O silêncio e a ética ou a ética do silêncio

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Por ELENIRA VILELA*

Você precisa falar sobre tudo? Você tem criticado o opressor mais do que critica as tentativas de resistência e enfrentamento dos oprimidos?

Em mais de trinta anos de militância política popular compreendi que falta ética na publicização de opiniões de muita gente. Pessoas que acham que estão simplesmente falando o que pensam ou emitindo uma opinião, mas na verdade o que parece uma simples opinião trata de realidades e assuntos muito delicados e isso não parece entrar na conta de quem fala.

Frequentemente quando comento privada ou publicamente que a pessoa precisa refletir sobre essa inadequação, a resposta recebida é: “Eu tenho direito de opinar sobre tudo que eu quiser e você não pode me criticar por isso”. Interessante é que existe uma contradição clara imediata nessa argumentação: eu posso falar sobre tudo, mas você não pode falar sobre mim (eu posso falar sobre tudo, mas você não pode incluir a minha postura no seu “tudo”).

Vou relatar alguns exemplos que vivi. Se alguém se reconhecer como a pessoa que falou comigo, saiba que todos os exemplos que cito são numerosos, então estou falando com você também, mas não é pessoal. Espero que você possa refletir, repensar e passar a se fazer algumas perguntas antes de tornar pública a sua opinião.

Exemplo (1): ao invés de fazer greve paralisando os ônibus, vocês deviam liberar a catraca, assim o prejuízo ficaria somente para os patrões e não para a população, assim teriam mais apoio.

Exemplo (2): o movimento ___________ (preencha essa lacuna com negro, lgbtqia+, da favela, feminista, indígena, de pcd´s, camponês, sindical…) devia ser menos agressivo e buscar conquistar simpatias ao invés de confrontar, explicando e ensinando e não brigando.

Exemplo (3): ao invés de colocar fogo na estátua do Borba Gato, eles deveriam___________ (preencha essa lacuna com ter colocado uma placa, fazer um debate, fazer uma esquete de teatro, fazer outro dia, fazer um ato pacífico).

Exemplo (4): o ato do dia 7 de setembro do Fora Bolsonaro devia ___________ (preencha essa lacuna com ter sido cancelado porque os fascistas marcaram no mesmo dia, ter sido em outro lugar, ser convocado com outro material, expulsar os não de esquerda, convidar os não de esquerda, ser mais vermelho, ser mais verde e amarelo…).

Exemplo 5: o (a) ___________ (preencha com China, Cuba, Coréia Popular, Venezuela, Palestina, Governo do RN, prefeitura de Angelina) deviam enfrentar ___________ (preencha com a perseguição midiática, o bloqueio, a crise econômica, a falta de água, a enchente, a revolta dos religiosos, a manipulação dos ricos locais…) de outra forma e não dessa, sendo mais democráticos.

Certamente daria pra fazer uma lista com uns dez, talvez cem ou mil exemplos desse tipo.

Eu concordo com algumas dessas propostas e muitas vezes com a argumentação que se justifica algumas dessas propostas e discordava de outras. O ponto, porém, não está aí. A questão é: você tem o direito, a legitimidade e as condições de falar sobre isso? Você fala isso pra quem? E com que objetivo? Você acha mesmo que ajuda ficar criticando movimentos de segmentos, categorias, países anti-imperialistas ou parcelas da sociedade que já sofrem um sem número de opressões, pressões e desafios, que frequentemente estão sob muita pressão como uma categoria em greve ou um movimento de periferia que já vive sob as botas da repressão todos os dias?

Você tem criticado o opressor mais do que você critica as tentativas de resistência e enfrentamento dos oprimidos? Você se faz essas perguntas?

Vivemos um momento histórico do que Márcia Tiburi chama de “consumismo da linguagem”,[1] que ela descreve assim: “…agimos no vazio. Estamos na mera reprodutibilidade da informação, que nada quer dizer pra nós que agimos em sua direção. O consumismo é exatamente esse fazer vazio consumista da linguagem e da ação repetitiva. Fugimos do discernimento que o pensamento analítico e crítico exige. Caímos no consumismo da linguagem”.

Além de não ter compromisso com o pensamento analítico e crítico, acrescento que falta o “compromisso ético”. Apesar de Tiburi se referir mais à reprodução, eu incluo a emissão de opiniões simplesmente porque sim, porque “tenho o direito” a participar do consumismo da linguagem colocando em circulação minha “opinião”, meu “achismo”, para me fazer parte do mercado como comerciante da linguagem, mas frequentemente sem “ganhar nada”.

