O voto em Bolsonaro

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Rubens Pinto Lyra*

A incapacidade dos indivíduos em assumir suas responsabilidades como cidadãos demanda que o instrumental teórico dos cientistas políticos seja completado pelos resultados da psicologia social.

Fatores específicos

As eleições presidenciais de 2018 foram absolutamente atípicas, com a vitória alcançada por um extremista de direita, militarista, favorável às privatizações em larga escala e à severa diminuição dos direitos sociais. “Menos direitos, mais empregos” é um dos bordões preferidos de Bolsonaro. Além disso, reiteradamente, ele manifesta sua simpatia pelo regime militar instalado em 1964, que sempre negou ter sido uma ditadura.

No âmbito cultural e ideológico, Jair Bolsonaro defende a restauração da “família conservadora”, a “Escola sem Partido” e a criminalização da “apologia ao comunismo”. Cultiva, ademais, delirante obsessão de combate ao “marxismo cultural”, supostamente responsável, até mesmo, pela “ideologia da globalização” (arremedo da expressão “bolchevismo cutural”, de Hitler).

Para ele, “bandido bom é bandido morto”; a segurança pública se faz em detrimento dos direitos humanos, sempre confundidos com os dos criminosos. Já a oposição de esquerda é invariavelmente apresentada como antipatriótica. O discurso da extrema direita também “aciona noções como a ameaça a supostos valores compartilhados sobre a família e a sexualidade, usando o poder cibernético para uma combinação de mensagens, estruturando narrativas homofóbicas, racistas, machistas e classistas” (Bocayuva, 2019).

Mesmo esse ideário regressivo e autoritário, a utilização de fake news, financiada por grandes empresários na campanha eleitoral e a fuga sistemática de debates de candidato sem nitidez programática nem competência política demonstrada, não foram suficientes para abalar a preferência dos seus eleitores. Também não os afastou o voluntarismo, o destempero e a misoginia do capitão reformado. Tão chocante escolha, envolvendo a maioria dos eleitores de todas as classes sociais e regiões do país (salvo os do Nordeste) deixou os cientistas políticos, os meios ilustrados e os democratas de diversos matizes perplexos e apreensivos. O que teria, afinal, ocorrido?

Sabe-se que o voto em Bolsonaro não foi determinado pelas suas qualidades pessoais, ou por opção programática. Pesou decisivamente a situação de parte do eleitorado, temeroso do desemprego e da insegurança, ambos crescentes, e indignado com a degenerescência dos partidos e a corrupção generalizada e endêmica do Estado.

Nesse contexto, não poucos dirigiram sua raiva contra as forças que lutaram contra os interesses dominantes, culpando os beneficiários de políticas assistenciais e portadores de direitos pela situação econômica do país. O alvo do ódio desses eleitores foi os mais fracos e oprimidos que tentaram se salvar pela submissão aos setores dominantes, aos ricos e aos detentores do uso da força. Não há como deixar de comparar com os fatores que conduziram Mussolini e Hitler ao poder ao que ocorreu no Brasil.

Em relação à Itália, deixemos falar o grande pensador e romancista Umberto Eco: “O fascismo provém da frustração individual e social. O que explica porque uma das características dos fascismos históricos tem sido o apelo às classes médias frustradas, desvalorizadas por alguma crise econômica, assustadas pela pressão dos grupos sociais subalternos” (Eco, 2002, p. 16).

Acerca da Alemanha, William Shirer, um dos mais importantes estudiosos do III Reich, nos explica que “na sua miséria e no seu desespero, os mais pobres fizeram da República de Weimar o bode expiatório de todo seu infortúnio” (Shirer, 1967, p.85). E isso a despeito dessa República, graças aos socialistas alemães, ter construído o Welfare State (Estado de Bem Estar Social). Mas eles não souberam enfrentar, na sequência, a grave recessão econômica no país, da qual se aproveitou Adolf Hitler.

