cujo resultado é o aumento do déficit nominal e a redução do crescimento da economia. A alta dos juros aumenta a dívida e reduz o investimento, o que, associado à elevação da carga tributária, asfixia a economia e reduz o crescimento. Não há receita mais eficaz para uma trajetória explosiva da relação dívida/PIB, hoje eleita como o principal indicador de risco da economia. Reforça-se assim o coro da ortodoxia financeira/fiscalista em relação a um suposto “risco fiscal”.

Concluo com o esboço de um roteiro para escapar da ditadura da falta de imaginação e recolocar o país na direção do verdadeiro desenvolvimento.

(i) Reformar a governança do Estado com o objetivo de controlar o patrimonialismo e o corporativismo e torná-lo a favor do cidadão, não uma fonte de dificuldades burocráticas. Garantir segurança, saneamento, saúde e educação de qualidade. Valorização do serviço público, com treinamento e aperfeiçoamento permanente, não foco exclusivo na contenção de custos.

(ii) Regulamentação inteligente para aproximar a economia do idealtipo da economia competitiva, algo diametralmente oposto ao “laisser-faire” neoliberal, mais próximo do ordoliberalismo alemão, onde o Estado forte é o garantidor das instituições que viabilizam a produtividade da sociedade.

(iii) Programa plurianual de investimentos públicos e privados, com base em grandes objetivos de longo prazo, com acompanhamento permanente e transparente da evolução dos custos e dos retornos.

(iv) Coordenação das políticas monetária e fiscal – interdependentes e indissociáveis através de um pequeno conselho de experts, de notório saber, capaz de se contrapor à camisa de força ideológica da macroeconomia adotada pelos analistas financeiros e a grande mídia.

Sem o resgate da imaginação, sequestrada pela ortodoxia financeira e fiscalista, estaremos condenados à mediocridade, à camisa de força da ortodoxia.

*André Lara Resende é doutor em economia pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) e ex-presidente do BNDES. Autor, entre outros livros, de Consenso e contrassenso: por uma economia não dogmática (Penguin). [https://amzn.to/3YCZNrx]

Publicado originalmente no jornal Valor econômico.


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