Certamente quem participa do consumismo da linguagem fornecendo mercadoria em forma de opinião sem compromisso ético participa da violência por ele produzida ou alimentada. Ela diz “A violência é experimentada, provocada e sofrida no dia a dia das pessoas das mais diversas formas. Na prática, a violência é algo banal, ou seja, é comum e partilhada. O que chamamos de “violência simbólica” está entre nós, entrelaçada de modo perigoso com a violência física. Isso quer dizer que nos atos físicos de violência de gênero, raça, idade, classe social há sempre violência simbólica. Mas toda violência simbólica pesa materialmente. (…) Falar é fazer, mas pensamos pouco nesse aspecto. Quando a violência da fala chega à comunicação, que em escala institucional, atinge os meios de comunicação de massa, o perigo se intensifica”.

A pergunta é: você sabe o quanto sua suposta opinião emitida participa dessa violência? Quando você critica o movimento de periferia que decidiu conscientemente fazer uma ação direta pra abrir um debate, estão sendo criminalizados pelo establishment, vivendo toda forma de violência, somente porque você tem o direito de emitir uma opinião você passa a fazer parte dessa violência. Você faz isso por decisão ou de maneira inconsciente?

Precisamos lembrar que se você é um homem ocidental heterossexual branco letrado rico (ou mesmo remediado) cristão e de meia idade sua voz sempre é mais amplificada, você sempre tem mais espaço de fala e se você usa esse espaço para contribuir com a violência ao invés de contribuir com o enfrentamento a ela você não é sequer um humanista, muito menos anticapitalista, feminista, antirracista, anti-imperialista…

Se você é um homem com essas características que ainda por cima tem um espaço comunicacional ampliado, porque é jornalista, comentarista, ou porque tem representatividade, sua responsabilidade aumenta e a chance de você acabar contribuindo com a violência também. Obviamente o mesmo acontece com uma mulher branca que usa o espaço social pra criticar o movimento antirracista ao invés de criticar e enfrentar o racismo, uma pessoa heterossexual que usa seu espaço para criticar as pessoas LGBTQI+ ao invés de enfrentar a LGBTfobia e por aí vai.

Ah, mas então você está dizendo que eu nunca poderei mais falar e fazer críticas às pessoas, movimentos, povos mais oprimidas que eu ou movimentos de opressões que não sofro ou categorias que não organizo? Bom, em princípio não. Mas, principalmente você precisa se colocar algumas perguntas antes de emitir sua “participação inteligente no bloqueio à Cuba” como nos sugerem Caetano e Gil na música Haiti, ou um “plano de educação que pareça fácil e rápido”. Sugiro as seguintes perguntas e que você se faça essas perguntas todas as vezes que pensar em emitir sua opinião publicamente em relação a oprimidos (as) e explorados (as):

(1) Quanto tenho contribuído para enfrentar a opressão ou exploração que essas pessoas, movimentos, organizações ou povos enfrentam? Porque você não vai querer que constatem que você contribui nada ou quase nada (mesmo no espaço do consumismo da linguagem) para enfrentar a opressão, mas acha que tem o direito ético e a legitimidade de criticar o oprimido que tenta sobreviver, não é? Isso vai acabar deixando claro de que lado você está.

(2) Eu conheço suficientemente as condições em que esses oprimidos(as) e explorados(as) estão vivendo, esse enfrentamento, para minha opinião ser minimamente fundamentada e realmente ser construtiva? Afinal, a gente vive criticando os bolsominions por falarem de coisas que eles não entendem ou não compreendem com o nível de profundidade minimamente razoável. Você não quer correr o risco de reproduzir esse comportamento inaceitável, quer?

(3) Eu tenho legitimidade para ser respeitado(a) e ouvido(a) por esses que resistem e lutam porque sou um parceiro cotidiano tanto porque estudo e faço reflexões cotidianas e aprofundadas, como porque presto atenção no meu comportamento e dos que estão em torno de mim enfrentando aquela opressão e contribuo de forma sistemática na organização, no financiamento, na elaboração e nas lutas daquele movimento ou povo? Se sua resposta for sim para a maioria dessas questões você tem mais legitimidade para falar de uma condição que você não vive.

Por exemplo, as pesquisadoras Lilian Schwartz e Lia Vainer Schucman dedicam boa parte da sua produção acadêmica, de seu tempo e de sua militância sendo mulheres brancas a enfrentar o racismo estrutural nos debates históricos e na sociologia da branquitude. Se elas tiverem uma opinião sobre como o movimento antirracista deve atuar ou se posicionar certamente as militantes do movimento negro receberão essas sugestões e críticas de uma forma diferente do que de você que somente falou quando o Black Lives Matter entrou na moda e nunca mais falou do assunto. Mesmo assim a Lilian chegou a ser bastante criticada por emitir opiniões sobre a situação de pessoas trans, logo ser aliado(a) de um movimento e ter legitimidade para falar dele não te dá um cartão de liberação para se sentir legitimado(a) pra falar de qualquer um deles.