 Qualquer semelhança com os fatores que determinaram a eleição de Bolsonaro não é mera coincidência. Ademais, pesou na balança um antipetismo oportunista e fanático, adrede alimentado pelos partidos políticos conservadores e conduzido pelo monopólio midiático, que serviu para ocultar – consciente ou inconscientemente – mal disfarçados interesses de classe.

Ao eleger a corrupção como o problema número um do país, a mídia contribuiu decisivamente para que os eleitores, insatisfeitos com todos os partidos – todos, supostamente aprisionados à “velha política” – votassem em alguém considerado o outsider, crítico do “sistema”. Portanto, que seria o único credenciado a combatê-la. Essa constatação, obviamente, não exonera o Partido dos Trabalhadores de sua parcela de responsabilidade pela vitória da direita.

Nunca os seus descaminhos políticos e administrativos, e a corrupção que contaminou algumas de suas maiores lideranças, foram objeto de uma verdadeira autocrítica. O petismo pagou o preço da sua sempre reiterada negativa de reconhecer os erros cometidos, demonstrando assim o seu alheamento à realidade.

Por último. Quem estuda os fatores psicossociais da eleição de Bolsonaro à Presidência não pode deixar de fazer uma análise – ainda que perfunctória – do voto evangélico no pleito presidencial, pois ele concorreu, decisivamente, para a escolha do extremista de direita que governa o país. Com efeito, não são poucos os que, até hoje, se interrogam sobre as razões pelas quais uma parte expressiva do eleitorado cristão – no caso, a maioria evangélica – pôde votar para o cargo máximo da República em um candidato que, tendo fugido dos debates, não deixou de proclamar, alto e bom som, sua simpatia por regimes que torturaram, mataram ou perseguiram milhares de brasileiros. Voto que contribuiu, decisivamente, para a vitória do “Mito”.

O Messias – Bolsonaro – manifestou-se sadicamente, na votação do impeachment de Dilma Rousseff. Tripudiou sobre o sofrimento experimentado pela ex-presidenta, quando presa durante o regime militar, ao exaltar a figura de seu torturador, o Coronel Brilhante Ustra – o que mais se destacou, durante a vigência da ditadura, nessa repulsiva prática (Tavares, 2020).

Entendemos que os condicionamentos psicológicos que caracterizam o voto em Bolsonaro, no que se refere aos evangélicos, não são estranhos à doutrina dos dois maiores ícones do protestantismo – Martinho Lutero e João Calvino – semelhantes, na questão em análise, a despeito das suas diferenças doutrinárias.

Esses teólogos enfatizam a impotência do individuo face aos insondáveis desígnios do Senhor. Para eles, apenas a vontade divina determina a vida das pessoas e todos os acontecimentos históricos. Calvinistas e seguidores de Lutero, mas também segmento expressivo dos evangélicos transferiu para o plano político, nas eleições presidenciais de 2020, sentimentos de impotência, em momento de crise e de desesperança. Acreditaram, condicionados, entre outros fatores, pela sua formação doutrinária, que somente um demiurgo poderia evitar a derrota econômica e social dos seus países: o Mito.

Tal como o Führer, na Alemanha e o Duce, na Itália. Com efeito, para Lutero e Calvino, mesmo o pior tirano não pode ser contestado: se governa, é porque Deus quer. Nas palavras do primeiro destes, citadas por Fromm: “Deus prefere aguentar a continuação de um governo, por pior que seja, do que deixar a ralé rebelar-se, não importa quão justificada ela se ache para fazê-lo” (Fromm, 1970, p.74). Essa mesma visão fatalista, de forma ainda mais acentuada, está presente em Calvino para quem “os que vão para o Céu não o fazem, absolutamente, por seus méritos, assim como os condenados ao Inferno o são simplesmente porque Deus assim o quis. Salvação ou condenação são predeterminações feitas antes do homem nascer” (Calvino).

Tais concepções, que negam radicalmente a autonomia do indivíduo, prepararam, nolens volens, o caminho para sua submissão às autoridades seculares, detentoras do poder de Estado. Estas, na atualidade, têm, preponderantemente, pautadas suas políticas, exclusivamente, nos interesses do mercado. Elas visam à desconstrução do modelo socialdemocrata de Estado (o de Bem Estar Social) e sua substituição pelo “Estado mínimo”, mero instrumento da política neoliberal das classes dominantes.

As concepções supramencionadas se afinam com teologias que consideram seus melhores fieis os que conseguiram se destacar na “livre iniciativa”, ou que, de uma forma ou de outra, alcançaram sucesso material. Essa adequação nem sempre se dá de forma consciente. Mesmo para os reformadores religiosos em comento, teria sido inaceitável a ideia de que a vida do homem viria a se transformar em meio para alcançar fins econômicos. Na dicção de Fromm: “Conquanto o seu modo de encarar as questões econômicas fosse tradicionalista, o destaque dado por Lutero à nulidade do indivíduo contrariava essa concepção, abrindo caminho para uma evolução em que o homem não só deveria obedecer às autoridades seculares como igualmente subordinar suas vidas aos fins de realização econômica” (1970: p.75).

De forma similar, a evolução da doutrina calvinista põe em relevo à ideia de que sucesso na vida secular é sinal de salvação (1970: p. 80), tema que mereceu a atenção de Max Weber, como sendo importante elo entre essa doutrina e o espírito do capitalismo. Conforme lembra Ghiardelli, pastores das maiores igrejas evangélicas, alcunhadas de caça-níqueis, figuram entre as maiores fortunas do país. Nas suas palavras: “A onda conservadora de costumes no Brasil tem a ver com o crescimento dessas igrejas. Bolsonaro é, em grande parte, a expressão política de tais igrejas. O atraso cultural desse movimento é um líquido no qual ele adora banhar-se” (Ghiardelli, 2019, p.78).

A ideologia de Lutero e Calvino tornou-se hegemônica em várias igrejas, pentecostais e neopentecostais O pastor de uma delas – a Central Presbiteriana de Londrina – pediu explicitamente aos seus membros para assinarem o apoio à criação do novo partido de Bolsonaro, a Aliança pelo Brasil (Pacheco, 2020). Desvela-se, portanto, o elo entre os aspectos autoritários das doutrinas dos teólogos acima mencionados e o de importantes setores evangélicos, apoiadores do capitão reformado, que promovem a adequação da ideologia às necessidades do mercado.

Como recompensa a essas igrejas, o governo Bolsonaro nomeou um dos mais destacados expoentes calvinistas, Benedito Aguiar Neto, para a presidência da CAPES. Além dele, também foram indicados para o alto escalão do governo os pastores Sérgio de Queiroz, Secretário de Desenvolvimento Social e Guilherme de Carvalho, Diretor de Promoção e Educação em Direitos Humanos.

Não podemos, decerto, olvidar que, a despeito das posições de Calvino, acima descritas, o protestantismo surgiu, objetivamente, como um movimento de grande impacto, na luta por liberdade e por autonomia, no seio da Igreja Católica. Contudo, o estudo dessa questão extrapola o objetivo desse trabalho. Ele visa, tão somente, identificar os aspectos fatalistas da doutrina protestante, que favorecem, a nível político, a aceitação do autoritarismo e, no plano econômico, o ideário neoliberal.

Esses aspectos conduziram a um enorme retrocesso, especialmente em países como o Brasil, ganhando espaço considerável o neopentecostalismo e com ele, opções econômicas, morais e políticas de viés conservador. Essas mudanças ocorrem pari pasu à severa diminuição, dentre os pastores, da qualidade de sua formação, que se dá, frequentemente, em seis meses, enquanto a dos clérigos da Igreja Católica dura cinco anos. Tudo isso concorre para que o “núcleo duro” do bolsonarismo alcance um expressivo contingente de evangélicos, mediante uma combinação deletéria de baixo nível cultural, fundamentalismo e concepção religiosa ancorada nos valores do mercado.