(4) Se você respondeu sim para as três anteriores, agora temos que nos perguntar sobre o método: para quem, por que meio e com que postura emitirei a minha opinião? Sim, porque mesmo que você seja aliado, tenha conhecimento e legitimidade, se você simplesmente colocar na sua página do facebook ou publicar em um artigo na Falha de São Paulo você poderá estar apenas novamente ajudando o establishment a usar da sua crítica para aumentar a violência contra aquelas pessoas que já são massacradas, violentadas e que não tem espaço (por vezes nem mesmo pra responder à sua opinião ou crítica). Novamente você será parte da violência simbólica que atinge essas pessoas e estará alimentando todos os outros tipos de violências que essas pessoas, movimentos e povos sofrem. A sociedade não precisa da sua ajuda para ser violenta contra essas pessoas? Ela é realmente eficaz em massacrar.

Então procure uma pessoa do movimento com quem você tem uma relação, pergunte antes como está indo a mobilização, como está a pessoa, escolha uma forma de emitir sua opinião, faça com que ela seja respeitosa, não violenta e que você possa escutar antes e depois de falar. Nesse caso escutar não se resume a ouvir, mas a refletir, elaborar e submeter sua opinião e tudo que ouvir a um processo de empatia e compromisso.

Você pode escrever e publicar? Sim. Desde que você realmente use muito mais seu espaço para enfrentar o opressor e só eventualmente para opinar ou criticar o oprimido e suas formas de sobreviver e de lutar contra a opressão e a exploração. Desde que o público do lugar onde você publicar seja formado prioritariamente pelas pessoas com quem você está dialogando e desde que você tome cuidado triplificado com os termos para que você não seja vetor de violência com quem já é sobremaneira violentado cotidianamente e cuidado quintuplicado com a possibilidade de uso do que escrever pelo opressor.

Enfim, a sabedoria popular vive nos lembrando que temos dois ouvidos e uma boca, que a palavra é de prata e o silêncio é de ouro. Se, na maior parte das vezes, a única atitude que te passa pela cabeça é opinar sem reflexão, talvez calar seja a única opção realmente ética.

E se você se esquecer disso, opinar de maneira descuidada exercendo seu consumismo e a reação for grande, lembre-se novamente de pensar que quem é oprimido todos os dias e sofre as mais terríveis violências que você talvez não seja capaz nem mesmo de supor como são pode ter dificuldade em ser racional na resposta. Lembre-se que reagir a essas violências cotidianamente é extremamente exaustivo e exige uma energia de quem enfrenta o mundo. Então a reação à sua falta de ética, ainda que tenha sido apenas um “pequeno deslize” pode parecer (ou ser) agressiva demais ou desproporcional, mas provavelmente ela é uma agressividade contra o conjunto da opressão não contra seu “pequeno deslize”.

Para quem sofre todo dia, reagir é difícil e muitas vezes a reação também não consegue ser contra o “grande opressor” para derrotá-lo, mas contra alguém mais próximo que reproduz e alimente a opressão e está acessível. Só que a agressividade da reação poderá ser contra todo o sistema e a parte forte é você, então a obrigação de ser compreensivo e não responder com a mesma agressividade é sua, se você tem os privilégios sociais. Não, isso não significa necessariamente “apanhar calado”, significa que se você errou. Quando alguém te avisar, reflita e se ficar convencido apague e se desculpe. Se você achar que está certo, ainda assim talvez apagar seja recomendável, afinal você disse ou escreveu algo que foi interpretado como violento para alguém que não é o opressor. Ou talvez você deva deixar e iniciar um processo de reflexão, de empatia, de solidariedade, de comprometimento, de aprendizado com a dor alheia.

Refletir, tomar mais cuidado, se desculpar, mudar. Tudo isso fará você sair mais forte e o mundo ter mais um ponto de apoio contra opressões e exploração e não mais alguém “a ouvir o silêncio sorridente de São Paulo diante da chacina”.

*Elenira Vilela é professora no Instituto Federal de Santa Catarina e líder sindical.

 

Nota


[1] TUBURI, Márcia. Como derrotar o tecno macho nazifascismo ou seja lá o nome que se queira dar ao mal que devemos superar. Rio de Janeiro, Record, 2021, p. 122 e 123.

 

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