Além dos fatores acima estudados que condicionaram o voto nas eleições presidenciais cabe lembrar, na esteira de Maquiavel, que também a Fortuna (acaso, boa ou má-sorte, ou imponderável) deu a sua contribuição com a facada sofrida por Bolsonaro. Ela foi responsável pela “virada”, que contribuiu decisivamente para a sua eleição.

Brasil e Alemanha

O pano de fundo que determinou a débâcle dos candidatos democráticos foi o aflorar de um autoritarismo visceral, entranhado nas camadas mais recônditas da formação social brasileira, nunca antes manifestado tão fortemente como agora. Assim, uma maioria de eleitores deixou de optar por esses candidatos para trilhar o caminho obscuro, cheio de escolhos, representado pela eleição do capitão reformado.

Sentindo-se desamparado, o eleitor abdica de seu direito de escolher a alternativa político-eleitoral consentânea com as políticas públicas com que se identifica, e com suas convicções democráticas. Transfere para uma autoridade superior a resolução dos problemas que lhe aflige, e à sociedade. Essa incapacidade de assumir suas responsabilidades como cidadão diz respeito à Psicologia Social. Seu estudo tem de ser incorporado ao instrumental teórico dos cientistas políticos como um dos aspectos mais relevantes para a compreensão do comportamento do homem comum nas sociedades contemporâneas.

A análise de Theodor Adorno sobre a força decisiva alcançada por processos irracionais, inconscientes e regressivos ocorrida nos regimes fascistas se ajusta como uma luva ao Brasil. Ela “foi facilitada pelo estado de espírito de todos aqueles extratos da população que sofrem frustrações, para eles incompreensíveis e que desenvolvem, por isso, uma mentalidade mesquinha e irracional”.

Para isso concorre uma propaganda que, simplesmente “toma os homens pelo que são – os verdadeiros filhos de uma cultura estandardizada, amplamente despojados de autonomia e espontaneidade”. Ao revés, “seria necessário estabelecer metas, cuja realização transcenderia o status quo psicológico e social”. E arremata: “isso pode explicar porque os movimentos de massa ultrareacionários usam a psicologia das massas num grau muito maior do que os que mostram muita fé nelas”.

Brilhante psicanalista e psicólogo social, Erich Fromm, no seu livro clássico O medo à liberdade, escrito em 1941, analisou as razões que levaram os alemães a desembocar no regime nazista. Ele sublinha que entender a propensão do indivíduo, em períodos de crise, a renúncia à liberdade, é premissa indispensável para que se enfrente o perigo de as sociedades democráticas se metamorfosearem em regimes totalitários.

A compreensão desse fenômeno passa pela percepção de que a dinâmica social interage dialeticamente com os processos que atuam no íntimo do indivíduo. Para entendê-los, faz-se mister apreciá-los à luz da cultura que os molda. Destarte, a análise do aspecto humano da liberdade, e sua relação com o autoritarismo, nos obrigam a reconhecer os fatores psicológicos como forças ativas nos processos sociais e a enfrentar o problema da interação dos fatores psicológicos, econômicos e ideológicos na determinação desses processos.

Muitos alemães não imaginavam que o Führer viesse a levar as últimas consequências o que defendia. Destarte, “tomaram as suas ideias como mera propaganda, senão mesmo como fantasias extravagantes. Ninguém poderia acreditar que ideias, tão excêntricas e perigosas, como as expostas no seu livro Mein Kaft, fossem um dia postas em prática” (Hofer, p.14). Algo semelhante ocorreu no Brasil onde muitos que votaram em Jair Bolsonaro acreditavam que seus posicionamentos extremos não passavam de bravatas, utilizadas somente como recurso tático para obter êxito nas eleições.

Fromm destaca a importância, para a ideologia nazi-fascista, dos emblemas escolhidos pelos inimigos da liberdade humana, a cruz gamada e os feixes do fascismo que significavam “união e obediência”. Também tivemos, na época do regime militar, divisa similar, como a amplamente difundida “Brasil: ame-o deixe-o”. E agora temos “O Brasil acima de tudo e Deus acima de todos”, ambas da mesma matriz fascistizante.

Com efeito, todos esses lemas procuram subliminarmente, deslegitimar manifestações contrárias às concepções de viés totalitário, confundindo patriotismo com uma visão homogênea da nação. Dele estariam excluídos todos que não compactuam com essa visão, considerados inimigos que devem ser exilados, presos ou colocados, de uma forma ou de outra, à margem da lei.

Debruçando-se sobre os aspectos psicológicos que determinam o voto nos nazistas, Erich Fromm assim se expressa: “Fomos compelidos a reconhecer que milhões de alemães estavam dispostos a abrir mão de sua liberdade, do mesmo modo que seus pais estavam dispostos a lutar por ela; que em vez de desejarem a liberdade eles buscavam meios de fugir dela; que outros milhões eram indiferentes e não julgavam valer a pena lutar e morrer pela liberdade (Fromm, p.14).

Esse fato histórico também se aplica às diferenças geracionais no Brasil, no tocante às opções políticas. Nos anos sessenta, os jovens e com eles, grande parte da Nação, somente concebiam a sua edificação fundamentada nos valores da justiça social e da democracia. Essas questões faziam parte do seu dia a dia. Por elas, não poucos sacrificaram seus interesses imediatos, alguns a própria vida. Já nos dias de hoje, muitos jovens, assim como boa parte dos cidadãos brasileiros, não se orientam mais por esses valores; na prática, os desconhecem. Assim, o voto em Bolsonaro foi pautado pelo pragmatismo, colocando em segundo plano os valores democráticos e igualitários.

 Na Europa, a despolitização do voto fez com que, quando o fascismo e o nazismo ascenderam ao poder, poucos imaginassem o que estava por vir, não se dando conta do ribombo do vulcão que precedeu à erupção. No curso da história, somente alguns gênios como Marx, Nietzsche e Freud, perturbaram o otimismo enfatuado do século XX.

No terreno da psicologia social, diz Fromm: “Freud foi mais além do que qualquer outro ao atentar para a observação e análise das forças irracionais e inconscientes que determinam certos aspectos do comportamento humano. Eles e seus seguidores não somente desvendaram o aspecto irracional e inconsciente cuja existência tinha sido negligenciada pelo racionalismo moderno, mas foram além. Mostraram que esses fenômenos irracionais obedeciam a certas leis, podendo, portanto, ser entendidos racionalmente” (Fromm, p.17-18).

Contudo, Erich Fromm mostra que a contribuição pioneira de Freud foi, em vários aspectos, dialeticamente superada por alguns de seus sucessores, como ele próprio, notadamente no que se refere ao problema crucial da psicologia: a natureza da relação dos homens com o mundo. Freud a concebia como a satisfação ou frustração desta ou daquela necessidade instintiva per se, como resultante de forças psicológicas naturalmente condicionadas.

Bem diverso é o pensamento de Erich Fromm para quem a sociedade tem, não somente função supressora e repressiva, mas também criativa. Nas suas palavras: “A natureza do homem, suas paixões e ansiedades, são um produto cultural; de fato, o homem mesmo é a mais importante criação do esforço humano. Por sua vez, as energias humanas convertem-se em forças produtivas, moldando o processo social” (p. 2l).

A “liberdade negativa”

Sabemos desde Marx que a natureza humana deriva do processo social, sendo, portanto, passível de aprimoramento, inclusive no que diz respeito à compreensão dos processos políticos. Vencer os impulsos que conduzem os homens à submissão totalitária a salvadores da Pátria, figura entre os maiores desafios desta e das gerações que a sucederem. Com efeito, as sociedades são até hoje dominadas por forças que fazem o homem, em muitas ocasiões, abdicar de sua liberdade. Nesses casos, sua consciência e seus ideais se reduzem geralmente à interiorização de exigências externas (que Fromm qualifica de “autoridade anônima” e Freud de “superego”)e não à expressão de objetivos oriundos de seu próprio “eu”.

Somos manipulados por uma espécie de força difusa, invisível,de forma que não nos conduzimos conforme valores por nós elaborados, mas de acordo com o senso comum e as conveniências sociais, consideradas “normais” e pela “opinião pública”. Não obstante, alimentamos a ilusão ideológica de termos plena liberdade, quando, regra geral, se não nos nivelamos a autômatos, deles nos aproximamos. Mas o que de fato determina nosso comportamento são motivações inconscientes, as quais, embora não resultantes de escolha original nossa, são percebidas como se fossem pela maioria dos indivíduos (Fromm, p. 202-203).

Vivemos sob a égide do capital, o que não favorece a formação de uma consciência crítica voltada para a realização dos valores da igualdade e da justiça social, nem práxis autenticamente democrática, requisitos para a construção de uma sociedade livre. A opção majoritária, por parte do eleitorado, por um candidato simpático à ditadura militar, abertamente hostil aos direitos dos trabalhadores, tornou evidente que a luta ideológica contra os valores propagados pelo mercado, indispensável, não é, contudo, suficiente para enfrentar o alheamento de muitos eleitores em relação às virtudes da democracia.

Ficou evidenciado que a possibilidade de construção exitosa de uma ideologia contra-hegemônica tem como pré-requisito a compreensão da realidade mais íntima do indivíduo e das condicionantes de natureza psicológica que o induzem – especialmente em situações que exacerbam o seu sentimento de impotência perante o mundo – a renunciar à sua autonomia. Contudo, não restam dúvidas que avançamos, nas sociedades democráticas, na conquista das liberdades individuais, pois sob sua égide o Estado não pode tolher, ou dificultar o seu exercício.

Mas nem por isso os indivíduos alcançaram, como muitos pensam, a sua efetiva autonomia: seu comportamento continua sujeito à influência determinante de condicionamentos de natureza psicológica que se traduzem na interiorização de exigências externas ao seu “eu”. Eles tendem a conformá-los ao pensamento, estilo e modo de vida dominante, alienando-os de si e dos outros, ao privá-los de raciocinar e se comportar de forma autônoma.

Em outras palavras, o individualismo vigente funciona como um invólucro, asfixiando a afirmação do individualismo que liberta: aquele que permite sermos originais, raciocinarmos livremente, e, sobretudo, exteriorizarmos sem censura o nosso pensamento. Esmagados por esse individualismo pervertido, reina soberana a “autoridade anônima”, disfarçada no senso comum, nos “comportamentos normais”, em suma, em posicionamentos moldados pela “opinião pública”.

Alguns deles influenciaram fortemente as eleições de outubro de 2018, como o mito de que a corrupção seria o problema número um do Brasil, ou que “o clamor popular” deve determinar a atuação dos poderes de Estado, como o Judiciário. A prevalência de tais concepções decorre do que os marxistas denominam aparelhos ideológicos, como o monopólio midiático televisivo existente no Brasil. Ele inculca nos indivíduos, amparado na quase exclusividade dos órgãos de difusão do pensamento e da cultura, a hostilidade à política, como se dela não dependesse todos os aspectos da vida social.

Da mesma forma, apresenta uma única posição em questões que são caras ao neoliberalismo, como a sacralização do “Estado mínimo”. Mas a internet, ao divulgar fake news em larga escala e ao mostrar a realidade de forma fragmentada, também concorre para a sua deturpação. Constata-se, a esse respeito, a convergência da análise marxista “heterodoxa” de Erich Fromm com a “clássica” visto que “não foram poucos aqueles que, no século XX, insistiram que o indivíduo moderno é produzido pela internalização de profundos processos disciplinares e repressivos” (Safatle, 2012, p.69).

O entorpecimento da capacidade crítica, deles derivados, levou os cidadãos a desprezarem o voto como instrumento de escolha entre distintos projetos de sociedade. Em que pese a sua subsunção a uma visão conformista da política, eles supunham se guiar por opiniões próprias, quando, regra geral, seguem as que são impostas de fora. Mesmo quando as têm, preferem não exteriorizá-las, pois tal procedimento pode marginalizá-los, deixando-os inseguros em relação às consequências que poderiam advir de sua manifestação de autonomia.

Destarte, transformam-se em semiautômatos, pois “o crescimento da base do ego é tolhido, sendo sobreposto a esse ego, padrões extrínsecos de pensar de sentir” (Fromm, p. 209).  Exercem o que Fromm denominou de “liberdade negativa”. Ele sublinha que “a obediência não é reconhecida como obediência por que é racionalizada como “bom senso”, como uma aceitação de necessidades objetivas” (Fromm, 1965, p.129).

Por isso, eventos sociais, como reuniões de família, comemorações natalinas, reuniões de colegas e outras confraternizações do gênero, são, em geral, marcadas pela superficialidade, ou mesmo pela hipocrisia. Seus protagonistas preferem não arriscar as consequências do exercício da liberdade crítica – a exemplo da discussão de suas preferências eleitorais – que poderia causar rupturas difíceis de suportar. Também evitam a exteriorização franca de opiniões sobre as dificuldades nas suas relações pessoais, quando somente ela é que pode ensejar o surgimento de laços baseados na amizade autêntica, sinceridade e afeto.

A vitória da liberdade, ao triunfar sobre os constrangimentos psicológicos e deformações de comportamento que a cerceiam, sobrepujando relações vazias, ensejam o desabrochar das potencialidades do indivíduo, meta e finalidade da vida social. A sociedade construída sobre essas bases será constituída de pessoas sadias, vivas, mentalmente sãs, em contraste com a atual, formada por indivíduos entorpecidos pelos atuais mecanismos de controle social.

Nessa nova sociedade, as pessoas serão capazes de agir com autonomia, plenamente acordadas para as realidades pessoais e sociais que a cercam. Para Fromm, pode-se dizer que são portadoras de caráter revolucionário, pois, com os predicados acima, são as únicas que têm condições de promover a mudança. Porém, “quando todos estiverem acordados”, arremata Fromm, “não haverá mais profetas ou revolucionários, haverá apenas seres humanos plenamente desenvolvidos” (Fromm, 1965, p. 130).

Na visão desse estudioso da psicologia social, esta será uma sociedade “em que a vida não carecerá de nenhuma justificativa dada pelo sucesso ou qualquer outra coisa, em que o indivíduo não será subordinado ou manipulado por qualquer força alheia, que seja o Estado, o sistema econômico ou interesses materiais espúrios. Uma sociedade em que os ideais do homem não se limitem á interiorização de exigências externas, mas que provenham realmente dele e exprimam os objetivos oriundos de seu próprio ego”

*Rubens Pinto Lyra é Professor Emérito da Universidade Federal da Paraíba.

Todos os direitos reservados.

Referências

BOCAYUVA, Pedro. “Porque a extrema-direita ataca a universidade pública?”. In: Revista Jornalismo e Cidadania, nº 29. PPGCOM-UFPE, 2019.

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FROMM, Erich. O medo à liberdade. Rio de Janeiro: Zahar,1970.

FROMM, Erich. O dogma de Cristo. Rio de Janeiro: Zahar,1965.

GHARDELLI, Paulo. A filosofia explica Bolsonaro.São Paulo: Três mundos, 2019.

HOFER,Walther. Dossiê do nacional-socialismo. Lisboa: Aster, s/n.

PACHECO, Ronilson. Quem são os calvinistas que avançam silenciosamente no governo Bolsonaro. Intercept Brasil. 2 fev. 2020.

SAFLATTE, Vladimir. A esquerda que não quer dizer seu nome. São Paulo: Três estrelas. 2012.

SHIRER, William.Le troisième Reich. Des origines à la chute. Paris: Stock, 1965.

TAVARES, Joemir. Ulstra é um monstro que ria quando torturava, diz mulher vítima da tortura. Folha de São Paulo, São Paulo,3 set. 2018.

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